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“O analista não pode ser tragado pelas lógicas do mercado”: por que a psicanálise não é profissão

Luciano Elia explica por que o ofício analítico não pode ser transformado em carreira ou graduação formal

“O analista não pode ser tragado pelas lógicas do mercado”: por que a psicanálise não é profissão (Foto: Divulgação )

247- No episódio do último programa Papo Curvo, transmitido pela TV 247, o psicanalista Luciano Elia defendeu com firmeza a tese de que a psicanálise não deve ser formalizada como profissão. Em conversa com a também psicanalista e jornalista Dafne Ashton, Elia argumentou que a especificidade da prática analítica a torna incompatível com modelos institucionais de regulamentação profissional ou acadêmica.

A discussão foi motivada por uma recente audiência pública realizada na Câmara dos Deputados, que debateu a criação de cursos de graduação em psicanálise. A repercussão do evento reacendeu um debate histórico dentro do campo analítico. Com base nesse contexto, o programa aprofundou as razões filosóficas, clínicas e políticas pelas quais a psicanálise não pode — e não deve — ser regulamentada como profissão.

A singularidade da experiência como fundamento

Ao longo do programa, Elia desenvolveu o argumento de que a psicanálise é, por essência, uma prática baseada na experiência subjetiva, e não em um corpo teórico previamente estabelecido. Nesse sentido, ela não pode ser ensinada ou padronizada nos moldes de uma graduação universitária:

“O analista é um analisante que virou analista. Esse processo não é profissionalizável”, afirmou.

A prática analítica, segundo ele, é construída na relação com o desejo inconsciente do sujeito, e não pode ser reduzida a uma aplicação técnica de saberes predefinidos. Ao contrário do que ocorre com engenheiros ou médicos, o analista não trabalha com protocolos, mas com o inesperado, com o singular — e isso exige uma formação de outra ordem, baseada em análise pessoal, supervisão e elaboração contínua.

A crítica à profissionalização e à lógica de mercado

Elia também rebateu as críticas de que a recusa da profissionalização da psicanálise seria uma forma de elitismo:

“Isso vale para qualquer sujeito, de qualquer classe social. A experiência analítica é possível em qualquer espaço onde o dispositivo possa se instalar”.

Além disso, ele desconstruiu a noção de que a psicanálise deve se enquadrar nas lógicas do mercado ou das carreiras profissionais formais. Para o psicanalista, o desejo de transformar a análise em uma “profissão regulamentada” parte de uma recusa em aceitar o impossível que a psicanálise aponta:

“Se o governo um dia adotar a psicanálise como política pública de saúde mental, ela acabou”, alertou. “O analista não pode ser tragado pelas lógicas do mercado. Se ele for, a psicanálise morre”.

Formação, dinheiro e valor simbólico

Um dos pontos mais polêmicos do debate diz respeito à questão do pagamento — e ao lugar do dinheiro na prática clínica. Elia reconhece que o analista vive do seu trabalho, mas recusa que esse pagamento se torne o centro da prática, como ocorre em profissões regulamentadas. O dinheiro, para ele, é um elemento simbólico:

“O que o analisante paga é para ele perder, não é para eu ganhar”.

Essa lógica — profundamente inspirada em Freud e Lacan — subverte a relação tradicional entre trabalho e remuneração. Em vez de fornecer um “serviço” com valor de mercado, o analista sustenta uma posição de escuta que, ao mesmo tempo, provoca e resiste à lógica capitalista, sem ignorá-la.

Contra a “normalização” e a busca por adaptação

A psicanálise, lembra Elia, não tem como objetivo adaptar o sujeito ao mundo, mas sim abrir espaço para o desejo e para a singularidade de cada um. Nesse sentido, ela se contrapõe às formas de intervenção terapêutica que visam normalizar, ajustar ou tornar o indivíduo mais produtivo:

“A análise é para você se libertar das gaiolas do fantasma, dar uns passeios fora dele. Ela reduz o sofrimento, sim — mas sem fazer de você um sujeito adaptado”.

A posição analítica como ato ético, não como ocupação

Luciano Elia conclui que o analista não ocupa uma função definida por diplomas ou categorias profissionais, mas sim uma posição subjetiva construída no percurso da própria análise. Trata-se, portanto, de uma escolha ética, que não pode ser ensinada nem certificada:

“Você não pode adquirir um sintoma numa graduação. Um analista resulta de uma experiência — não de um currículo”.

Essa posição radical resgata a tradição freudiana/lacaniana e rechaça tentativas de domesticar a psicanálise dentro de moldes institucionais que não contemplam sua complexidade.

Em tempos em que o mercado impõe cada vez mais o enquadramento e a certificação de saberes, a recusa da psicanálise à profissionalização aparece como uma resistência ética e política — uma defesa da liberdade do sujeito, da escuta e do desejo. Assista: 

 

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