A Nova Doutrina Monroe: como Trump reativa a guerra nas Américas
A América Latina diante da encruzilhada histórica: entre a coerção dos EUA, a ascensão chinesa e a busca por soberania plena
Sob o pretexto de combater o narcotráfico, os Estados Unidos deslocam seu eixo estratégico para a América Latina, transformando o Caribe e a Venezuela em teatros de coerção militar e jurídica — enquanto a China consolida sua influência econômica e o Brasil se torna alvo potencial da diplomacia do medo.
Trump volta ao poder prometendo paz, mas prepara o continente para um novo tipo de guerra. Com a Ucrânia nas costas da Europa e o Irã fora do radar, Washington reativa a velha Doutrina Monroe em versão algorítmica: sanções, lawfare, força naval e narrativas de “narcoterrorismo” pavimentam o terreno para intervenções no quintal que tenta se libertar.
A América Latina volta ao centro do tabuleiro — e o Brasil precisa decidir se será colônia de novo ou protagonista de sua própria soberania.
O novo mapa do poder
Nas primeiras semanas de outubro de 2025, a América Latina atravessa uma guinada geopolítica em silêncio ruidoso: enquanto a Europa digere o ônus da guerra na Ucrânia, os Estados Unidos redesenham o tabuleiro no Caribe e no Atlântico Sul. Em alto-mar, embarcações suspeitas são atacadas com letalidade, sob a bandeira do combate ao narcotráfico — operações que estendem os tentáculos da lei americana sobre águas limítrofes à Venezuela. No Conselho de Segurança da ONU, vozes do mundo inteiro expressam alarme diante do que chamam de “intervenção dissimulada”.
Ao mesmo tempo, na esfera financeira e judicial, a disputa por CITGO — refinaria estratégica da Venezuela nos EUA — avança em tribunais de Delaware. Sanções e designações judiciais mantêm Caracas sob cerco, enquanto o Tesouro concede licenças temporárias que, na prática, condicionam o controle de ativos venezuelanos. E, como se não bastasse, Washington dobrou a recompensa por Nicolás Maduro, sinalizando que o punho coercitivo do “narcoterrorismo” está mais vigilante do que nunca.
Esse é o ponto de intersecção de três vetores transformadores: a descentralização do custo europeu da guerra (empurrado para UE/OTAN), a centralização coercitiva no mundo latino-caribenho — com a Venezuela no epicentro — e o uso renovado de arcabouços jurídicos para invadir limites de soberania nacional com pretextos antinarcóticos. É sobre essa nova cartografia de poder que este continente vive uma dança de sombras — e que este artigo vai desvendar, seção por seção, com os fios que conectam o Caribe militarizado, os trilhos chineses e o “fardo latino” que Washington não abriu mão.
A tese central — o deslocamento de Trump 2.0
Quando Donald Trump retornou à Casa Branca em janeiro de 2025, o mundo já não era o mesmo — e o império norte-americano tampouco. A guerra na Ucrânia transformara-se num buraco negro de recursos, e a China consolidava sua influência silenciosa sobre os portos, ferrovias e cadeias logísticas do Sul Global. Diante desse cenário, a administração Trump executou uma manobra clássica das potências em declínio: recuar das frentes distantes e recentrar o poder sobre o próprio hemisfério.
O que Trump chama de “nova doutrina de segurança” nada mais é do que a reedição modernizada da Doutrina Monroe, embalada pelo discurso de combate ao narcotráfico. Sob a fachada do pragmatismo pacifista, os Estados Unidos terceirizaram a guerra europeia para a OTAN, transformando-a num ônus político e financeiro da União Europeia, e voltaram-se com força total para a América Latina. A prioridade passou a ser clara: recuperar o controle das antigas zonas de influência e impedir que a China, a Rússia e os BRICS consolidem sua presença no continente.
Essa reorientação estratégica tem nome e data: Executive Order 14157, assinada em janeiro de 2025. O decreto cria uma nova moldura legal que permite aos EUA designar cartéis, facções e redes criminais como “organizações terroristas”. Essa simples mudança semântica amplia exponencialmente o alcance da jurisdição americana, abrindo espaço para operações militares, sanções financeiras e intervenções extraterritoriais sob o argumento de combate ao “narcoterrorismo”. É o tipo de ferramenta jurídica que transforma qualquer país em território potencial de intervenção.
Ao mesmo tempo, o Comando Sul (SOUTHCOM) foi reconfigurado como epicentro da nova doutrina. O Caribe passou a ser o palco experimental de operações de “interdição letal” contra embarcações supostamente ligadas ao tráfico. Sob o manto da legalidade americana, fragatas e drones atuam em águas próximas à Venezuela, projetando força e intimidando vizinhos. Trata-se de um poder que se afirma sem precisar declarar guerra: basta redefinir o inimigo e expandir o conceito de ameaça.
A engrenagem jurídica de 2025
A nova fase da ofensiva norte-americana sobre a América Latina não começou com movimentações de tropas, mas com uma canetada. Em janeiro de 2025, Donald Trump assinou a Executive Order 14157, um decreto que redefine os fundamentos legais da política externa dos Estados Unidos e cria o instrumento perfeito para o expansionismo jurídico do império. A medida permite que o governo americano classifique cartéis, facções e redes criminosas como “organizações terroristas estrangeiras”, equiparando o narcotráfico ao terrorismo internacional. Sob o pretexto de combater o crime transnacional, o que se inaugura é uma nova etapa da velha doutrina de controle: a legalização da ingerência.
O gesto é aparentemente técnico, mas carrega implicações profundas. Ao transformar cartéis em terroristas, Washington passa a ter jurisdição universal para agir em qualquer território sob a justificativa de autodefesa e proteção hemisférica. É o mesmo raciocínio que permitiu a guerra ao terror nos anos 2000, agora adaptado para o entorno latino-americano. O inimigo muda de nome, mas o método permanece o mesmo: criar uma ameaça difusa, ampliar os limites do direito internacional e operar sem autorização de ninguém. O conceito de soberania nacional se dissolve quando o poder que define o inimigo é o mesmo que o combate.
Por trás desse decreto, há uma arquitetura legal meticulosamente construída ao longo de décadas. A IEEPA (International Emergency Economic Powers Act) autoriza bloqueios de ativos e sanções contra qualquer pessoa ou governo considerado uma ameaça aos “interesses americanos”. O Kingpin Act, de 1999, permite congelar bens e proibir transações financeiras de indivíduos supostamente ligados ao tráfico. Já o MDLEA (Maritime Drug Law Enforcement Act) concede à Guarda Costeira e à Marinha o direito de interceptar embarcações “suspeitas” em águas internacionais, mesmo sem vínculo com os Estados Unidos. Com esses três pilares, o império criou um corpo jurídico paralelo, capaz de agir fora das fronteiras e acima das normas multilaterais.
Essa engrenagem opera com precisão cirúrgica porque substitui a guerra aberta pelo lawfare. Em vez de invasões, o império aplica sanções; em vez de tropas, usa tribunais; em vez de fuzis, manipula narrativas legais e financeiras. O direito, que deveria limitar o poder, é convertido em arma de poder. A lei se torna o campo de batalha onde se disputam recursos, influência e legitimidade. O novo belicismo norte-americano não precisa de tanques — basta uma assinatura presidencial e um parágrafo ambíguo no Federal Register.
O Caribe–Venezuela: soberania sob cerco
O Caribe tornou-se, em 2025, o epicentro silencioso da nova guerra de baixa intensidade travada pelos Estados Unidos. As águas que separam a Flórida da costa venezuelana abrigam hoje um tabuleiro de forças navais, drones de vigilância e operações que se autodeclaram “antinarcóticas”, mas que na prática configuram um cerco militar informal. O Comando Sul (SOUTHCOM), reestruturado pela administração Trump, transformou a retórica do combate ao tráfico em doutrina de controle regional. Não há tanques cruzando fronteiras, mas há fragatas norte-americanas patrulhando zonas marítimas estratégicas, interceptando embarcações, realizando operações letais e recolhendo informações em tempo real sob o argumento de que “ameaças difusas exigem respostas imediatas”.
Essas ações são juridicamente sustentadas pela MDLEA e pela nova EO 14157, que conferem à Marinha americana autoridade para intervir em águas internacionais contra alvos “não identificados” ligados ao tráfico de drogas. Na prática, isso significa que qualquer navio civil próximo à costa venezuelana pode ser abordado, e seus tripulantes, detidos, sob jurisdição dos Estados Unidos. A operação mais recente, ocorrida no início de outubro, resultou na destruição de quatro embarcações e na morte de mais de vinte tripulantes — um episódio que motivou protestos formais de Caracas e críticas no Conselho de Segurança da ONU. Washington classificou o incidente como “legítima defesa preventiva”, um conceito que o direito internacional ainda tenta decifrar.
A Venezuela está no centro desse jogo porque representa, para o império, o símbolo e o obstáculo. É o último Estado da América Latina que mantém uma política externa autônoma, alianças consistentes com Rússia, China e Irã, e uma das maiores reservas de petróleo do planeta. Sua simples existência como projeto político soberano é intolerável para a doutrina de contenção americana. Por isso, o país é submetido a um cerco multifacetado: militar no mar, financeiro nos tribunais e informacional na mídia internacional. A disputa judicial sobre a CITGO, refinaria venezuelana nos Estados Unidos, é apenas a face visível de uma estratégia mais ampla de asfixia. A cada rodada no tribunal de Delaware, a Venezuela perde um pedaço de seu patrimônio sob o pretexto de “indenizar credores internacionais” — um eufemismo jurídico para o confisco de ativos.
Equador – o laboratório da securitização e da ingerência
O Equador tornou-se, em 2025, o caso mais visível do novo modelo de dependência política promovido pelos Estados Unidos na América Latina. Após anos de instabilidade e crises sucessivas, o governo de Daniel Noboa transformou o país em um experimento de securitização total, combinando austeridade econômica, expansão militar interna e reaproximação acelerada com Washington. O discurso oficial fala em “combater o narcotráfico” e “restaurar a ordem”, mas a prática revela uma engenharia política de subordinação. O que se ensaia em território equatoriano é a transformação da segurança nacional em moeda de troca diplomática — e da soberania em concessão temporária.
O ponto de inflexão ocorreu no início de 2024, quando Noboa firmou com os Estados Unidos uma série de acordos militares e de cooperação em segurança que reabriram as portas para a presença direta de pessoal norte-americano em território equatoriano. Esses tratados, consolidados em um Status of Forces Agreement (SOFA), concedem imunidade jurídica a agentes estrangeiros e flexibilizam o controle do Estado sobre operações conjuntas. Em 2025, a Assembleia Nacional aprovou uma reforma constitucional permitindo a instalação de bases militares estrangeiras, medida que será referendada em consulta popular marcada para novembro. Sob o pretexto da “guerra contra o narcotráfico”, o país volta a aceitar tropas de um exército estrangeiro que há mais de uma década havia sido expulso da base de Manta.
Esse retorno da presença militar coincide com uma crise social sem precedentes. A explosão de protestos contra o fim dos subsídios ao diesel, o aumento do custo de vida e o desemprego levou o governo a decretar estado de emergência em dez províncias. As forças armadas passaram a patrulhar as ruas, e as prisões se multiplicaram em meio a denúncias de abusos e torturas. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos anunciaram um novo acordo de compartilhamento de dados e biometria para “enfrentar o crime transnacional”. Na prática, o que se estabelece é uma rede de vigilância mútua que conecta as agências de segurança equatorianas ao aparato norte-americano de inteligência, transformando o país em mais um nó da teia global de monitoramento do império.
Colômbia – a descetificação e o aviso ao continente
A Colômbia sempre foi o principal laboratório da política antidrogas dos Estados Unidos. Durante décadas, recebeu bilhões de dólares em assistência militar, equipamentos, inteligência e treinamento sob a bandeira do Plano Colômbia, que transformou o país em vitrine do intervencionismo legalizado. Mas em setembro de 2025, pela primeira vez em três décadas, o Departamento de Estado anunciou que Bogotá havia sido “descertificada” — ou seja, declarada incapaz de cumprir suas “obrigações de combate ao narcotráfico”. O gesto, mais do que uma sanção técnica, foi um ato simbólico: o império retirava o selo de fidelidade do seu mais fiel aliado na região.
A justificativa oficial soou vaga, quase burocrática. Washington alegou “falta de resultados consistentes” e “retrocesso nas políticas de erradicação”. Na prática, porém, a decisão foi um recado político ao governo de Gustavo Petro, que desde 2022 tenta reformular a política antidrogas com base em direitos humanos e redução de danos, rompendo com o paradigma punitivista que os Estados Unidos exportaram para o mundo. A descertificação é o preço pela tentativa de autonomia. Petro ousou propor o que os organismos internacionais já reconhecem há anos: que a guerra às drogas fracassou. E por isso foi punido.
A consequência imediata foi o congelamento de linhas de cooperação e a suspensão de parte da assistência financeira americana. Mas o impacto mais profundo é simbólico: a Colômbia deixou de ser o bom aluno do império e passou a ser o exemplo disciplinado pela insubordinação. Essa é a verdadeira função da “certificação antidrogas”: um mecanismo de controle diplomático disfarçado de política pública. Quando Washington concede o selo, recompensa a submissão; quando retira, sinaliza ao continente o custo da independência.
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* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.