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      Reynaldo José Aragon Gonçalves

      Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global. Editor do site codigoaberto.net

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      E se Trump fosse presidente em 2022?

      O Imaginário Golpe no Brasil e o Papel Atual das Forças Armadas

      Presidente dos EUA, Donald Trump - 16/07/2025 (Foto: REUTERS/Nathan Howard)

      Com Donald Trump de volta à Casa Branca e uma crise sem precedentes entre Washington e Brasília, o passado recente reaparece como advertência. Este artigo reconstrói, com base em evidências concretas e método rigoroso, o cenário que quase levou o Brasil a uma ruptura institucional — e analisa, com sobriedade, o que mudaria se os EUA, em 2022, estivessem sob comando de um presidente hostil à democracia. Hoje, 6 de agosto de 2025, a pergunta volta com força: se um novo golpe fosse tentado, os EUA topariam? E o mais inquietante: as Forças Armadas brasileiras topariam?

      Método, escopo e responsabilidade analítica

      A pergunta que guia este artigo é simples, mas profunda: se Donald Trump fosse presidente dos Estados Unidos durante as eleições brasileiras de 2022, teria havido um golpe de Estado no Brasil? E, hoje, 6 de agosto de 2025, com Trump novamente na Casa Branca e com a escalada de tensão entre os dois países, qual seria a postura dos Estados Unidos se uma nova tentativa de ruptura institucional ocorresse em solo brasileiro?

      Este não é um exercício de futurologia. Tampouco se trata de um ensaio baseado em teorias conspiratórias ou em construções retóricas sem lastro empírico. O objetivo deste artigo é rigoroso e claro: analisar, com base em fatos documentados, declarações oficiais, decisões judiciais e elementos da geopolítica contemporânea, como a correlação de forças internacional e o comportamento das instituições brasileiras moldaram – e continuam moldando – o destino da democracia no país.

      Utilizamos como base o método materialista histórico-dialético, que entende os fenômenos políticos como expressões de disputas entre classes sociais, frações de capital e projetos de poder. Através desse método, é possível compreender que não existem decisões isoladas ou vontades políticas puras: há correlações, mediações e estruturas materiais que condicionam os acontecimentos.

      A eleição de Lula em 2022 não encerrou uma crise. Ela apenas inaugurou um novo estágio dela. Os documentos oficiais da Polícia Federal, os depoimentos de militares e ex-ministros, e as provas materiais apresentadas nos últimos dois anos demonstram que o Brasil esteve, sim, às portas de uma ruptura democrática. O que impediu sua consumação foi um conjunto complexo de fatores: desde o comportamento institucional das Forças Armadas, passando pela atuação firme do Supremo Tribunal Federal, até o papel silencioso, mas estratégico, da diplomacia internacional — especialmente dos Estados Unidos sob a liderança de Joe Biden.

      Este artigo irá, portanto, reconstruir os cenários concretos de 2022 e 2025 para responder a uma inquietação legítima: os elementos que frearam a tentativa de golpe em 2022 seguem presentes hoje? Ou, ao contrário, estamos em uma conjuntura ainda mais perigosa, onde as condições subjetivas e objetivas podem favorecer um novo ensaio golpista, agora sob uma Casa Branca hostil à democracia brasileira?

      O Golpe que quase houve: o Brasil entre Outubro de 2022 e Janeiro de 2023.

      Entre o segundo turno das eleições presidenciais brasileiras, realizado em 30 de outubro de 2022, e a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 1º de janeiro de 2023, o Brasil atravessou seu momento institucional mais frágil desde a redemocratização. Embora a transição democrática tenha ocorrido formalmente, documentos posteriores, investigações da Polícia Federal e relatos de bastidores revelaram que o país esteve muito próximo de uma ruptura institucional, cujas engrenagens já estavam sendo montadas no interior do Estado brasileiro, especialmente em setores das Forças Armadas e do entorno imediato do então presidente Jair Bolsonaro.

      As investigações conduzidas pela operação Tempus Veritatis, deflagrada em 2024, trouxeram à luz uma série de evidências que comprovam a existência de um plano golpista estruturado. Foram encontrados rascunhos de decretos de Estado de Defesa e de Estado de Sítio, documentos apócrifos para tentativa de anulação do processo eleitoral, e até mesmo a elaboração de listas de prisões de ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral. Um dos alvos centrais seria o ministro Alexandre de Moraes, então presidente do TSE, que já vinha sendo atacado sistematicamente por setores bolsonaristas desde antes da eleição.

      Além da prova documental, os autos revelaram reuniões estratégicas com membros da alta cúpula militar, ex-ministros e operadores políticos do bolsonarismo, como Filipe Martins, Braga Netto e Anderson Torres. O que antes era tratado como hipótese tornou-se evidência: havia, de fato, uma articulação interna para impedir a posse de Lula e instaurar um governo de exceção.

      Mas a pergunta essencial permanece: por que o golpe não se concretizou?

      A resposta não está em um único fator, mas em um complexo de forças que atuaram simultaneamente. A começar pelas Forças Armadas brasileiras, que, apesar de abrigarem setores simpáticos ao bolsonarismo, mantiveram-se oficialmente no campo da legalidade. Os comandantes das três forças — Exército, Marinha e Aeronáutica — optaram por preservar a estabilidade institucional, recusando-se a apoiar abertamente qualquer manobra que rompesse a ordem democrática. O custo político e histórico de uma ruptura, o receio de sanções internacionais e a ausência de consenso dentro da caserna foram decisivos para conter a tentação autoritária.

      Outro fator decisivo foi o papel desempenhado pela Justiça Eleitoral e pelo Supremo Tribunal Federal, que atuaram com firmeza e celeridade para desmobilizar juridicamente as tentativas de golpe. Decisões liminares, inquéritos em curso e ações coordenadas com o Ministério Público e as polícias civis e federais garantiram o isolamento jurídico e simbólico das figuras mais radicalizadas.

      E, por fim, houve o papel sutil — porém fundamental — da diplomacia internacional, especialmente dos Estados Unidos sob o governo de Joe Biden. Como revelado posteriormente por reportagens da Foreign Policy e da Reuters, emissários do governo norte-americano enviaram recados diretos ao alto comando militar brasileiro, deixando claro que qualquer ruptura democrática no Brasil resultaria em não reconhecimento internacional, sanções econômicas e isolamento diplomático. Essa mensagem, enviada de maneira firme e reservada, foi crucial para desestimular qualquer aventura autoritária.

      Dessa forma, pode-se afirmar com segurança analítica que o golpe só não ocorreu porque encontrou resistência institucional significativa, dentro e fora do país, e porque as condições objetivas — políticas, econômicas e militares — ainda não estavam plenamente maduras para sua execução. Mas o projeto golpista existiu, teve base de apoio real e continua vivo na imaginação de parte das elites brasileiras, especialmente aquelas que não aceitam os limites da democracia como regra do jogo.

      No próximo tópico, analisaremos o cenário alternativo: o que teria acontecido se Donald Trump estivesse na presidência dos Estados Unidos em 2022? Vamos explorar se, com uma Casa Branca simpática ao bolsonarismo e avessa à diplomacia multilateral, o desfecho teria sido o mesmo.

      Se Trump fosse presidente em 2022: uma análise contrafactual rigorosa

      A análise contrafactual — isto é, baseada na pergunta "e se?" — exige cuidados metodológicos. Ela não busca prever o passado nem fantasiar a história, mas testar hipóteses com base na lógica das estruturas e dos comportamentos documentados de atores políticos reais. No caso que nos interessa, a pergunta é clara: se Donald Trump estivesse na presidência dos Estados Unidos durante o processo eleitoral brasileiro de 2022, o golpe articulado por setores bolsonaristas teria encontrado menos resistência? Ou até mesmo encorajamento?

      Para responder com seriedade, é necessário compreender quem é Trump no jogo da política internacional, e como ele se comporta frente a regimes autoritários e a tentativas de ruptura institucional.

      Trump e a erosão da democracia

      A trajetória de Trump mostra um padrão consistente de alinhamento com líderes autoritários e populistas de extrema-direita. Ele manteve relações amistosas com figuras como Viktor Orbán (Hungria), Rodrigo Duterte (Filipinas), Recep Tayyip Erdoğan (Turquia), Benjamin Netanyahu (Israel) e Jair Bolsonaro (Brasil). Além disso, Trump foi protagonista de sua própria tentativa de subversão da democracia nos Estados Unidos, ao incitar a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021, quando buscava impedir a certificação da vitória eleitoral de Joe Biden. Não se tratava de retórica: era ação direta para tentar reverter um resultado eleitoral legítimo.

      Portanto, quando se analisa o comportamento histórico de Trump diante de processos democráticos que contrariam seus interesses ou suas alianças ideológicas, observa-se um padrão: hostilidade à institucionalidade, deslegitimação do sistema judicial e mobilização das massas contra as estruturas republicanas.

      Trump e Bolsonaro: afinidades e cooperação

      Durante o primeiro mandato de Trump (2017–2021), a relação com Bolsonaro foi de franca cooperação ideológica. Os dois compartilhavam estratégias retóricas, posicionamentos internacionais (como o alinhamento cego com Israel), negação da pandemia, ataques à imprensa e desconfiança sistemática nas instituições democráticas. Esse alinhamento não era apenas simbólico: havia troca de quadros, think tanks em comum, articulação entre igrejas evangélicas nos dois países e um ecossistema midiático transnacional construído para sustentar a narrativa do “antiglobalismo” e do “anticomunismo”.

      Sabendo disso, é plausível supor que, se Trump estivesse na Casa Branca entre outubro de 2022 e janeiro de 2023, não teria havido os mesmos sinais diplomáticos de moderação enviados pelo governo Biden ao Brasil. Mais do que isso: é razoável considerar que a ausência de um freio norte-americano poderia ter sido lida por setores militares brasileiros como um sinal verde para aderirem a um projeto de ruptura.

      A importância da pressão internacional em 2022

      Como demonstrado anteriormente, o governo Biden enviou recados diplomáticos diretos ao alto escalão das Forças Armadas brasileiras, deixando claro que uma ruptura democrática resultaria em isolamento. William Burns, diretor da CIA, reuniu-se pessoalmente com interlocutores brasileiros para comunicar que os EUA não reconheceriam um governo ilegítimo e que a ordem constitucional precisava ser respeitada.

      Agora, refaça a cena com Trump no comando: é altamente improvável que uma Casa Branca trumpista enviasse emissários para dissuadir o golpismo. Ao contrário, a experiência histórica e o padrão comportamental de Trump sugerem que ele poderia até reconhecer um governo de exceção liderado por Bolsonaro como legítimo, em nome da “luta contra o globalismo”, “o comunismo” ou “a fraude eleitoral”.

      Não se trata, portanto, de teoria conspiratória, mas de projeção fundamentada: Trump já tentou invalidar uma eleição em seu próprio país. Sua postura diante de uma tentativa de golpe no Brasil, especialmente se liderada por seu aliado ideológico, teria dificilmente sido de contenção.

      O fator militar

      Neste cenário hipotético, é preciso considerar ainda como se comportariam as Forças Armadas brasileiras. Em 2022, mesmo diante da pressão do bolsonarismo, mantiveram uma postura formalmente legalista. No entanto, a ambiguidade pública de muitos oficiais, o silêncio diante de ameaças à Justiça Eleitoral e a infiltração ideológica da caserna por discursos da extrema-direita indicam que o ambiente interno era instável.

      Sem a contenção diplomática dos EUA, e com um discurso externo de apoio indireto ao “combate ao comunismo” ou à “fraude eleitoral”, é possível que setores hesitantes do comando militar se sentissem encorajados a aderir a um plano de ruptura. Não porque Trump ordenaria um golpe, mas porque a ausência de condenação internacional clara teria sido lida como um “cobertor diplomático”.

      Conclusão deste tópico

      Com base em fatos, padrões históricos e estrutura institucional, é legítimo afirmar que a presença de Trump na presidência dos EUA em 2022 teria aumentado significativamente as chances de sucesso de um golpe de Estado no Brasil. A combinação entre alinhamento ideológico, histórico de ruptura institucional e omissão estratégica teria criado um ambiente externo favorável ao golpismo. O que impediu esse cenário, em grande parte, foi a pressão internacional coordenada liderada por Biden e o custo elevado de isolamento que um governo de exceção enfrentaria.

      O Brasil em 6 de Agosto de 2025: Trump no poder, crise diplomática e o risco da repetição da história

      Em 6 de agosto de 2025, o Brasil vive uma das mais tensas e imprevisíveis conjunturas de sua história recente. A volta de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, em janeiro deste ano, redesenhou os contornos da política externa norte-americana para a América Latina, afetando diretamente a estabilidade institucional brasileira. O que antes era um alinhamento informal com a extrema-direita passou a ser política de Estado: as tarifas punitivas impostas por Washington contra produtos brasileiros, as sanções direcionadas a autoridades do Judiciário — como a sanção baseada na Lei Magnitsky contra o ministro Alexandre de Moraes — e as sucessivas declarações públicas de apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro configuram, em conjunto, uma ofensiva deliberada contra o governo Lula e o sistema judicial brasileiro.

      Não se trata de meros atritos diplomáticos. A atuação de Trump está ancorada em uma doutrina agressiva de política externa, que instrumentaliza alianças ideológicas como ferramenta de coerção geopolítica. O Brasil, nesse contexto, transformou-se em peça central de um jogo maior: o da disputa entre duas visões de mundo, em que o trumpismo pretende consolidar uma frente global de extrema-direita com líderes como Javier Milei, Nayib Bukele e Benjamin Netanyahu, enquanto busca enfraquecer os mecanismos multilaterais e as experiências progressistas no Sul Global. A narrativa é simples e eficaz: governos de esquerda, sistemas judiciais independentes e imprensa crítica são tratados como inimigos. Nesse ambiente, Bolsonaro torna-se, mais do que um aliado, um símbolo a ser defendido.

      Diante desse quadro, impõe-se uma pergunta inquietante: se as Forças Armadas brasileiras resolvessem hoje, sob algum pretexto institucional ou político, tentar uma nova ruptura democrática, qual seria a reação dos Estados Unidos sob o comando de Donald Trump? A resposta, por mais desconfortável que seja, não pode ser ignorada. Historicamente, os Estados Unidos já apoiaram ou consentiram com golpes de Estado na América Latina — e o trumpismo, com seu desprezo notório por normas democráticas universais, não parece seguir a tradição do realismo diplomático. Sua lógica é de afinidade ideológica e de conveniência política. Em 2025, com o governo Lula em enfrentamento direto com a Casa Branca e com Bolsonaro tratado como mártir político, é plausível considerar que os Estados Unidos, ainda que não promovessem diretamente uma ruptura no Brasil, poderiam se omitir diante de um processo golpista ou mesmo buscar legitimá-lo em nome da “defesa da liberdade” ou da “luta contra o globalismo”.

      Mas qualquer análise séria precisa considerar também a correlação interna de forças. A hipótese de um golpe não depende apenas do comportamento externo, mas principalmente das condições objetivas e subjetivas dentro do país. E é nesse ponto que a experiência de 2022 se torna decisiva. O fracasso do projeto golpista articulado por Bolsonaro entre outubro de 2022 e janeiro de 2023 expôs fissuras nas Forças Armadas brasileiras, mas também demonstrou que, mesmo com simpatias pontuais ao bolsonarismo, a caserna ainda preserva uma cultura institucional relativamente refratária a rupturas. A recusa do Alto Comando em aderir aos planos golpistas, a manutenção da cadeia de comando e a postura de neutralidade operacional durante a posse de Lula indicaram que a estrutura militar brasileira, ao menos em sua cúpula, optou por preservar sua legitimidade perante a ordem constitucional.

      Esse comportamento não eliminou a presença de setores radicalizados dentro da tropa, tampouco encerrou a influência do discurso autoritário no interior da corporação. Mas criou um precedente: aderir a um golpe tem custos elevados — institucionais, reputacionais e geopolíticos. Desde então, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional atuaram para reconfigurar os limites da participação militar na política, e a sociedade civil demonstrou maior vigilância diante de ameaças autoritárias. Ainda assim, a combinação entre a escalada do conflito com os Estados Unidos, a fragilidade institucional de um bolsonarismo ainda mobilizado e os discursos de guerra cultural amplificados por redes internacionais cria um ambiente delicado. A estabilidade democrática brasileira não está garantida. Ela continua dependente de vigilância permanente, articulação institucional e enfrentamento político estratégico.

      Hoje, as condições para um golpe são, paradoxalmente, ao mesmo tempo, mais frágeis e mais perigosas do que em 2022. Mais frágeis porque o sistema institucional aprendeu com a tentativa anterior e se fortaleceu. Mais perigosas porque a pressão externa que antes agiu para conter uma ruptura agora age no sentido contrário, como vetor de desestabilização. A presença de Trump na presidência dos Estados Unidos não causa o risco. Mas pode, como agente internacional poderoso, rebaixar os custos simbólicos de uma ruptura e elevar os incentivos para que setores autoritários internos considerem, mais uma vez, o inaceitável como possível.

      O Papel atual das forças armadas e o risco de regressão democrática

      A posição das Forças Armadas brasileiras em 2025 é ambígua e, por isso mesmo, perigosa. Se por um lado a cúpula militar evitou se envolver diretamente nas tentativas golpistas de 2022–2023, por outro lado, jamais realizou uma autocrítica clara, nem assumiu publicamente sua responsabilidade no processo de erosão institucional que antecedeu a tentativa de ruptura. Pior: em muitos casos, optou por silêncios calculados e sinais dúbios. Isso torna o papel das Forças Armadas, no contexto político atual, uma variável instável — com grande potencial de influência sobre a manutenção ou a corrosão da ordem democrática brasileira.

      A literatura especializada sobre a atuação militar no Brasil mostra que, desde o processo de redemocratização, as Forças Armadas nunca foram totalmente subordinadas ao poder civil. Mesmo após 1988, a autonomia funcional, a ausência de controles externos efetivos, a influência doutrinária herdada da Guerra Fria e o papel garantidor da “lei e da ordem” mantiveram os militares como um ator político latente. Essa latência se converteu em protagonismo explícito durante os governos Temer e Bolsonaro, quando generais passaram a ocupar cargos civis em larga escala e se naturalizou a ideia de que os militares deveriam arbitrar disputas políticas em nome da “estabilidade”.

      Esse protagonismo, somado ao estímulo à militarização da política — com a eleição de centenas de parlamentares das forças de segurança, a normalização do discurso armamentista e a presença crescente de militares em áreas sensíveis como educação, saúde e segurança pública — contribuiu para formar o que alguns pesquisadores têm chamado de complexo militar-burocrático-eleitoral. Ou seja, uma camada intermediária do Estado e da política que se organiza em torno de valores autoritários, falsamente nacionalistas e antidemocráticos, com forte apelo popular em segmentos das camadas médias e baixa oficialidade.

      Desde 2023, após a posse de Lula, houve tentativas de desmilitarização parcial da Esplanada dos Ministérios e de reconfiguração dos vínculos institucionais entre Executivo e Defesa. No entanto, a presença residual do bolsonarismo nos quartéis, a falta de punições exemplares para militares envolvidos com os acampamentos golpistas e a permanência de uma cultura antissistêmica no interior das escolas militares mostram que o processo está longe de ser concluído. A mudança de comportamento institucional da cúpula não equivale a uma mudança estrutural ou cultural.

      Além disso, a nova ofensiva externa liderada por Trump adiciona um elemento de risco. O apoio simbólico — ainda que não declarado — de uma superpotência à narrativa de que Bolsonaro é vítima de perseguição política pode ser interpretado por setores militarizados da sociedade como legitimação para uma nova “intervenção salvadora”. Isso não significa que haja, hoje, um plano em curso dentro das Forças Armadas para dar um golpe de Estado. Mas significa que a narrativa do golpe continua viva, e encontra eco em um segmento da oficialidade, especialmente em áreas de formação militar e em estruturas paralelas como clubes de oficiais e associações de reserva.

      Do ponto de vista da conjuntura, o que se observa é uma institucionalidade militar que se distancia da ruptura, mas não rompe com os códigos simbólicos que sustentaram o golpismo recente. O uso do termo “desordem”, as críticas veladas ao Supremo Tribunal Federal, a ambiguidade diante da prisão de Bolsonaro e o silêncio sobre as sanções impostas por Trump a autoridades brasileiras são exemplos desse comportamento dúbio. Ao invés de afirmar com clareza sua adesão à democracia e ao poder civil, as Forças Armadas preferem manter-se como fiadoras de uma estabilidade abstrata — uma estabilidade que, para muitos militares, pode significar também a suspensão da ordem democrática em nome da “pátria” ou da “segurança nacional”.

      Esse é o risco central da conjuntura atual: não é a existência de um golpe em preparação, mas a manutenção de uma cultura política que naturaliza o golpismo como possibilidade legítima em situações de crise. Enquanto essa cultura não for combatida com rigor — por meio de reformas estruturais no sistema de defesa, revisão da formação militar, fortalecimento do controle civil e responsabilização exemplar de militares golpistas — o Brasil continuará à mercê de uma regressão democrática que pode ser ativada por conjunturas adversas, internas ou externas.

      Em resumo, as Forças Armadas brasileiras não são hoje um ator coeso e golpista. Mas tampouco são um baluarte confiável da democracia. Sua neutralidade é tática, não estrutural. E em uma conjuntura internacional cada vez mais hostil à institucionalidade democrática, essa ambiguidade pode custar caro.

      Entre a vigilância e o perigo real: o golpe como possibilidade histórica

      O Brasil não vive sob a iminência imediata de um golpe de Estado. Mas também não está a salvo da tentação autoritária que atravessa sua história como um espectro persistente. O risco não está na repetição literal do que ocorreu em 1964 ou na consumação dos planos frustrados de 2022. O perigo, em 2025, reside na permanência das condições subjetivas e estruturais que mantêm viva a ideia de que a democracia é dispensável em nome de uma suposta ordem superior.

      O que a análise aqui apresentada demonstra é que o projeto de ruptura institucional nunca foi exclusivamente interno. Ele depende — e sempre dependerá — de uma correlação geopolítica favorável, de ambiguidade institucional e de uma base cultural que tolere ou deseje a exceção. Em 2022, essas três variáveis não se alinharam. O governo Biden atuou com firmeza para conter qualquer desvio autoritário, as Forças Armadas recuaram diante do risco reputacional e do isolamento internacional, e a sociedade civil se mobilizou, mesmo que de forma fragmentada, em defesa da legalidade.

      Mas agora, em 2025, essa equação se alterou. Donald Trump está na presidência dos Estados Unidos e demonstrou, com ações e palavras, que está disposto a pressionar economicamente o Brasil, sancionar seus ministros e defender abertamente Jair Bolsonaro, um réu por tentativa de subversão da ordem constitucional. Essa mudança de postura na maior potência do planeta não é um dado lateral. Ela reconfigura o ambiente simbólico e político, oferecendo respaldo indireto — mas poderoso — a toda sorte de narrativas golpistas internas.

      Do lado de cá, as Forças Armadas permanecem como um enigma. Não há sinais claros de adesão a qualquer plano de ruptura, mas também não há ruptura simbólica com o imaginário golpista. A ausência de autocrítica, o silêncio diante de sanções estrangeiras contra o Judiciário nacional e a recusa em apoiar publicamente o funcionamento das instituições republicanas revelam uma institucionalidade que ainda se coloca acima da democracia, como árbitra silenciosa do jogo político.

      Frente a isso, o que está em jogo não é a repetição de um golpe clássico, mas o gradual esgarçamento da confiança nas instituições democráticas e a banalização da exceção como recurso político. O golpe, hoje, não viria necessariamente pelos tanques, mas pela normalização da ruptura como solução plausível. E essa normalização só é possível quando há, simultaneamente, ambiente externo permissivo, narrativa interna mobilizadora e instituições que se omitem por conveniência, cálculo ou covardia.

      É por isso que este texto não é um alarme, mas um alerta. Um alerta à esquerda institucional que ainda subestima o poder corrosivo da extrema-direita internacional. Um alerta às forças democráticas que acreditam que o bolsonarismo está derrotado. E, sobretudo, um alerta à sociedade brasileira, que precisa entender que a defesa da democracia não é um ritual — é um processo permanente de vigilância, enfrentamento e reorganização das forças populares.

      A história brasileira já ensinou que quando a democracia parece sólida demais para cair, é justamente quando ela está mais vulnerável. E como nos lembra Walter Benjamin, “nem mesmo os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer”. Por isso, a tarefa histórica de hoje é simples na forma, mas profunda no conteúdo: não permitir que a história, mais uma vez, repita seu pesado.

       

      Artigo publicado originalmente em <código aberto> 

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