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"Nós somos brancos e não analisamos nossa branquitude", diz Elia

Luciano Elia propõe uma reflexão da psicanálise diante das marcas raciais, sexuais e sociais

"Nós somos brancos e não analisamos nossa branquitude", diz Elia (Foto: Divulgação )

247- Em novo episódio do podcast Papo Curvo, transmitido pela TV 247 o psicanalista Luciano Elia tratou  dos impasses entre identidade, teoria psicanalítica e lutas sociais. Ao longo da entrevista, Elia problematizou o uso do conceito de identitarismo a partir da escuta analítica, abordando suas implicações clínicas, políticas e teóricas.

Para Elia, discutir identitarismo não se trata de seguir um modismo ou responder a polêmicas do momento. “É uma questão dilatada no tempo, já uns bons 10 ou 15 anos, talvez 20, e que interessa muito além dos analistas. Interessa à sociedade atual”, afirmou. O psicanalista reconhece que a psicanálise, enquanto campo diverso e atravessado por conflitos, “muitas vezes derrapa” diante dessa questão. E acrescenta: “a crítica apressada ao identitarismo ignora pontos fundamentais e, por vezes, esconde um gozo em invalidar o outro”.

Com base em sua formação marxista e orientação freudiana, Elia sustenta que o identitarismo surge no bojo das críticas pós-modernas às chamadas grandes narrativas e dissolve, segundo ele, estruturas fundamentais como a luta de classes. Mesmo assim, propõe uma escuta mais atenta e menos reativa, capaz de reconhecer a complexidade do sofrimento de sujeitos que se identificam como negros, gays, mulheres ou integrantes de grupos marginalizados. “Se eu sou dividido, eu não sou idêntico, por assim dizer. O inconsciente é o outro em mim”, argumenta, ao reafirmar a incompatibilidade entre a noção freudiana de sujeito e a ideia de uma identidade fixa ou essencial.

Ainda que teoricamente a psicanálise não se apoie em categorias identitárias, Elia alerta para o que chama de “identitarismo implícito” na própria comunidade analítica. “Nós somos brancos e não analisamos nossa branquitude”, critica. Segundo ele, essa falta de autocrítica contribui para a reprodução de uma hegemonia racial e de classe dentro das escolas e sociedades psicanalíticas. “É muito raro você ter pessoas negras em formação psicanalítica. E isso não se explica apenas por questões econômicas”, pontua.

O psicanalista também problematiza a ideia de que uma pessoa negra, LGBT ou mulher deveria necessariamente ser analisada por alguém que compartilhe dessas características. Para ele, a análise não se baseia em empatia ou vivência semelhante, mas na escuta do inconsciente, que é atravessado por marcas, mas não determinado por elas. “O sujeito é o conjunto de marcas que sofre, mas isso não pode justificar uma aliança identitária na transferência. Isso compromete a análise”, explica.

Ao tratar da questão racial, Elia usa como exemplo o ativista André Constantini, que frequentemente afirma ser um homem negro vítima da violência de Estado. “Ele está dizendo a verdade, mas se o analista apenas ratifica essa posição de vítima, tira do sujeito a possibilidade de se deslocar dela”, observa. Ele reforça que reconhecer o sofrimento causado pelo racismo não significa aprisionar o sujeito nesse lugar. “A análise precisa permitir que se saia da identificação, inclusive da que se faz com o próprio sofrimento.”

Na sequência, Elia amplia a crítica ao que entende como um certo retrocesso teórico dos movimentos identitários. Segundo ele, ao reivindicar uma identidade “desde o nascimento”, como no caso de pessoas trans que afirmam ter nascido em corpos errados, retorna-se a uma visão essencialista e pré-freudiana da sexualidade. “O pós-moderno nos levou de volta ao pré-moderno. Freud é mais revolucionário ao perguntar por que alguém se tornou heterossexual”, provoca. Ele sugere que os três ensaios sobre a teoria sexual de Freud trazem formulações mais subversivas do que muitos discursos identitários atuais.

Apesar das críticas, Elia destaca que não se deve tratar essas posições com desprezo ou superioridade teórica. Ao contrário, insiste que é preciso escutá-las com humildade e reconhecer o que há de legítimo em sua emergência. “Muita coisa ficou silenciada durante muito tempo. Não podemos ser sumários na crítica, precisamos compreender o que está por trás dessas falas.”

Em defesa de uma psicanálise comprometida com o sujeito e não com identidades fixas, ele reafirma que o analista deve sustentar a “falta do ser”, conforme propôs Lacan. “Não tenho ser definido. Eu não sou negro nem gay no meu ser. O sujeito não se reduz à sua condição social, biológica ou de gênero.” Para ele, o grande risco das abordagens identitárias é dissolver o sujeito e cair em uma lógica de essências, esvaziando o potencial transformador da análise.

Ao final, Elia alerta para os perigos da flexibilização de princípios psicanalíticos em nome de uma suposta democratização. Em meio ao debate sobre a regulamentação da psicanálise e a institucionalização de cursos de graduação, defende a manutenção de fundamentos como a transferência e a formação por meio da experiência analítica. “Se você relativiza os princípios, não está mais na psicanálise. Não temos protocolos, mas temos princípios. E princípios não podem variar”, conclui. Assista: