Veias abertas da soberania
Geopolítica, guerra híbrida e pressão diplomática: os riscos reais para o Brasil na corrida global por terras raras, nióbio e lítio
Em meio à disputa geopolítica por recursos estratégicos, o Brasil se tornou alvo de pressão diplomática americana – parte de um pacote que envolve os BRICS, a ferrovia bioceânica, a regulação das Big Techs e o desenvolvimentismo brasileiro.
O Brasil sob mira no tabuleiro geoeconômico - No dia 24 de julho de 2025, durante cerimônia no Vale do Jequitinhonha, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou com veemência:
“Temos todo o nosso petróleo para proteger. Temos todo o nosso ouro para proteger. Temos todos os minerais valiosos que vocês desejam, e que nós temos que proteger. E aqui, ninguém põe a mão".
A frase, aparentemente genérica, é uma resposta direta a uma série de movimentações diplomáticas, comerciais e informacionais dos Estados Unidos, que colocam o Brasil no centro de uma das maiores disputas geoeconômicas do século XXI: a batalha pelos minerais estratégicos, especialmente as chamadas terras raras e elementos como nióbio, lítio, grafita e cobalto, essenciais para inteligência artificial, armamentos, supercondutores e transição energética.
Nos bastidores da geopolítica, os ataques à soberania mineral brasileira já estão em curso. Um deles ocorreu nesta mesma semana: o encarregado de negócios da Embaixada dos EUA no Brasil se reuniu com dirigentes do setor mineral para manifestar o “interesse direto” do governo americano nos minerais críticos brasileiros, conforme noticiado pelo G1 e confirmado pela Folha de S.Paulo. Simultaneamente, veículos como o Wall Street Journal e o Financial Times revelam que o Pentágono e o Departamento de Energia dos EUA estão pressionando mineradoras brasileiras a firmarem acordos bilaterais de fornecimento exclusivo de terras raras, à revelia do Itamaraty.
Esse avanço hostil não está isolado. Ele integra um conjunto articulado de frentes contra o atual redesenho estratégico do Brasil, que inclui:
- A entrada de novos países no BRICS+ e o avanço de sistemas de pagamento alternativos ao dólar;
- A aliança Brasil–China–Peru pela Ferrovia Bioceânica, que ameaça o controle logístico dos EUA na América do Sul;
- E a regulação democrática das Big Techs, com o Brasil liderando iniciativas que preocupam diretamente o Vale do Silício.
Em resumo: o subsolo brasileiro virou campo de batalha, e as consequências dessa guerra mineral já estão em curso.
Minerais estratégicos e a aposta geoeconômica brasileira - O Brasil possui algumas das maiores reservas do mundo de minerais estratégicos: nióbio (98% das reservas globais conhecidas), lítio, grafita, manganês, cobalto, terras raras leves e pesadas – todos insumos essenciais para a nova economia digital, militar e energética. A Agência Nacional de Mineração (ANM) e o Serviço Geológico do Brasil (SGB) apontam que o país tem potencial para se tornar líder global no fornecimento e na transformação desses recursos, com destaque para os estados de Minas Gerais, Bahia, Amazonas, Goiás e Pará.
Com esse diagnóstico, o governo brasileiro lançou, em 2023, o Plano Nacional de Minerais Estratégicos e, em 2025, um conjunto de editais e chamadas públicas, com destaque para o investimento de R$ 73 milhões, coordenado por BNDES, FIEMG, FIESC e SENAI CIMATEC, para a verticalização da cadeia de ímãs permanentes – componente crucial de turbinas eólicas, motores elétricos, satélites e armamentos guiados.
Além disso, a política de reindustrialização verde, articulada pelo Ministério da Indústria e Comércio e pelo Ministério de Minas e Energia, prevê que o Brasil não apenas extraia, mas transforme e industrialize seus minérios críticos em solo nacional, com agregação de valor, inovação tecnológica e soberania sobre dados geológicos e cadeias produtivas.
Essa estratégia, no entanto, contraria interesses diretos dos EUA, que hoje dependem em 85% da China para seu abastecimento de terras raras, segundo o United States Geological Survey (USGS, 2024). Para Washington, reduzir essa dependência exige acesso rápido, estável e controlado a reservas em países “amigos”, como o Brasil.
É aqui que se instala o conflito: a aposta brasileira na soberania mineral colide com a lógica de controle estratégico americano sobre cadeias críticas globais – especialmente em um momento de transição energética e rearranjo geopolítico mundial.
Pressão americana: narrativa e atuação diplomática - Desde 2023, os Estados Unidos vêm intensificando ações diplomáticas, militares e empresariais para garantir acesso preferencial a minerais estratégicos fora da Ásia. O foco: América Latina, em especial o Brasil. Em documentos públicos e relatórios confidenciais, o Departamento de Estado, o Pentágono e a Casa Branca classificam os minerais críticos como questão de “segurança nacional” e alertam sobre a “dependência perigosa” da China.
Sob esse pretexto, Washington tem ampliado uma campanha silenciosa, mas cada vez mais explícita, para atrair, pressionar ou cooptar setores do governo e da indústria brasileira.
Exemplos concretos recentes:
- Em 24 de julho de 2025, o encarregado de negócios da Embaixada dos EUA no Brasil participou de encontros com representantes de institutos estratégicos e do setor de mineração, declarando publicamente que os EUA têm “interesse direto e prioridade estratégica” nos minerais críticos brasileiros.
- O Financial Times revelou, em julho, que executivos do Pentágono vêm se reunindo com mineradoras brasileiras para costurar acordos diretos com empresas norte-americanas, sem mediação do governo brasileiro, em uma tentativa de minar a política de industrialização soberana.
- Paralelamente, think tanks americanos e organizações privadas estão pressionando pela liberalização de licenças e flexibilização de regras ambientais no Brasil, argumentando que “a burocracia verde atrasa o desenvolvimento sustentável”. A real motivação: facilitar o saque.
- Além disso, empresas como Tesla, General Electric e Raytheon já sinalizaram interesse em operações conjuntas para “acesso estratégico” a reservas de nióbio, terras raras e lítio, especialmente no Vale do Jequitinhonha, no Norte de Minas, e no Alto Paranaíba.
Essa ofensiva diplomática é acompanhada por um discurso que mistura cooptação e ameaça: os EUA se apresentam como “parceiros preferenciais do Ocidente democrático”, mas alertam que, caso o Brasil fortaleça suas relações com China, BRICS e rotas bioceânicas, “haverá consequências no equilíbrio geopolítico do continente”.
É a velha lógica da Doutrina Monroe reencenada no século XXI: ou o Brasil se submete, ou será alvo.
Conexões entre minerais raros, BRICS, bioceania e Big Techs - A atual pressão norte-americana sobre os minerais estratégicos brasileiros não é um movimento isolado. Ela se insere em uma arquitetura de contenção geoestratégica mais ampla, que mira três pilares do novo posicionamento soberano do Brasil: a política externa ativa com os BRICS+, a integração física com a Ásia via bioceania e o enfrentamento à dominação das Big Techs.
a) BRICS+ e a multipolaridade
A ampliação dos BRICS, em 2024, com a entrada de países produtores de energia e minérios (como Irã, Etiópia, Argélia e Arábia Saudita), reforçou a ideia de uma aliança econômica anticolonial, com foco em moedas alternativas ao dólar e cadeias de valor fora do eixo ocidental. O Brasil, como líder sul-americano e detentor de recursos minerais únicos, tornou-se peça-chave nesse tabuleiro – e, portanto, alvo.
Washington teme que o Brasil opte por exportar e transformar seus minérios sob padrões e circuitos liderados pela China, e não por Wall Street. Isso comprometeria décadas de domínio comercial sobre o continente e enfraqueceria a dependência histórica da América Latina ao dólar e às normas de Washington.
b) Ferrovia Bioceânica: a ruptura do eixo Panamá–Houston
A obra da Ferrovia Bioceânica Brasil–Peru–China, considerada estratégica por Lula e pela diplomacia sul-americana, é outro motivo de tensão. Ao conectar o Atlântico ao Pacífico sem passar pelo Canal do Panamá – tradicionalmente controlado pelos EUA –, a bioceânica pavimenta uma nova rota logística independente e pode escoar minérios brasileiros diretamente aos portos do Pacífico, com menor custo e sem a intermediação norte-americana.
Essa infraestrutura inviabiliza o controle absoluto dos EUA sobre cadeias logísticas críticas e é tratada por estrategistas do Pentágono como “ameaça à segurança continental” – linguagem idêntica à usada na Guerra Fria.
c) Regulação das Big Techs e soberania informacional
Por fim, o terceiro vértice da colisão: o embate entre o Brasil e as Big Techs, com epicentro na disputa pela regulação das plataformas digitais. A entrada do Brasil em debates globais sobre algoritmos, desinformação, transparência de dados e tributação de gigantes digitais ameaça o núcleo de poder simbólico e financeiro do complexo informacional ocidental.
As Big Techs, principais consumidoras globais de minerais estratégicos como terras raras e lítio, veem com preocupação a possibilidade de um país com enorme reserva mineral também se tornar regulador de sua arquitetura informacional. Trata-se de um duplo desafio à hegemonia norte-americana: matéria-prima e código-fonte sob controle nacional.
Perigos reais: soberania ameaçada e cenários possíveis - A disputa pelos minerais estratégicos é, no fundo, uma disputa por poder. E o Brasil, ao buscar verticalizar sua cadeia mineral e alinhar-se a projetos multipolares, coloca em risco décadas de submissão consentida aos interesses ocidentais – especialmente os dos EUA.
Esse reposicionamento traz riscos concretos, que já se desenham no horizonte:
1. Lawfare e sabotagem institucional
Assim como ocorreu na década passada com o pré-sal e a Lava Jato, é possível que estruturas do Estado brasileiro e figuras políticas ligadas à defesa da soberania mineral se tornem alvos de perseguição judicial, vazamentos seletivos e campanhas de desinformação. O método é conhecido: lawfare. Já há sinais de investigações, ataques e tentativas de constrangimento a técnicos e diretores de estatais ligados ao setor mineral.
2. Cooptação de elites e captura regulatória
Agentes e consultores ligados a think tanks e fundações estrangeiras atuam dentro do Congresso, das agências reguladoras e do mercado financeiro para impedir ou esvaziar qualquer iniciativa de nacionalização, agregação de valor ou controle soberano sobre os dados geológicos. A pressão pela “desburocratização do setor” é, muitas vezes, um eufemismo para desregulação pró-mercado estrangeiro.
3. Espionagem e guerra híbrida
Informações do próprio Exército e do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) indicam que há aumento no volume de ações de inteligência e espionagem industrial envolvendo áreas de prospecção mineral, especialmente na Amazônia Legal e no Norte de Minas. Mapas geológicos estão sendo hackeados, servidores públicos estão sendo assediados, e grandes empresas têm sido abordadas por agentes externos oferecendo “parcerias vantajosas”.
4. Isolamento internacional e retaliações econômicas
Caso o Brasil insista em seguir fora da órbita ocidental nos temas de minérios, IA e logística, é possível que sofra sanções veladas, boicotes comerciais, bloqueios a exportações de tecnologia e chantagens diplomáticas. Esse movimento já começa a se desenhar com o aumento de tarifas norte-americanas sobre produtos brasileiros, apresentado oficialmente como “medida de correção ambiental” mas, na prática, trata-se de retaliação.
Conflitos internos estimulados externamente - A pressão internacional pode agravar disputas territoriais no interior do país, especialmente com a expansão da mineração sobre terras indígenas, quilombolas e unidades de conservação. Ao estimular o conflito social interno, forças externas minam a governabilidade e fragilizam o ambiente político para justificar “intervenções diplomáticas” ou “missões humanitárias”.
Conclusão: a soberania mineral é a próxima trincheira - O Brasil está diante de uma encruzilhada histórica. O que está em disputa não é apenas o subsolo rico em nióbio, terras raras, lítio e cobalto. É o projeto de país. Ao reivindicar o direito de controlar, transformar e agregar valor a seus próprios recursos estratégicos, o Brasil desafia diretamente o sistema de dependência estruturado desde o século XX.
A pressão dos Estados Unidos – silenciosa, difusa, mas brutal – sobre os minérios críticos brasileiros não é apenas uma questão comercial. É uma operação geopolítica, híbrida e informacional, destinada a conter o avanço da soberania nacional e do multilateralismo do Sul Global. Essa pressão não é isolada: ela se soma aos ataques contra os BRICS, à sabotagem da ferrovia bioceânica e à tentativa de desestabilizar o protagonismo brasileiro na regulação das plataformas digitais.
Se o Brasil ceder, será reduzido novamente a um fornecedor colonial de matérias-primas, sem tecnologia, sem autonomia, sem futuro. Se resistir – com inteligência, coordenação institucional, apoio popular e articulação internacional – poderá se tornar líder de um novo modelo de desenvolvimento soberano, justo e tecnológico.
Este artigo é um alerta. A soberania mineral brasileira é a próxima trincheira da luta nacional. E cada cidadão, cada parlamentar, cada jornalista e cada servidor público precisa compreender o que está em jogo. Não se trata apenas de minérios: trata-se da alma do Brasil.
Texto publicado originalmente em: <código aberto>
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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