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Do voto às obras: como o orçamento participativo mudou a realidade de cidades brasileiras

Experiência iniciada em Porto Alegre nos anos 1980 ganha fôlego em estados do Nordeste e aponta caminhos para se conectar ao crédito público

Assembleia do Orçamento Participativo de Porto Alegre (Foto: Cesar Lopes / PMPA)

Por Otávio Rosso, do 247 - Na virada dos anos 1980, o Brasil ainda digeria os impactos da ditadura militar e buscava novos canais de participação popular. Foi nesse ambiente que Porto Alegre, em 1989, sob a gestão de Olívio Dutra, implantou o Orçamento Participativo (OP) — uma experiência que mudaria a forma como a cidade definia prioridades de investimento.

Por meio de assembleias abertas em cada região, qualquer cidadão com mais de 16 anos podia votar e defender as demandas de sua comunidade. O sociólogo Luciano Fedozzi, que participou desse processo inicial, lembra que o mecanismo foi estruturado para enfrentar desigualdades históricas. 

“O orçamento participativo bloqueia relações clientelistas, pois estabelece critérios objetivos e transparentes, definidos coletivamente. [...] A gente sabe que as cidades brasileiras, especialmente as médias e grandes, as metrópoles brasileiras, elas são muito desiguais, muito injustas do ponto de vista da infraestrutura e dos serviços.[...] Nós criamos critérios objetivos que definiam que aquelas regiões mais carentes de infraestrutura urbana e de serviços recebiam mais recursos, exatamente para promover esse caráter de justiça espacial, de direito à cidade, diminuindo as desigualdades de bem-estar urbano”, explicou.

Nos anos seguintes, o modelo se expandiu para centenas de municípios. No auge, mais de 400 cidades brasileiras aplicavam versões próprias do OP, atraindo atenção internacional pela inovação democrática e pelo efeito redistributivo.

Mas com o passar dos anos, a força do OP foi diminuindo. Hoje, segundo levantamento da UFRGS, apenas 45 municípios com mais de 50 mil habitantes mantêm o instrumento ativo. Fedozzi explica que as mudanças políticas, com o crescimento do conservadorismo no Brasil,  e fiscais foram determinantes: “Hoje o OP em Porto Alegre está praticamente desconstruído e desempoderado. O que antes era 64% do orçamento de investimentos, hoje não chega a 1,5%”.
Apesar do declínio nos municípios, o sociólogo destaca que o legado permanece: “O orçamento participativo sempre mostrou que o Estado pode ser redistributivo. Ele coloca luz sobre as desigualdades e cria um ambiente de transparência nas decisões públicas”.

A reinvenção nos estados do Nordeste

Enquanto recuava nos municípios, o OP encontrou novo espaço nos governos estaduais, especialmente no Nordeste. No Maranhão, no Piauí e na Paraíba, o modelo ganhou formato próprio.

Na Paraíba, desde 2011, funciona o Orçamento Democrático Estadual (ODE), que promove audiências públicas nas 14 regiões geoadministrativas do estado. O secretário Júnior Caroé explica que o processo é pensado para aproximar governo e sociedade: “As audiências são realizadas com a presença do governador e de todo o secretariado. É nesse momento que a população apresenta suas demandas, vota e define as três prioridades de cada região”.Ele acrescenta que a participação popular é expressiva: “No ano passado, nós tivemos quase 112 mil pessoas participando de forma presencial. Esse engajamento mostra a legitimidade do processo”.

Resultados visíveis

Os dados confirmam o alcance da experiência. Em 2023, foram executados R$ 750,7 milhões em demandas eleitas pela população. Em 2024, mais R$ 620,4 milhões.

Caroé detalha os setores mais contemplados: “A população tem priorizado estradas e mobilidade, educação integral, políticas para mulheres e centros especializados para pessoas com deficiência. Hoje, por exemplo, temos 100% das rodovias estaduais pavimentadas”.Outro ponto destacado por ele é a transparência: “Cada demanda recebe um identificador que permite acompanhar a execução no Portal da Transparência. Isso garante rastreabilidade da demanda e do valor alocado”.

Como a decisão popular vira investimento público

O orçamento participativo mostra, na prática, como a democracia pode sair do papel e ganhar forma em obras e serviços. O caminho começa na plenária, onde moradores definem prioridades como saúde, transporte, cultura e infraestrutura. Mas o desafio central está em transformar essas escolhas em projetos viáveis e financiáveis.

Quando a comunidade aprova a construção de um centro cultural, por exemplo, não basta a decisão coletiva: é necessário elaborar orçamento, cronograma e estudos técnicos. Com essa base, o projeto pode ser encaminhado a linhas de financiamento específicas, como as do BNDES Cidades.

O programa, lançado recentemente, funciona como um hub de crédito voltado para municípios, com foco em cidades sustentáveis, inclusivas e inteligentes. Em 2024, o banco aprovou R$ 2,13 bilhões para prefeituras — crescimento de 1.320% em relação a 2022. Parte significativa desses recursos vem do Novo Fundo Clima, que destinou R$ 810 milhões a projetos de infraestrutura urbana sustentável.

Essa conexão entre demanda popular e financiamento público fecha um ciclo virtuoso: da votação comunitária nasce um projeto técnico; desse projeto surge acesso ao crédito; e do crédito, a obra. Assim, prioridades apontadas nas plenárias — como mobilidade, saneamento, espaços públicos e energia renovável — encontram respaldo financeiro para se transformar em realidade.

Segundo Luciano Fedozzi, o orçamento participativo pode voltar a ganhar espaço no Brasil com a melhoria dos ambientes político e fiscal. “ Acho que é possível essa retomada, mas para isso tem que haver condições propícias. Primeiro, o contexto político, ele tem que ser favorável a implementar a participação social. Segundo, o contexto fiscal, ele tem que ajudar também. O contexto fiscal não é, digamos, muito bom, mas ao mesmo tempo ele não é impeditivo. Basta que se seja, basta que os governos sejam realistas, transparentes, dizendo, olha, o que é possível fazer, o que não é possível fazer”, disse.

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