Eles gozam em silêncio, mas batem em público: os 61 socos
'A psicanálise revela o que está em jogo nesse gesto violento: encobrir, com sangue do outro, o gozo que ele próprio não suporta reconhecer em si'
"Na medida em que não sabemos o que perdemos, achamos que ganhamos." A frase, que ecoa fundamentos da psicanálise lacaniana, ajuda a entender o que está em jogo no caso que chocou Natal (RN) e repercutiu nacionalmente: um ex-jogador de basquete agrediu brutalmente sua namorada cisgênera, desferindo 61 socos em seu rosto. O que inicialmente parecia um episódio extremo de violência doméstica ganhou novas camadas quando veio a público o relato de uma mulher trans que afirmou ter mantido um relacionamento secreto com o agressor.
O Brasil testemunhou mais um episódio de brutalidade que não pode ser lido apenas como um caso isolado de agressão, mas como sintoma de uma estrutura perversa que rege a subjetivação masculina cisheteronormativa. Um homem cis desferiu 61 socos no rosto de uma mulher cisgênera com quem mantinha um relacionamento, em outra ponta, envolvido em segredo com uma mulher trans podemos pensar um outro tipo de relação. À primeira vista, parece um ato impulsivo de ciúmes ou descontrole, ele alegou claustrofobia. Mas a psicanálise, aliada a uma escuta trans, nos convida a desvelar o que está em jogo nesse gesto violento: a tentativa de encobrir, com o sangue do outro, o gozo que ele próprio não suporta reconhecer em si.
Vou reexplicar:
Alguém sente algo que a sociedade diz que é errado. Esse sentimento pode ser desejo, admiração ou até carinho, mas ele foi ensinado desde cedo a ter vergonha disso. Então, em vez de admitir o que sente - até para si mesmo - ele guarda, esconde, engole.
Agora pensa nesse esconderijo como um quarto escuro dentro da pessoa. O que ela sente fica lá, preso, crescendo, até virar raiva, vergonha, ou até ódio de si mesma. E quando esse sentimento escondido ameaça aparecer, a pessoa se desespera. Em vez de lidar com ele, tenta jogar isso fora, pra bem longe, como se fosse sujo ou perigoso.
"Mas a psicanálise, aliada a uma escuta trans, nos convida a desvelar o que está em jogo nesse gesto violento: a tentativa de encobrir, com o sangue do outro, o gozo que ele próprio não suporta reconhecer em si."
Traduzindo:
A psicanálise, que é um jeito de entender como a mente humana funciona (especialmente o que a gente sente, mas não entende direito), junto com uma escuta trans - ou seja, prestar atenção no que pessoas trans têm a dizer sobre o mundo e sobre o desejo - , nos mostra que, quando uma pessoa agride alguém de forma violenta, como nesse caso, ela pode estar tentando esconder um sentimento dentro dela mesma que ela não quer admitir.
E o que seria esse sentimento? É o desejo, o prazer - que ele sente, mas não suporta ver em si mesmo.
Então, quando ele agride, ele está dizendo, sem palavras:
"Eu preciso destruir você, porque você me mostra algo em mim que eu odeio e não quero ver."
É como se, ao machucar o outro, ele tentasse "apagar" esse desejo que o deixa com vergonha ou medo. É pesado, sim. Mas é importante entender: a violência, muitas vezes, não vem da força. Ela vem da fraqueza de quem não consegue lidar com o que sente.
Há algo que o sujeito não sabe sobre si mesmo, e esse "não saber" - essa falta de elaboração - é justamente o que o leva a acreditar que possui algo: honra, masculinidade, controle, poder. Como diz a frase que dá título a este artigo: "na medida em que não sabemos o que perdemos, achamos que ganhamos." Mas o que ele perdeu? E o que ele tenta ganhar quando destrói o rosto de uma mulher?
Para Lacan, o sujeito se constitui pela falta. O que funda o desejo é a perda, não a posse. Mas quando essa perda não é reconhecida, ela retorna sob a forma do sintoma, do excesso, da violência. O homem cis que se envolve com uma travesti e mantém isso em segredo já está capturado por uma estrutura que o ensina a desejar e ao mesmo tempo repudiar o feminino. Desejar uma travesti é, para ele, desejar aquilo que a cultura lhe ensinou a desprezar. E quando esse desejo se torna visível ou ameaçado de exposição - por uma mulher cis, por exemplo - , ele explode: não por amor, mas por ódio de si mesmo.
A mulher agredida torna-se o bode expiatório do desejo mal simbolizado, a encarnação do risco de ser descoberto. É ela quem "sabe demais" ou representa o olhar julgador da sociedade. O rosto, enquanto índice da identidade, torna-se o alvo: apagá-lo é apagar a evidência da vergonha.
Lacan já dizia que o sujeito busca o objeto perdido (objeto a) como se pudesse reencontrar, em alguma forma, a completude. Mas a travesti, nesse contexto, não é o objeto do amor - ela é o espelho que mostra ao homem o que falta em si, aquilo que ele tenta recalcar: a fragilidade da sua masculinidade. O gozo que ela evoca é insuportável. Ele não quer a travesti para amar, quer usá-la para gozar sem que o outro saiba. E quando o Outro sabe - a mulher cis, a sociedade, os vizinhos - , ele age como agem os sujeitos desmascarados: com ódio e destruição.
Eu conheço homens cis cujo suas dores não suportam a minha presença, então repito:
Quando Lacan diz que todo ser humano sente que falta alguma coisa, e passa a vida tentando preencher esse vazio com algo ou alguém, isso é o que ele chama de "objeto a".
No caso deste homem que se envolve com uma mulher trans/travesti, ela pode não ser alguém que ele ama de verdade, pode ser um espelho que mostra para ele algo que ele não quer enxergar: que sua masculinidade não é tão firme ou fixa quanto ele pensa. O prazer (ou gozo) que ele sente com ela é tão forte e confuso que ele não suporta admitir esse desejo. Então, ele tenta manter isso em segredo. Quando alguém descobre - uma mulher cis, a sociedade, os vizinhos - ele se sente exposto. E aí, como muitos que são desmascarados, ele responde com ódio e violência para tentar apagar essa verdade que o assusta.
Resumindo:
Ele deseja, mas não aceita esse desejo - e tenta destruir quem o revela.
O homem não bate por amor, mas por pânico da própria feminilidade projetada na travesti e super naturalizada pela mulher cis. Ele não sabe o que perdeu - a possibilidade de um desejo ético, de um reconhecimento do outro como sujeito - e por isso acredita que pode ganhar alguma coisa com a agressão. Talvez respeito, virilidade, domínio sobre as mulheres. Mas o que se vê é justamente o contrário: um sujeito perdido, desmoronado, estilhaçado pela própria ignorância sobre si. Um constructo de masculinidades extremamente frágeis e tóxicas que se amparam na ignorância.
Assisti tudo isso ao longo da minha vida como a caçula de cinco filhos homens, que traíam a si mesmos e às mulheres com quem se relacionavam. Sempre me perguntei: por que são assim? Por que traidores de si?
A cultura ensina que travesti é vergonha, que amar uma travesti é fracasso, que desejar o feminino em corpos não autorizados é perversão. E o homem, moldado por esse discurso, não se permite desejar sem violência. O gozo que poderia ser potência vira fúria. O amor clandestino, que poderia ser libertação, vira prisão. E o sujeito, em vez de se reconstruir a partir da sua perda, escolhe destruir o outro para tentar preservar a ilusão do que acha ter ganho.
Sempre observei que homens - especialmente os estranhos a mim - tendem a ver as mulheres em três categorias:
Para amar - e aqui entra a mãe.
Para transar - as mulheres diversas, desejáveis, mas não respeitadas.
Para usar - aquelas que não servem nem para amar, nem para transar: as desprezíveis, descartáveis.
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