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O estranho rigor da psicanálise

O psicanalista Luciano Elia discute os desafios de preservar a essência da psicanálise fora da lógica do mercado

O estranho rigor da psicanálise (Foto: Divulgação)

247 - No episódio mais recente do podcast Papo Curvo, programa apresentado por Luciano Elia e Dafne Ashton na TV 247, foi debatido o que o psicanalista define como o “estranho rigor” da psicanálise. O vídeo traz uma reflexão sobre a singularidade do método freudiano e os riscos de sua adaptação a moldes profissionais e mercadológicos. A discussão surgiu no contexto de um debate mais amplo sobre a regulamentação da psicanálise como profissão e a criação de cursos universitários de graduação na área.De acordo com Elia, a psicanálise é “aberrante, excepcional, marginal… mas extremamente rigorosa”. Ele explica que o adjetivo estranha não diminui o caráter científico do método, mas o reforça. “Ela é estranha por rigor”, afirmou, ao defender que a prática psicanalítica não se confunde com terapias tradicionais nem com ciências positivistas. Segundo ele, há um paradoxo: “O caráter desviante, o caráter extraordinário ou extravagante não retira nada — pelo contrário, ela é estranha por rigor”.

O psicanalista critica a ideia de que a psicanálise deva se tornar uma profissão formal para alcançar as classes populares. “Será que os pobres merecem um tratamento menos rigoroso que os da classe média alta? Eu quero levar o estranho rigor para todo mundo”, declarou. Para Elia, submeter a psicanálise a exigências burocráticas, universitárias ou de mercado compromete sua essência, que é a escuta do inconsciente e a aposta no que há de singular em cada sujeito.

Durante o diálogo, Dafne Ashton questionou como o analista pode lidar com sua subjetividade e crenças sem comprometer o rigor da prática. Elia respondeu que o analista deve se abster de compreender o paciente de forma humanista, pois a análise busca o que há de incompreensível no sintoma. “Se eu começar a compreender humanamente, eu não faço análise”, afirmou. Ele defendeu que o método freudiano é único e que a escuta analítica não pode se reduzir à empatia ou à tentativa de oferecer conforto — mas sim de decifrar o que o inconsciente expressa nas falhas, nos lapsos e nas repetições.

Elia também abordou a relação entre a psicanálise e a saúde mental, argumentando que não se trata de negar a medicina ou a psiquiatria, mas de oferecer um contraponto crítico. “O fato de a gente não ser uma prática de saúde mental não quer dizer que não vá estar lado a lado com os operadores da saúde. A psicanálise é mais subversiva do que antagônica”, disse. Segundo ele, reduzir a análise ao campo da saúde é uma forma de neutralizar seu poder de questionar as categorias de normalidade e doença.

O psicanalista fez ainda um paralelo entre Freud e Galileu Galilei, comparando o gesto freudiano de reconhecer o inconsciente ao gesto científico de afirmar que “a Terra atrai os corpos”, ideia também incompreensível à primeira vista. “Há um rigor nessa paralisia histérica que repete o gesto da Terra atraindo a caneta”, exemplificou. Para Elia, o inconsciente é, por natureza, um campo que escapa à racionalidade científica, e tentar encaixá-lo nas exigências da consciência ou do mercado seria trair o próprio fundamento da psicanálise.

Ao longo da conversa, Dafne Ashton destacou a importância da ética e da escuta no trabalho analítico. Elia, por sua vez, preferiu falar em “método freudiano”, afirmando que o termo ética carrega um resquício de humanismo. “Eu prefiro método, mas método no sentido psicanalítico — um método próprio, singular, que não é científico nem filosófico no sentido clássico”, explicou.

O psicanalista também criticou a confusão entre psicanálise e terapia. Para ele, a análise tem efeito terapêutico, mas não é uma terapia em si. “O efeito terapêutico decorre da recusa da terapia”, afirmou, explicando que apenas quando o analista renuncia à intenção de curar é que o sujeito pode experimentar transformação. “Se eu começar a minha tarefa com uma visada terapêutica, eu atrapalho tudo e ele não vai melhorar”, completou.

Ao final do programa, Elia defendeu que a psicanálise deve manter seus princípios, mesmo diante das pressões institucionais e sociais. “Não vamos ceder dos princípios. A psicanálise não é um campo sem princípios — é um campo que só tem princípios”, disse. Para ele, sustentar o “estranho rigor” é preservar a potência transformadora da psicanálise, sem mutilá-la ou descaracterizá-la em nome da popularização.

 

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