Silvio Almeida denuncia a perversidade do ajuste fiscal brasileiro
Sob o pretexto da “responsabilidade fiscal”, elites econômicas perpetuam uma arquitetura orçamentária que penaliza os mais pobres e blinda os mais ricos
247 – Em artigo publicado na plataforma Substack, o jurista e ex-ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, faz uma crítica contundente à estrutura fiscal brasileira, que considera marcada por uma lógica perversa de escassez programada e austeridade seletiva. Segundo ele, o discurso dominante de “responsabilidade fiscal” tem servido, historicamente, como instrumento para justificar cortes de gastos sociais enquanto preserva os interesses de setores privilegiados.
Almeida descreve o cenário como uma “comédia grotesca”, em que políticos, em tom solene, proclamam a necessidade de contenção de gastos, ao passo que a população — especialmente os trabalhadores — permanece silenciada, como coadjuvante de uma peça cujo roteiro é escrito para proteger os mais ricos. “O que se alega é simples na forma e brutal no conteúdo: ‘não se pode gastar mais do que se arrecada’. Mas eis o ponto: de onde vem a arrecadação? E com o que mais se gasta?”, questiona o autor.
A arquitetura da austeridade
Silvio Almeida relembra que o congelamento dos gastos públicos não começou com o atual arcabouço fiscal. Em 2016, o governo de Michel Temer aprovou a Emenda Constitucional 95, o chamado Teto de Gastos, impondo por 20 anos a limitação das despesas primárias da União à inflação do ano anterior, independentemente das necessidades sociais. “Foi a consagração jurídica de uma ideologia fiscalista que transformou o orçamento em dogma e o povo em apêndice”, escreve.
Mesmo após a adoção do novo arcabouço em 2023, pela Lei Complementar 200, a lógica permanece: o crescimento dos gastos está amarrado à arrecadação, variando entre 0,6% e 2,5% ao ano. Essa regra, segundo o ministro, impede que o Estado reaja com a devida agilidade às demandas sociais e perpetua um ciclo de negligência com serviços públicos essenciais. “Os hospitais estão superlotados, as escolas padecem da crônica escassez de recursos, e a segurança pública está prestes a colapsar. E o que se ouve? Que é preciso cortar mais.”
O Estado que serve aos de cima
Na visão de Silvio Almeida, o ajuste fiscal brasileiro assume traços de farsa: enquanto se demoniza qualquer aumento de gasto social, os interesses das elites permanecem intocados. O Congresso administra um fundo bilionário em emendas, os supersalários persistem, e os orçamentos das Forças Armadas crescem sem questionamento proporcional. Paralelamente, qualquer tentativa do Executivo de aumentar a arrecadação — sobretudo sobre os mais ricos — é atacada como “perseguição ao setor produtivo”.
Almeida lembra que lucros e dividendos permanecem isentos de imposto de renda desde 1995 e que os juros sobre capital próprio permitem que grandes empresas paguem menos impostos que trabalhadores comuns. Além disso, regimes tributários favorecem fundos exclusivos e operações com offshores. “O Estado brasileiro, ao invés de reduzir desigualdades por meio da ação fiscal, as acentua”, denuncia, citando estudos do IPEA e da Receita Federal.
Austeridade para os pobres, privilégios para os ricos
O jurista destaca a disparidade nas prioridades orçamentárias: subsídios, renúncias fiscais e benefícios previdenciários se concentram nos estratos superiores da sociedade, enquanto os programas voltados à população de baixa renda, como o Bolsa Família ou o SUS, enfrentam escassez crônica. Dados da Receita Federal indicam que só em 2022 as isenções fiscais representaram uma renúncia de quase R$ 456 bilhões, o equivalente a 4,6% do PIB.
Ao abordar a questão da sonegação, Almeida aponta que o problema é estrutural e concentrado em grandes conglomerados empresariais e financeiros, resultando em perdas anuais superiores a R$ 600 bilhões — valor superior ao orçamento combinado de saúde e educação. “Cobra-se austeridade dos pobres enquanto se tolera, ou mesmo se estimula, a impunidade dos mais ricos”, afirma.
Uma política ideológica e antirrepublicana
Para Almeida, o clamor por equilíbrio fiscal não é técnico, mas ideológico. “Querem um Estado magro para os pobres e obeso para os ricos.” Ele critica a sabotagem sistemática às políticas públicas de investimento, à atuação das estatais e ao papel do Estado como indutor do desenvolvimento. A infraestrutura, ainda que tenha registrado avanço nos investimentos públicos em 2023, segue com aporte total de apenas 1,79% do PIB, muito abaixo do necessário.
Um ponto particularmente incisivo do artigo trata da contradição daqueles que defendem o Estado mínimo, mas exigem policiamento ostensivo e construção de presídios. “É o mínimo de Estado para os direitos, mas o máximo para o controle”, diz o ministro, denunciando a expansão do “mercado da punição”, muitas vezes em parceria com a iniciativa privada.
A hora de romper com a escassez programada
Silvio Almeida encerra o artigo com uma convocação ao debate público real sobre as prioridades do Estado brasileiro. “A pergunta que deve orientar o debate não é ‘quanto o Estado pode gastar?’, mas ‘quais necessidades da população ainda estão desatendidas?’”. Para ele, a resposta a essa pergunta deve fundamentar uma política fiscal responsável, mas voltada à justiça social, e não à perpetuação de privilégios.
A análise de Almeida revela, com clareza e indignação fundamentada, os paradoxos de um sistema que promete eficiência, mas produz desigualdade; que fala em responsabilidade, mas age com conivência seletiva. Em tempos de reconfiguração da democracia brasileira, a crítica ao ajuste fiscal se mostra, mais do que nunca, um imperativo ético e político.
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