Facções montam bancos digitais para lavar bilhões no Brasil
Fintechs investigadas pela PF, MP e polícias civis movimentaram mais de R$ 28 bilhões em seis anos
247 - Com promessas de “liberdade financeira” e “controle total”, fintechs com atuação em cidades como Mogi das Cruzes, Campinas e São Paulo ostentam nas redes sociais imagens geradas por inteligência artificial que vendem a ilusão de riqueza fácil. A linguagem tecnológica e o apelo à modernidade, porém escondem uma realidade alarmante: parte dessas instituições é suspeita de atuar como engrenagem financeira de facções criminosas.
Segundo o jornal O Globo, ao menos oito empresas investigadas pela Polícia Federal, Ministério Público e polícias civis de São Paulo e do Rio de Janeiro, estariam lavando dinheiro do tráfico de drogas e armas para o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV). Ao longo de seis anos, essas instituições movimentaram cerca de R$ 28,2 bilhões — um valor que supera o orçamento da capital mineira e representa mais da metade da previsão orçamentária da cidade do Rio de Janeiro para 2025.
As conclusões fazem parte de mais de 3 mil páginas de documentos acessados pelo jornal, com base em relatórios e denúncias de operações policiais. A investigação escancara como a “fintechização” do sistema financeiro — marcada pela proliferação de startups que oferecem serviços bancários com menos burocracia — acabou sendo capturada por organizações criminosas.
“Ao usar essas ferramentas, o criminoso evita o risco de ser assaltado ou de não receber o pagamento no dólar-cabo. Algumas fintechs funcionam como verdadeiros paraísos fiscais”, afirmou o promotor Fábio Bechara, do Ministério Público de São Paulo, responsável por ações contra instituições associadas ao PCC.
De acordo com a reportagem, os investigadores apontam que essas fintechs não apenas facilitam a lavagem de dinheiro, mas também oferecem blindagem patrimonial e operacional por meio de estruturas como as chamadas “contas bolsão”, nas quais os verdadeiros beneficiários das operações não aparecem formalmente nos extratos, dificultando o rastreamento por parte das autoridades. Em nota, o Banco Central afirmou que realiza monitoramento constante das instituições e que tem aperfeiçoado a regulação para evitar o uso do sistema financeiro por criminosos.
Entre os casos investigados, está o da 4tbank, fintech fundada em 2019 com o slogan de ser o “primeiro banco cripto do Brasil”. Oficialmente no nome de uma jovem de 24 anos, a empresa teria movimentado R$ 500 milhões em quatro anos, incluindo R$ 80 milhões em dinheiro vivo.
De acordo com a Polícia Civil, o verdadeiro operador da 4tbank seria João Gabriel de Mello Yamawaki, padrasto da jovem e investigado por sua proximidade com o PCC. Ele estaria prestes a ser “batizado” na facção e a assumir uma posição na estrutura financeira do grupo. Yamawaki está foragido.
A defesa reconhece que ele era o gestor da empresa, mas nega qualquer relação com o crime organizado. “Ele refuta que seria batizado por organização criminosa”, declarou o advogado André Jardim de Siqueira Branco. Apesar de ser associada ao PCC, a 4tbank também teria sido utilizada pelo Comando Vermelho, segundo a Polícia Civil do Rio de Janeiro. A atuação conjunta das duas maiores facções do país nesse tipo de operação financeira foi classificada como uma “aliança estratégica e logística”.
“É um negócio altamente vantajoso. Melhor que arrumar laranjas e milhares de contas. Você abre o próprio banco digital e movimenta dinheiro no mundo todo comprando criptoativos”, explicou o promotor Lincoln Gakyia, especializado no combate ao PCC. O advogado da empresa, André Marques Martins, afirmou que a 4tbank pode comprovar a origem dos recursos movimentados e negou envolvimento com organizações criminosas.
Outra fintech, a 2GO Instituição de Pagamento, criada em 2020, é acusada de chefiar um “sistema bancário ilegal” que teria lavado R$ 6 bilhões, com transações que circularam por ao menos 15 países. A empresa operava com USDT, moeda digital pareada ao dólar, e recebia pagamentos em reais de empresas de fachada ligadas a investigados por crimes como tráfico e fraudes digitais.
Ainda de acordo com a reportagem, um relatório do Coaf revelou que a 2GO também movimentou cerca de US$ 80 milhões com contas sancionadas por Israel. A defesa do ex-diretor da empresa, Cyllas Salerno Júnior, classificou as acusações como “infundadas, desprovidas de respaldo técnico-jurídico” e negou qualquer conduta ilícita por parte da fintech ou seus representantes.
O relatório revela ainda as principais estratégias das facções: fracionamento de valores em pequenas transações para burlar sistemas de alerta, uso de criptomoedas para dificultar o rastreamento, abertura de contas em nome de laranjas e empresas fictícias, além de empréstimos fraudulentos pagos com dinheiro do crime.
Essas operações permitem que valores de origem ilícita entrem no circuito financeiro oficial, segundo explica o delegado da Polícia Federal André Ribeiro: “A dimensão do problema é gigantesca. Permite ocultar e dissimular valores dentro do próprio sistema oficial, e as investigações mostram que não há controle sobre os clientes das fintechs por parte dos bancos”.
Entre os exemplos de blindagem patrimonial, destacam-se a T10 Tecnologia e a I9Pay, suspensas pela Justiça. Ambas operavam “contas bolsão” que disfarçavam a titularidade real de movimentações suspeitas. A T10 afirmou que nunca compactuou com atos ilícitos e que cumpre as exigências do BC. Já a I9Pay declarou que jamais teve vínculo com facções ou ilegalidades.
O Coaf registrou um volume recorde de alertas relacionados a operações suspeitas envolvendo “arranjos e instituições de pagamento” — categoria em que se encaixam as fintechs. Foram 85.829 comunicações apenas no primeiro semestre de 2025, superando todo o ano de 2024 (80.955). O crescimento é vertiginoso se comparado aos anos anteriores: foram 36.221 notificações em 2022 e 34.024 em 2023. Em 2015, apenas 45 casos haviam sido relatados.
O professor Antonio Nicaso, da Universidade Queen’s, no Canadá, alerta que o uso de plataformas digitais e criptomoedas já é prática comum entre máfias europeias, como a ‘Ndrangheta, do sul da Itália. “O PCC e a ‘Ndrangheta estão cada vez mais conscientes das novas tecnologias. Investiram em criptoativos e plataformas clandestinas de trading”, afirmou o autor do livro Máfia Global.
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