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      Leia a íntegra da acusação de Gonet no julgamento do núcleo golpista

      Procurador-geral detalha atos da organização criminosa e pede condenação por crimes contra a ordem democrática

      Paulo Gonet (Foto: Antonio Augusto/STF)
      Guilherme Levorato avatar
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      247 - O procurador-geral da República, Paulo Gonet, afirmou nesta terça-feira (2) que a democracia brasileira “assume a sua defesa ativa” ao julgar a tentativa de golpe que, segundo ele, buscou impedir a alternância de poder após as eleições de 2022. A fala ocorreu no primeiro dia do julgamento de Jair Bolsonaro (PL) e de outros sete réus apontados como núcleo central da trama, no Supremo Tribunal Federal (STF). As informações e trechos desta reportagem se baseiam na transcrição publicada pela Folha de S.Paulo, que divulgou a íntegra da sustentação oral do chefe da PGR.

      Leia a íntegra:

      "Excelentíssimo senhor ministro presidente, ministro Cristiano Zanin, excelentíssimo senhor ministro relator Alexandre de Moraes, excelentíssima senhora ministra Cármen Lúcia, excelentíssimo senhor ministro Luiz Fux, excelentíssimo senhor ministro Flávio Dino, senhores advogados, senhores que acompanham este julgamento.

      É chegada a hora do julgamento pela mais alta corte do país em que a democracia no Brasil assume a sua defesa ativa contra tentativa de golpe apoiado em violência ameaçada e praticada.

      Nenhuma democracia se sustenta se não contar com efetivos meios para se contrapor a atos orientados à sua decomposição belicosa, ultrajante dos meios dispostos pela ortodoxia constitucional para dirigir o seu exercício e para gerir a transição do poder político.

      A ordem disposta na Constituição dispõe de meios institucionais para talhar investidas contra ela própria e o seu respeito. O controle de constitucionalidade é uma dessas formas, suficiente tantas vezes para remediar desvios jurídicos da estrutura da ordem.

      Nenhuma providência jurisdicional, contudo, é de valia contra a usurpação do poder pela força bruta, que aniquila a organização regular desejada e arquitetada pela cidadania expressa pelo seu poder constituinte. Em casos assim, se a intentona vence pela ameaça do poderio armado ou pela sua efetiva utilização, efetivamente não há o que a ordem derruída possa juridicamente contrapor.

      A defesa da ordem democrática, contudo, acha espaço no direito democrático para se reafirmar, avantajar e dignificar quando o ataque iniciado contra ela não se consuma.

      Nesses casos, atua o Código Penal no capítulo dos crimes contra as instituições democráticas, prometendo castigo a atos de, artigo 359, letra "L", tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos Poderes constitucionais.

      Da mesma forma, é combinada a pena para atos caracterizadores de tentativa de golpe de Estado, consistentes em artigo 359, letra "M", tentar depor por meio de violência ou grave ameaça o governo legitimamente constituído.

      Punir a tentativa frustrada de ruptura com a ordem democrática estabelecida é imperativo de estabilização do próprio regime, opera como elemento dissuasório contra o ânimo por aventuras golpistas e expõe a tenacidade e a determinação da cidadania pela continuidade da vida pública inspirada no protagonismo dos direitos fundamentais e na constância das escolhas essenciais de modo de convivência política.

      As afrontas acintosas e belicistas contra a ordem constitucional democrática podem assumir formas diversas. A história registra a profusão de ensaios dessas peças. Os golpes podem vir de fora da estrutura existente de poder, como podem ser engendrados pela perversão dela própria. O nosso passado e o de tantas outras nações oferecem ilustrações desta última espécie. O inconformismo com o término regular do período previsto de mando costuma ser fator deflagrador de crise para a normalidade democrática provocada pelos seus inimigos violentos.

      Não reprimir criminalmente tentativas dessa ordem, como mostram relatos de fato aqui e no estrangeiro, recrudesce ímpetos de autoritarismo e põe em risco o modelo de vida civilizada. Não se pode admitir que se puerilizem as tramas urdidas e postas em prática por meios de atos coordenados e sucessivos conducentes à perturbação social, à predisposição a medidas de força desautorizada constitucionalmente, à materialização da restrição dos Poderes constitucionais e à ruptura com preceitos elementares da democracia, como o respeito à vontade do povo expressa nos momentos eleitorais.

      Os atos que compõem o panorama espantoso e tenebroso da denúncia são fenômenos de atentado com relevância criminal contra as instituições democráticas. Não podem ser tratados como atos de importância menor, como devaneios utópicos anódinos, como aventuras inconsideradas, nem como precipitações a serem reduzidas com o passar dos dias ao plano bonachão das curiosidades tão só irreverentes da vida nacional. O que está em julgamento são atos que hão de ser considerados graves enquanto quisermos manter a vivência de um Estado democrático de direito.

      Nesta fase derradeira do julgamento, permanecem inabaladas as considerações e conclusões dispostas nas alegações finais da Procuradoria-geral da República. Nos próximos minutos, procederei a um apanhado, inevitavelmente resumido, das múltiplas ações do grupo denunciado, em que se nota uma unidade de propósito, o de impedir a chegada e o exercício do poder pelo presidente que corria pela que concorria pela oposição, e o de promover a continuidade do exercício do poder pelo presidente Bolsonaro, pouco importando os resultados apurados no sufrágio de 2022.

      Uma tentativa de golpe de Estado, de quebra dos elementos essenciais do Estado de Democrático de Direito decorrente do desmantelamento da independência de Poderes, não se dá a compreensão sem que se articule em fatos e eventos múltiplos, de ocorrência estendida no tempo, que conformam o comportamento punido pela lei. No golpe que se consuma, a fratura do regime constitucional se distingue pelo efetivo apoderamento da estrutura estatal à margem dos mecanismos previstos na ordem jurídica, o que é de imediata percepção.

      Já a tentativa de insurreição depende de inteligência de eventos que, desligados entre si, nem sempre impressionam sob o ângulo dos crimes contra as instituições democráticas, mas que, vistos em seu conjunto, destapam uma unidade na articulação de ações ordenadas ao propósito do arbítrio e do desbaratamento das instituições democráticas.

      A denúncia apresentada neste processo, por isso até, não pode ser analisada como uma narrativa de fatos isolados, antes a de ser contemplada como relato de uma sequência significativa de ações voltadas para finalidade malsã, aptas na soma em que se integram, para provocar o resultado que a legislação pune. A idoneidade objetiva dessas ações para ensejar a ofensa ao bem jurídico tutelado se revela na composição geral dos eventos entrelaçados pelo desígnio da quebra da normalidade democrática. Aqui, a ameaça da violência e a sua realidade se revelam nas etapas em que se desenvolve a sequência de práticas voltadas ao assolamento das instituições democráticas. Na sua linha de desenvolvimento ganham evidência e assumem significativa gravidade.

      Os fatos de que a denúncia trata nem sempre tiveram os mesmos atores. Muitos outros, mas todos convergiram dentro do seu espaço de atuação para o objetivo comum de assegurar a permanência do presidente da República da época na condução do estado, mesmo que não vencesse as eleições e mesmo depois de haver efetivamente perdido a preferência dos eleitores em 2022.

      Não uma maquinação desgarrada da realidade prática, tampouco meros atos de cogitação, mas a colocação em marcha de plano de operação antidemocrática ofensiva ao bem jurídico tutelado pelo Código Penal. Para que a tentativa se consolide, não é indispensável que haja ordem assinada pelo presidente da República para adoção de medidas explicitamente estranhas à regularidade constitucional. Neste caso, estaríamos no campo ainda mais contigo ao dar consumo à ação do golpe, se não já na sua consecução.

      A tentativa se revela na prática de atos e de ações dedicadas ao propósito da ruptura das regras constitucionais sobre o exercício do poder, com apelo ao emprego da força bruta, real ou ameaçado. A cooperação entre os denunciados para esse objetivo derradeiro, sob a coordenação, inspiração e determinação derradeira do ex-presidente da república denunciado, torna nítida a organização criminosa no seu significado penal. Ainda que nem todos os denunciados tenham atuado ativamente em todos os acontecimentos relevantes na sequência de quadros em que se desdobraram as ações contra as instituições democráticas, todos colaboraram na parte em que lhes coube, em cada etapa do processo de golpe, para que o conjunto dos acontecimentos criminosos ganhasse realidade. Entrosam-se numa concordância de sentido e finalidade. Por isso, todos os personagens do processo em que a tentativa do golpe se desdobrou são responsáveis pelos eventos que se concatenam entre si.

      O grau de atuação de cada qual no conjunto dos episódios da trama é questão de mensuração da culpa e da pena, mas não da responsabilidade em si pelos acontecimentos. Tem-se, a esta altura, aprovada a cadeia de fatos direcionados a consumar a ruptura democrática. Está visto que, em vários momentos, houve a conclamação pública pelo então Presidente da República de que não se utilizassem as urnas eletrônicas previstas na legislação, sob ameaça de as eleições não virem a acontecer, bem como de resistência ativa, armífera, contra os seus resultados. maquinaram-se insistentes campanhas de informações falsas sobre o processo eleitoral e sobre magistrados que os dirigiam.

      Pretendia-se que os ânimos populares se voltassem contra o Judiciário no seu órgão de culpa e contra os resultados de derrota nas urnas pressentidos e afinal confirmados. Houve a concatenação de expedientes para subtrair competências legítimas do Poder Judiciário, sobretudo do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal. Tudo engendrado para facilitar a consumação da usurpação do poder em etapa posterior do desenvolvimento do golpe, para o que até integrantes do gabinete do governo já estavam listados.

      O presidente da República, comandante maior das Forças Armadas, reuniu os mais altos militares das três forças para dar-lhes a conhecer seus planos. Logo mais, o ministro de Estado da Defesa, ele mesmo, convocou os comandantes militares para revelar-lhes a estratégia a ser adotada. Repare-se bem que a reunião não se deu para que os comandantes tivessem ciência do grave ato a fim de que a ele resistissem energicamente. Não. Foram convocados para aderirem ao movimento golpista estruturado. Foram então expostos a minutas de decretos que estatuiam providências estapafúrdias para a normalidade constitucional a serem tomadas em detrimento das competências do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral e do processo sucessório do Executivo.

      Basicamente, fixava-se que o então presidente da República prosseguiria à frente do governo do país e se impediria a posse e o exercício do cargo pelo candidato que a população escolheu. O comandante da Marinha chegou a assentir ao convite para intervenção no processo constitucional de sucessão do Executivo. Não é preciso esforço intelectual extraordinário para reconhecer que quando o presidente da República e depois o ministro da Defesa convocam a cúpula militar para apresentar documento de formalização de golpe de Estado, o processo criminoso já está em curso.

      Não se está, nesse caso, num ambiente relativamente inofensivo de conversas entre quem não dispõe de meios para operar [ininteligível]. Quando o presidente da República e o ministro da Defesa se reúnem com os comandantes militares, sob a sua direção política e hierárquica, para concitá-los a executar fases finais do golpe, o golpe ele mesmo já está em curso de realização.

      Some-se a isso a campanha ignóbil, determinada pelo militar, candidato à vice-presidência, para destruir o ânimo legalista demonstrado pelos comandantes da Aeronáutica e do Exército ao se afastarem das etapas decisivas do levante. A campanha pela adesão dos comandantes dessas duas forças prosseguiu não somente pela pressão difamatória de grupos sociais, como também por meio de carta pública de militares conjurando comportamento insurrecionista. A campanha ganhou corpo com acampamentos, incentivados e em parte mantidos pelos réus, à frente de instalações militares em vários pontos do país, e mais notadamente em Brasília, diante do Quartel-General do Exército. Ali, com demonstrações diversas, com faixas e discursos inflamados, pedia-se a intervenção militar, nada diferente de golpe militar.

      Passados mais alguns meses, o público, seduzido pelo discurso de inconformismo com a ordem constitucional, passou à ação física. O momento culminante da balbúrdia urdida se deu em 8 de janeiro de 2023, com a tomada dos prédios que sediam os Poderes, com articulada a destruição física do patrimônio público histórico nacional. Mas, já antes, também houve ações de violência acordantes com os desejos do grupo ao tempo da diplomação do novo presidente da República, como a invasão da sede da Polícia Federal em Brasília e atos típicos de terrorismo, como atear fogo em automóveis e ônibus na capital. Chegou-se ao extremo da aproximação do aeroporto de Brasília de caminhão repleto de combustível destinado à explosão.

      A instauração do caos era explicitamente considerada etapa necessária do desenrolar do golpe, para que se atraísse a adesão dos comandantes do Exército e da Aeronáutica. Ao lado disso, a organização criminosa atuava em setores de inteligência para monitorar populações e autoridades, a fim de viabilizar etapas do movimento golpista. Ao tempo do segundo turno das eleições de 2022, agentes da Polícia Rodoviária Federal mapearam localidades em que o candidato da oposição somar a mais expressiva votação no Nordeste, com vistas a criar barreiras artificiais a que esta população conseguisse aceder aos postos de votação.

      Paralelamente se impunha em execução o sinistro plano de prisão e eliminação do ministro do Supremo Tribunal Federal, que presidia o Tribunal Superior Eleitoral, bem como dos candidatos eleitos à presidência e à vice-presidência da República. Essa etapa do golpe foi minuciosamente planejada, com descrição escrita de estágios e de finalidades. O infausto projeto foi desenvolvido em seguida à reunião expositiva que os seus executores mantiveram com o candidato à vice-presidência, com ele debatendo o financiamento necessário que afinal foi obtido.

      O plano Punhal Verde Amarelo recebeu esse nome dos próprios réus. Teve a sua existência e autoria reconhecida pelo general Mário Fernandes, embora dizendo com escasso poder persuasivo que o elaborara como mero exercício de imaginação. Foi implementado nas suas fases de monitoramento físico do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, efetuando-se o traslado de pessoal e armas para Brasília, para que fosse consumado. Efetuando-se a aproximação física do alvo, suficiente para que seus desígnios se completasse. Apenas não se consumou, porque não aconteceu o ato esperado naquele momento de formalização pública do golpe, por decreto do presidente da República.

      Os acusados por esses atos não negam a realidade dos fatos, mas ou buscam educorar-lhes os intuitos ou, ainda sem desmentir como realidades, tentam dela se mostrar alheios. Ao fim do processo, resta certo que houve um combinado de atos orientados a consumar um golpe de Estado que desnaturaria o Estado Democrático de Direito num dos seus elementos basilares, o respeito à escolha livre dos cidadãos do chefe do Executivo.

      Além disso, tentou-se o amesqueamento do Poder Judiciário com o impedimento do exercício regular das suas competências. A violência, além daquela de todos conhecidos pela ampla divulgação das vilanias do 8 de janeiro, foi objeto de ameaça constante. As provas da acusação decorrem de testemunhos e de documentos, vistas no contexto em que se insere, são bastantes para afirmar a convicção segura das práticas repudiadas pela legislação penal.

      Sob o aspecto da violência que permeou os acontecimentos, nota-se em várias oportunidades, de modo límpido, a sua ameaça, na forma de discursos do ex-presidente e em práticas de atos propiciadores da truculência real. A ameaça ganha contornos de maior consistência na medida em que é apoiada em outros atos de atuação contra a legitimidade dos mecanismos normais do processo democrático. Vistos no seu conjunto, discursos contra a legitimidade dos meios eletrônicos de votação e de apuração eleitoral assumem dimensão própria no contexto golpista. Esses pronunciamentos públicos, invariavelmente repetidos, com o propósito de animar apoiadores de medidas insurrecionistas, num ambiente de declínio de chances de êxito normal da candidatura do então presidente da República, assumem feitio bem distinto do exercício legítimo da liberdade fundamental de expressão. Mostram-se aí o que eram, desde a sua origem, artifício de deslegitimação do processo eleitoral para gerar estado de coisas favorável a providências de desrespeito pela força do resultado apurado nas eleições de 2022.

      Esse desrespeito foi concitado e determinado até mesmo para agentes do governo em momentos diferentes. O mesmo fenômeno se flagra nos ataques diuturnos a órgãos de cúpula das instituições democráticas, como o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral. a vida de ministros e dos candidatos vitoriosos no pleito ao Executivo Federal. A utilização da Abin e das forças da Polícia Rodoviária Federal para estruturar mecanismos de contenção de opositores do governo e de eleitores do adversário do então Presidente da República são momentos do golpe postos em andamento em que a violência está presente.

      O uso do monopólio da força pelo Estado para fins de inibição dos direitos fundamentais dos cidadãos configura ato violência por si. Ato violento em si. E é inegável a presença real dessa realidade nas providências adotadas por integrantes da Polícia Rodoviária Federal de retenção de eleitores com o objetivo de atrasá-los no caminho para as urnas. Eleitores estes selecionados a partir do estudo regionalizado do seu pendor por votar no candidato de oposição ao ex-presidente da República denunciado. Da mesma forma, se qualifica no domínio do termo violência a convocação de responsáveis por tropas militares para ultimar medidas de quebra da constituição. a incitação a movimentos de repúdio ao resultado eleitoral, minuciosamente concatenada por longo tempo, acolhia a violência física que efetivamente se deu, e de modo crescente, a partir do resultado das urnas de 30 de outubro de 2022.

      O apoio da organização criminosa a acampamentos em frente a quartéis em várias localidades, em especial em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília, onde se clamava abertamente por intervenção militar e intervenção federal por parte das Forças Armadas, vale dizer, onde se exortava ao Putin, igualmente se insere no contexto da atuação efetiva por atitude de ruptura com a democracia por meio da violência. Paralisação forçada de caminhoneiros, flagrantes de atentados à bomba, convulsão nas ruas de Brasília em seguida à perda das eleições pelo ex-presidente da República são atos de violência que se vinculam ao atentado posto em curso contra as instituições democráticas.

      O apogeu violento desses atos previstos, admitidos e incentivados pela organização criminosa ocorreu no dia 8 de janeiro de 2023 com a tomada por turba de apoiadores do ex-presidente da República das sedes de todos os três Poderes federais com depredação generalizada, sob gritos e urros incivis, mas com método e organização, acarretando feridos e saldo de elevados prejuízos materiais.

      Organização e método, a propósito, permeou o processo criminoso. Havia previsão de medidas de intervenção inaceitáveis, condicionalmente, sobre o exercício das atividades do Poder Judiciário. Elaboração de estrutura de poder a ser construída no desenrolar do golpe, bem como acertos de prisões espúrias e substituição de titulares de cargos públicos. Minutas de decretos instituindo essas providências foram encontradas e referidas, bem como até de discurso a ser proferido pelo ex-presidente da República logo após a consumação do golpe.

      O golpe não se consumou, uma vez que, não obstante tentado e insistentemente pelos denunciados, não obteve a adesão dos comandantes do Exército e da Aeronáutica. O empenho para cooptá-los ao empreendimento criminoso e, portanto, para levar o golpe a cabo, assumiu diversas formas, envolvendo ataques virtuais aos militares de alta patente que mantiveram, enfim, as Forças Armadas fiéis à vocação democrática que a Constituição lhes atribuiu.

      Houve, nesse sentido, a apresentação do plano de golpe pelo comandante maior das Forças Armadas, o próprio presidente da República, e pelo ministro do estado da Defesa. Da mesma forma, o propósito de criar clima de convulsão social foi posto em prática pelos insurrectos no intuito de atrair especialmente o Exército para a atitude antidemocrática.

      O golpe tentado não se consumou pela fidelidade do Exército, não obstante o desvirtuamento de alguns dos seus integrantes, e da Aeronáutica, a força normativa da Constituição Democrática em vigor. Todos esses acontecimentos descritos na denúncia estão confirmados pelas provas de que os autos estão refertos. É útil referir que as provas mais eloquentes foram sendo descobertas pela argúcia das investigações encetadas pela Polícia Federal. Aconteciam mais das vezes que elas serem confirmadas adiante pelo colaborador Mauro Cid.

      A denúncia revela com precisão e riqueza de detalhes a estruturação e atuação de organização criminosa entre meados de 2021 e início de 2023, com o claro propósito de promover a ruptura da ordem democrática no Brasil.

      O grupo, liderado pelo presidente Jair Bolsonaro e composto por figuras chaves do governo, das Forças Armadas e de órgãos de inteligência desenvolveu e implementou plano progressivo e sistemático de ataque às instituições democráticas com a finalidade de prejudicar a alternância legítima de poder nas eleições de 2022 e minar o livre exercício dos demais poderes constitucionais, especialmente do Poder Judiciário.

      A denúncia não se baseou em conjecturas ou suposições frágeis. Os próprios integrantes da organização criminosa fizeram questão de documentar quase todas as fases da empreitada. Assim, por exemplo, a denominada Operação 142, alusão equivocada ao artigo da Constituição, foi encontrada em pasta intitulada 'Memórias Importantes'. A instrução processual serviu para reforçar o poder persuasivo de todos os manuscritos, arquivos digitais, planilhas, discursos prontos e trocas de mensagem sobre o plano de ruptura da ordem democrática aprendidos durante a investigação.

      As testemunhas ouvidas em juízo, especialmente os ex-comandantes do Exército e da Aeronáutica, confirmaram que lhes foram apresentadas, em mais de uma ocasião, minutas que decretavam medidas de exceção, cujos fundamentos não se ajustavam às hipóteses constitucionais e eram, de consequência, impensáveis no Estado Democrático de Direito.

      As providências previam anulação das eleições, prisão de autoridades públicas e intervenção em Tribunal Superior. Os relatos assentaram que as medidas seriam assinadas tão logo obtido o apoio das Forças Armadas. Os comandantes confirmaram terem sido instantaneamente pressionados, inclusive por meio de ataques virtuais, a aderir ao intento disruptivo.

      Desde o início da prática de seus atos executórios, a organização criminosa desejou, programou e promoveu a inclusão da rebeldia popular. A todo momento, pela narrativa e propaganda, o grupo buscou a instabilidade social. A revolta popular serviria como fator de legitimação para que fossem decretadas as medidas de exceção. Para se aliciar o apoio popular, disseminava-se a desconfiança no processo eleitoral e se promovia o incitamento à animosidade contra os Poderes constituídos.

      A tentativa de convencimento de autoridades do Exército e da Aeronáutica para o golpe não obteve o êxito esperado. O grupo conspirador enxergou, então, na geração de um cenário de instabilidade social, uma conjuntura útil para os seus propósitos, apta a motivar providências interventivas, arrastando o Exército para o proscênio das peripécias aspiradas.

      O 8 de janeiro de 2023, se não terá sido objeto ou objetivo principal do grupo, passou a ser desejado e incentivado quando se tornou a derradeira opção disponível. A ideia de manifestações na Praça dos Três Poderes, especialmente diante do Supremo e do Congresso Nacional, já estava no painel de ações animadas pelo grupo.

      Em troca de mensagens eletrônicas, realizada em 11 de novembro de 2022, Rafael Martins de Oliveira indagou a Mario Cid: 'Aí, o pessoal tá querendo a orientação correta da manifestação. A pedida é ir para o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal? As Forças Armadas vão garantir a permanência lá?' Perguntas recebidas. O réu colaborador respondeu: 'Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal. Vão'.

      Os acampamentos de apoiadores e propugnadores do golpe na frente das organizações militares, sobretudo do Exército, eram incentivados, sendo parte importante da estratégia. Apurou-se que em 2 de novembro de 2022, em 5 de novembro de 2022, em 13 de novembro de 2022, em 18 de novembro de 2022, Mário Fernandes, à época chefe substituto da Secretaria-Geral da Presidência, esteve pessoalmente no acampamento montado em Brasília, conforme fotografias encontradas no seu dispositivo celular.

      Além do contato com manifestantes, comprovou-se o estreito vínculo entre o secretário e as principais lideranças populares. Foram fartas as comunicações entre Mário Fernandes e o líder do movimento de caminhoneiros, Lucas Durlo, que revelaram o suporte moral e material fornecido pelo governo de Bolsonaro às manifestações antidemocráticas. Os autos estampam diversos pedidos de orientações ao presidente da República por via de Mário Fernandes sobre como proceder nas atividades dos acampados.

      Mauro César Barbosa Cid confirmou que Bolsonaro deliberadamente estimulava a expectativa da população a fim de provocar situação que justificasse a intervenção das Forças Armadas. Em depoimento no Supremo Tribunal, ele disse: "O então presidente sempre dava esperanças de que algo fosse acontecer para convencer as Forças Armadas a concretizarem o golpe. Esse foi um dos motivos pelos quais o então presidente Jair Bolsonaro não desmobilizou as pessoas que ficavam na frente dos quartéis."

      Mauro Cid também ressaltou a relevante participação de Braga Neto na incitação dos movimentos populares, afirmando que ele mantinha contato entre os manifestantes acampados na frente dos quartéis e o presidente da República. Braga Neto significativamente, após as eleições, exortou os manifestantes a manter o ânimo. Em 18 de dezembro de 2022, deixou-se gravar, dizendo aos manifestantes que guardassem esperança, "porque ainda não havia terminado e algo iria acontecer". E aconteceu.

      É inegável a surpreendente sofisticação tática de algumas das ações adotadas pelos populares durante os atos de destruição de 8 de janeiro. A denotar a presença de especialistas entre eles. Ganha crédito o informe de Mauro Cid sobre a inserção nos acampamentos militares com formação de militares com formação em forças especiais, os chamados "kids pretos", altamente treinados em "operações de guerra irregular".

      Durante a invasão, objetos comuns foram usados de forma estratégica. Grades de segurança foram habilidosamente improvisadas, como escadas, para permitir o acesso à parte superior dos edifícios. Mangueiras de incêndio foram acionadas pelos agressores, de forma coordenada, para dissipar os gases das bombas de intervenção tática lançadas pelas forças de segurança. A utilização criativa de equipamentos indica conhecimento prévio de estratégias de combate e capacidade de improvisação que garantiram o prolongamento da ofensiva contra as instituições democráticas.

      A identificação de técnicas de guerrilha somadas à influência dos "kids pretos" aponta para uma ação muito mais complexa do que a de uma mera explosão improvisada, desconexa e amadora de um genérico descontentamento popular. Evidenciou-se que a organização criminosa contribuiu, até o último momento, para que a insurgência popular levasse o país a um regime de exceção.

      Os integrantes da estrutura criminosa conheciam o intuito de criação do cenário de comoção social. Desde 2021, adotava-se a tática de gerar desconfiança e animosidade contra as instituições democráticas. Todos aderiram à organização criminosa, cientes do que defendia o presidente Jair Bolsonaro e contribuíram, em divisão de tarefas, para a consumação do projeto autoritário de poder.

      O desfecho era previsto por todos e correspondia ao móvel central do grupo, atraído e exposto no artigo 29 do Código Penal. A organização criminosa documentou, como dito, a quase totalidade das ações narradas na denúncia, por meio de gravações, manuscritos, arquivos digitais, planilhas e trocas de mensagens eletrônicas, tornando ainda mais perceptível a materialidade delitiva. Não há como negar fatos praticados publicamente, planos apreendidos, diálogos documentados e bens públicos deteriorados.

      Se as defesas tentaram minimizar a contribuição individual de cada acusado e buscar interpretações distintas dos fatos, estes mesmos fatos, contudo, não tiveram como ser negados. Encontra-se materialmente comprovada a sequência de atos destinados a propiciar a ruptura da normalidade do processo sucessório.

      Não há dúvida de que a organização criminosa quis desacreditar publicamente o sistema eletrônico de votação, valendo-se de recursos e de agentes públicos. Mobilizou também o braço armado do Estado, tanto para prejudicar a livre manifestação de vontade popular, quanto para ensejar permanência no poder, de modo desvinculado do processo eleitoral após a derrota nas urnas.

      Assim é que fatos e atos que as ilustradas defesas pretendem ser anódinos ganham sentido criminal como elos de sequência necessária e voltada para fins de golpe.

      Dessa forma se entende o vídeo da live de 29 de julho de 2021 em que o ex-presidente da República assegurou, ameaçador, que as Forças Armadas estariam prontas para agir a qualquer tempo. Comprovou-se que o então presidente atuou para que a narrativa falaciosa fosse replicada por todos os meios e canais. No dia 3 de agosto de 21, em entrevista amplamente divulgada por veículos de imprensa, o então presidente sugeriu, em tom inequívoco, a adoção de medidas de força contra o poder judiciário, focando em tribunais superiores. Durante seu pronunciamento, aludindo diretamente ao ministro Roberto Barroso, afirmou ser necessário "um último recado para que eles entendam o que está acontecendo".

      Impalpável ação de intimidação institucional. Repetiu a estratégia já conhecida de confundir povo e militância ideológica, utilizando a simbiose retórica para legitimar as ameaças às autoridades constituídas. Vejam mais o que ele disse:

      "Se o ministro Barroso continuar sendo insensível como parece que está sendo insensível, se o povo assim o desejar, porque devo lealdade ao povo brasileiro, uma concentração na Paulista para darmos o último recado para aqueles que ousam açoitar a democracia. Repito, o último recado para que eles entendam o que está acontecendo. Passem a ouvir o povo e eu estarei lá"

      No dia seguinte, em 4 de agosto, o presidente Bolsonaro voltou a utilizar uma transmissão ao vivo, desta vez no programa "Os Pingos nos Is", da Jovem Pan, para reiterar alegações infundadas quanto ao sistema eletrônico de votação. Alegou sem prova que o código-fonte das urnas eletrônicas teria sido acessado por um hacker em 2018, com potencial para interferir no resultado eleitoral. Acusou o Tribunal Superior Eleitoral de acobertar tais fatos e dirigiu ataques diretos ao ministro Barroso, a quem chamou de mentiroso. A narrativa de fraude se agravava e os alvos institucionais se tornavam cada vez mais definidos.

      A estratégia golpista articulada alcançou um novo patamar de radicalização nos discursos públicos proferidos pelo presidente em 7 de setembro de 2021, tanto na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, quanto na Avenida Paulista, em São Paulo. Aproveitando-se do prestígio da data cívica, o então presidente tornou a insuflar a militância contra os ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, em mais uma etapa do plano de subversão da ordem constitucional.

      Em seu pronunciamento na Avenida Paulista, de novo atacou o sistema eletrônico de votação, qualificando-o como farsa. Porventura, patrocinada pelo TSE. Os ataques foram direcionados especialmente aos ministros Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, então presidentes respectivamente do Tribunal Superior Eleitoral e do inquérito das fake news no Supremo.

      Referindo-se ao presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luiz Fux, o réu elevou o tom das ameaças e repetiu o ultimato: "Ou o chefe desse poder enquadra o seu, ou esse poder pode sofrer aquilo que não queremos, porque nós valorizamos, reconhecemos e sabemos o valor de cada poder da República".

      As palavras proferidas no dia da celebração nacional da independência não podem ser confundidas com um arroubo isolado, mas expõem o projeto autoritário. O presidente incitava desabridamente a animosidade contra o Poder Judiciário e os seus integrantes. A escalada verbal foi acompanhada por manifestações organizadas, em que apareciam faixas com pedido de intervenção militar.

      Foi nesse contexto que o presidente Jair Bolsonaro tornou pública, no Dia da Pátria, a sua recusa em aceitar uma alternância democrática de poder em frases como, não poderia participar de uma farsa como essa patrocinada pelo TSE. E esta outra? "Só saio preso, morto ou com vitória. Quero dizer aos canalhas que nunca serei preso."

      Em todas essas ocasiões, se levantaram críticas ao sistema de votação baseadas em premissas viciadas, em desnaturação de fatos, enfim, em suspeitas vazias, sempre desfeitas pela Justiça Eleitoral, de modo nunca contestado na sua exatidão técnica. A finalidade era inequívoca, fomentar desconfiança generalizada no processo eleitoral, incitar a militância contra os poderes constituídos e dispor a população para rechaçar a derrota nas urnas. A apropriação das estruturas, datas cívicas e símbolos estatais em favor dessa narrativa indicam a gravidade do desvio de finalidade.

      Procurava-se revestir de legitimidade uma trama de ruptura. As constantes manifestações do presidente nessa diretriz se inseriam na estratégia de disseminação sistemática de inverdades e mobilização ideológica disposta para a fidelização de sua base de aliados e para o desgaste dos alicerces democráticos.

      Foram apreendidos manuscritos e arquivos eletrônicos reveladores do plano de desacreditar reiteradamente o processo eletrônico de votação. O planejamento prévio de fabricação de discurso contrário às urnas eletrônicas está demonstrado na agenda apreendida na residência de Augusto Heleno e em arquivos encontrados com Alexandre Ramagem. Nele se verifica a estruturação de diversos ataques à confiabilidade das urnas eletrônicas. A escalada da agressividade discursiva não era episódica nem improvisada. Integrava a execução de propósito orientado à corrosão progressiva da confiança pública nos procedimentos democráticos.

      A deslegitimação seletiva de agentes do Estado, especialmente ministros do STF e do TSE, cumpria a função de predispor a opinião pública para as ações excepcionais, apresentadas como reativas e não golpistas. É interessante observar que, nas últimas décadas, em todo o mundo, a dinâmica do autoritarismo tem início no desmonte dos órgãos de controle, em especial as cortes constitucionais. Essas instituições são essenciais para o equilíbrio democrático. Funcionam como guardiões dos valores constitucionais permanentes que, não raro, contrastam com ímpetos populistas nos instantes de maior efervescência política. E é justamente desses arroubos que depende a marcha do autoritarismo.

      Não é à toa que o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral se tornaram alvos ostensivos e prioritários do ataque dos grupos. Assim, em procedimento de busca e apreensão, foi descoberta gravação de reunião ministerial ocorrida em 5 de julho de 2022, promovida pelo presidente Bolsonaro, acompanhado de seu ajudante de ordens, Mauro Cid, com a presença de ministros de Estado, comandantes das Forças Armadas e outras autoridades do alto escalão do governo federal. A tática de ataque ao sistema eleitoral vigente.

      Participaram do encontro Anderson Torres, Augusto Heleno, Mário Fernandes, Almir Garnier e Paulo Sérgio Nogueira, além de Walter Barga Netto e dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. No início da reunião, o presidente acusou o narcotráfico de financiar o seu adversário. Luiz Inácio Lula da Silva e outros presidentes da América do Sul. Atribuiu às urnas eletrônicas do TSE uma manipulação antecipada dos resultados, afirmando que os números já estão dentro dos computadores. Exigiu, afinal, que os ministros replicassem a sua narrativa sobre a suposta vulnerabilidade das urnas. Anunciou mais. Que se reuniria com embaixadores de países estrangeiros lotados no Brasil para mostrar o que está acontecendo e reiterar as suas alegações de fraude. Dirigiu ataques diretos aos ministros Fachin, Barroso e Alexandre de Moraes, questionando-lhes a imparcialidade e acusando o Supremo Tribunal Federal de ser um "supersupremo", que atuaria, nas suas palavras, fora das quatro linhas da Constituição.

      A pressão sobre participantes foi reiterada por Anderson Torres, Walter Braga Netto, Paulo Sérgio Nogueira, Augusto Heleno e Mário Fernandes, tornando-se explícita a unidade de desígnios do grupo, voltada à rejeição antecipada da vontade popular. Na ocasião, Jair Bolsonaro chegou a interromper o general Augusto Heleno, quando este revelou que a Abin continuava sendo instrumentalizada para fins ilícitos, no caso, para a infiltração de agentes nas campanhas eleitorais.

      A corrupção se deu pelo receio de vazamento. A reunião se encerrou, deixando clara a intenção de deslegitimar o resultado eleitoral, estimular a difusão de fake news e articular discurso de insurgência institucional. Pouco depois, conforme anunciado na reunião ministerial de 5 de julho, o presidente Jair Bolsonaro, na condição de chefe de Estado, convidou formalmente os mais altos representantes diplomáticos e estrangeiros acreditados no Brasil, bem como autoridades nacionais, para um encontro no dia 18 de julho, no Palácio da Alvorada, na ocasião, proferiu novamente discurso com investidas infundadas sob a confiabilidade do sistema eletrônico de votação e apuração adotado pelo Tribunal Superior Eleitoral.

      O então presidente alertou que, sob esse sistema, estava-se na iminência de se realizarem eleições viciadas e ilegítimas, que estariam maliciosamente dirigidas para beneficiar o seu principal adversário com o beneplácito de ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral. O discurso antidemocrático ganhou difusão pelo país por meio de sistemas de televisionamento público federal e mediante reprodução em redes sociais do réu, com o que alcançou o conjunto dos eleitores brasileiros e não apenas os representantes diplomáticos.

      O discurso solene proferido pelo chefe de Estado procurava revestir de aparente verossimilhança as alegações falaciosas. Reiterando diversas falas anteriores, reforçava a estratégia da organização de comprometer a estabilidade institucional e preparar também a comunidade internacional para a rejeição dos resultados das urnas. Pouco depois, iniciou-se o período eleitoral no mês de agosto de 2022. Até a chegada do pleito eleitoral, as informações falsas sobre o sistema eletrônico de votação continuaram sendo difundidas pelo réu e pela organização criminosa de forma contínua, especialmente por meio virtual.

      Após o resultado do primeiro turno das eleições gerais de 2022, e tornando-se mais próxima e real a perspectiva de derrota no pleito, o grupo precisou ampliar a sua frente de ação mediante o uso ainda mais ostensivo da máquina pública a fim de interferir diretamente no processo de eleição e assegurar a permanência do líder da organização no poder.

      Os réus se utilizaram, especialmente da estrutura da Polícia Rodoviária Federal, sob o comando de Silvinei Vasques, para obstruir o funcionamento do sistema eleitoral. A estratégia era de dificultar a participação dos eleitores que fossem presumidos contrários ao então presidente. E o plano foi posto em prática. Na implementação do esquema antidemocrático, o grupo contou com significativa atuação de Anderson Torres, Marília Alencar e Fernando Oliveira, que mais adiante integrariam a cúpula da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, responsável pelo emprego das forças de segurança nos atos de insurgência de 8 de janeiro de 2023. O intento de utilização da estrutura do Estado em benefício do candidato à reeleição ficou explícito na produção de um Business Intelligence, BI, dedicado aos resultados eleitorais.

      O objetivo era coletar informações sobre os locais onde Lula da Silva havia obtido uma votação expressiva no primeiro turno e onde Bolsonaro havia sido derrotado, com foco especial nos municípios da região Nordeste. Durante as reuniões e apresentação e discussão do policiamento direcionado, os principais executores do intento explicitaram aos presentes o objetivo de propiciar a permanência de Jair Bolsonaro no poder. Essa meta foi reconhecida nos depoimentos prestados pelas testemunhas Adiel Alcântara e Clebson de Paula Vieira.

      Ao comentar a reunião de 19 de outubro de 2022, em que estavam presentes Anderson Torres e Silvinei Vasques, da mesma forma, Marília Alencar descreveu a tônica do evento. Avaliando o comportamento de Anderson Torres, então ministro da Justiça: "Isento coisa nenhuma. Eu traduzo para a linguagem urbana o que foi dito. Meteu logo um 22". Paralelamente, mensagens eletrônicas e depoimentos confirmam ter sido postergada a divulgação do relatório produzido por autoridades militares que abonava a idoneidade do sistema eletrônico de votação e dos procedimentos eleitorais no primeiro turno.

      O atraso atendia ao intuito de manipular a inteligência popular e manter clima de indignação e revolta criado e fomentado pela organização. Sobre a apropriação das estruturas de Estado, merece realce novamente a atuação atípica da Abin durante o governo Bolsonaro. O então diretor-geral da agência, Alexandre Ramagem, dispunha de sala própria no Palácio do Planalto, local onde despachava regularmente com o Presidente da República.

      O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o general Augusto Heleno, também manteve todo o tempo o contato próximo com o presidente, conforme ele próprio atestou em juízo dizendo: "Não houve um afastamento meu do presidente. Eu recebia o presidente diariamente na chegada dele ao Palácio e o acompanhava até o gabinete. Muitas vezes eu assistia às audiências de ministros com ele. Então eu ficava bem informado, porque eu ouvia, mas era pouca gente. Saía, ia pro meu gabinete. Mas eu tinha acesso assegurado ao gabinete presidencial. Eu não me afastei do presidente."

      A Abin e o GSI operavam como instâncias de inteligência paralela, prontamente acionados pelo presidente da República, com acesso direto e sem intermediação. Esse núcleo atuava como central de conta da inteligência da organização, utilizando indevidamente ferramentas de pesquisa e monitoramento da Abin para espionar, sem autorização judicial, adversários políticos. Ainda, documentos apreendidos com Ramagem e Heleno, destinados a orientar as ações de Jair Bolsonaro, revelam que estava em pauta a adoção de providências formais de descumprimento de ordens judiciais que o Executivo considerasse manifestamente ilegais.

      Outro braço da organização cuidou de obter, de um instituto dedicado a assuntos eleitorais, documento que afirmava que Bolsonaro ganhara as eleições, uma vez computadas as urnas válidas. Que consideravam válidas. Afirmava-se que técnico altamente qualificado teria descoberto que apenas as urnas fabricadas em 2020 deveriam ser consideradas aptas para o funcionamento. Se fosse esse o caso, as eleições teriam sido vencidas por Jair Bolsonaro.

      Descobriu-se, porém, que o relatório técnico fora deturpado nos seus termos, que o seu autor não admitira, em nenhum tempo, que parte das urnas seria imprópria, tendo ao contrário sustentado não haver nenhuma evidência válida que corroborasse semelhante tese. Ainda assim, o relatório subsidiou provocação ao TSE, que descartou de logo a sua utilidade. O relatório e a decisão da Justiça tornaram-se instrumentos de manipulação das bases populares do governo, servindo para acendrar desconfianças e ao vitimismo do presidente não reeleito. A organização criminosa se empenhou na execução dos planos operacionais de instauração de balbúrdia social.

      É o que se verificou na reunião realizada em 12 de novembro de 2022, na residência funcional do General Braga Neto, com a presença de Rafael Martins de Oliveira, Hélio Ferreira Lima e Mauro Cid. Ali, os denominados "kids pretos", que é a nomenclatura atribuída a militares com formação em forças especiais, debateram as ações clandestinas enfeixadas com o nome de Copa 2022, destinadas a neutralizar o ministro Alexandre de Moraes nos moldes previstos pelo plano de sugestivo nome "Punhal Verde Amarelo". Havia também a previsão de morte por envenenamento do presidente da República eleito e a morte do seu vice.

      Os autos confirmam a prática de atos de início de execução desses planos, com atividade de seguimento das autoridades e compartilhamento de dados de segurança. Previa-se o uso de armamentos pesados e se admitia alta probabilidade de óbitos, além daqueles dos alvos principais.

      O plano "Punhal Verde Amarelo" estava em linha com outros documentos relevantes também descobertos em poder dos réus. A planilha com o nome "Desenho Op Luneta" minudenciava as etapas de implementação do golpe de Estado com análise de fatores estratégicos de planejamento. Estava declinado o objetivo de "restabelecer a lei e a ordem por meio da retomada da legalidade e da segurança jurídica e da estabilidade institucional". Confirmando o intuito da organização criminosa de desconstituir as estruturas vigentes com base em suas próprias noções de lei e ordem. Havia previsão de não admitir governo ligado a ideologias de esquerda.

      O documento antecipava um decreto a ser assinado por Jair Bolsonaro a fim de institucionalizar a tomada de poder e apontava a necessidade de uma "estrutura de apoio para o estabelecimento de um gabinete central de crise e gabinetes estaduais".

      Outros documentos físicos, apreendidos na sede do Partido Liberal, de conteúdo muito semelhante, reforçam a unidade de desígnios dos integrantes da organização criminosa e a ação coordenada em favor de Jair Bolsonaro. Na mesa ocupada pelo coronel Flávio Peregrino, então assessor de Walter Braga Netto, foi encontrada a pasta denominada "Memórias Importantes", que continha esboço da denominada Operação 142 e traçava ofensivas contra o Supremo Tribunal Federal, a assinatura de decreto presidencial e o controle da narrativa midiática.

      O plano também previa ações claramente voltadas à restrição de exercícios das atribuições de instituições democráticas. Falava em anulação das eleições, provocação dos mandatos e substituição de todo o TSE.

      No tópico "Linhas de Esforço", o arquivo propunha ações de interrupção do processo de transição, mobilização de juristas e formadores de opinião e enquadramento jurídico do decreto no artigo 142, aquele mecanismo de rejeição das decisões do Supremo que desagradassem o poder Executivo.

      Deixava-se evidente o escopo do grupo de depor o governo legitimamente eleito e permanecer no poder de forma autoritária. Esse objetivo chegou a ser declarado de forma expressa ao final do documento, em que se lia: "Lula não sobe a rampa".

      O objetivo comum de permanência no poder também é extraído de outro documento encontrado na sede do Partido Liberal, na sala do próprio ex-presidente Bolsonaro. O material arrecadado consistia num texto impresso sobre declaração de "Estado de Sítio e decretação de Operação de Garantia da Lei e da Ordem". Tratava-se do discurso a ser recitado pelo ex-presidente Bolsonaro no momento da efetivação do golpe. O mesmo texto também foi encontrado no aparelho celular de Mauro Cid.

      O discurso encontrado na sala de Jair Bolsonaro reforça a convicção a respeito do domínio que ele possuía sobre as ações da organização criminosa, especialmente quanto ao desfecho desejado: a sua permanência autoritária no poder mediante o uso da força.

      É certa também a realidade das convocações do alto comando das Forças Armadas para apresentação, inclusive pelo presidente da República, de medidas de exceção que impediriam a posse do novo governo eleito. Provam-no depoimentos, registros de entrada no Palácio da Alvorada, minutas apreendidas em poder dos acusados e conversas de WhatsApp sobre as reuniões de apresentação do decreto golpista.

      As minutas golpistas foram sendo refinadas ao longo do tempo. Assim, se a primeira previa a prisão de dois ministros do Supremo Tribunal e do presidente do Senado Federal, mais adiante, os conjurados acharam suficiente o encarceramento do presidente do TSE.

      A primeira dessas minutas foi apresentada em 7 de dezembro de 2022, em reunião convocada pelo próprio presidente Bolsonaro. Comprovou-se a realização de uma série de encontros arranjados para congeminar as medidas de exceção: "GLO", "Estado de Sítio", "Estado de Defesa", etc. Todas estranhas e hostis às normas constitucionais.

      Nos dispositivos eletrônicos de Mauro Cid foram encontrados registros fotográficos de uma das versões do decreto golpista. Em juízo, o general Freire Gomes confirmou que Jair Bolsonaro apresentou a ele minuta golpista semelhante, prevendo institutos excepcionais como os revelados na mídia apreendida pelas investigações. O comandante da marinha prontamente assentiu ao projeto e se dispôs a fornecer tropas.

      A resistência que houve foi das duas outras armas. Apurou-se que se contava para operacionalizar o golpe com a participação, como líder militar, do general Estevam Theophilo, então comandante do Comando das Operações Terrestres (Coter). Essas condutas foram expressão concreta da estratégia da diluição do Estado Democrático de Direito por meio da força bruta das Forças Armadas.

      O argumento de que não haveria possibilidade lógica de golpe de Estado no curso do próprio mandato de Jair Bolsonaro é inconsistente. O sujeito ativo do delito pode ser qualquer pessoa, inclusive o próprio chefe do Executivo.

      O crime de golpe de Estado, previsto no artigo 359-M do Código Penal, não visa proteger a figura pessoal do governante, mas sim a forma legítima de exercício do poder político. O bem jurídico tutelado é a ordem democrática como expressão institucional da soberania popular, e não a integridade física ou moral do chefe de governo.

      Isso significa que a norma penal incide sempre que se tenta romper, de forma violenta ou com ameaça de força, o ordenamento constitucional, ainda que isso se dê por ação daquele que legitimamente ascendeu ao poder anteriormente.

      O auto golpe nesse cenário é também golpe punível, consistindo em desvio funcional gravíssimo, já que se origina dentro das instituições e opera contra elas.

      Antes de encerrar, observo que por ocasião das alegações finais, a Procuradoria-geral da República reafirmou a validade do acordo de colaboração premiada celebrada por Mauro Cid na Polícia Federal. Os relatos de Mauro Cid foram úteis para o esclarecimento dos fatos relacionados à investigação. Embora a Polícia Federal tenha descoberto a maior parte dos eventos descritos na denúncia de forma independente, a colaboração de Mauro Cid acrescentou-lhes profundidade.

      A manifestação final da Procuradoria buscou, entretanto, refletir o valor das contribuições ao processo investigativo ponderando omissões percebidas. Sabidamente, o acordo de colaboração é negócio jurídico em que o réu reconhece a prática dos delitos, daí ser de se desprezar, por paradoxal, a negativa expressa no instante das alegações finais de participação no empreendimento criminoso delatado. Não custa recordar que não existe entre nós a figura da mera testemunha premiada.

      Enfim, o conjunto dos fatos relatados na denúncia e suficientemente provados ao longo do feito, que obedeceu pontualmente aos parâmetros do devido processo legal, leva a Procuradoria-geral da República a esperar juízo de procedência da acusação deduzida.

      Muito obrigado."

      * O áudio da leitura do relatório do ministro do STF Alexandre de Moraes foi processado por ferramenta de inteligência artificial e revisado pela Folha de S. Paulo.

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