IA: a bússola da China aponta para o Sul Global
O país asiático propôs a criação de uma organização de cooperação global em inteligência artificial
Por Fernando Capotondo para o 247 - Nos últimos dias, passou despercebida uma notícia que, em outro contexto político, provavelmente teria viralizado: a República Popular da China propôs a criação de uma organização de cooperação global em inteligência artificial (IA), com o objetivo de democratizar o acesso a essa tecnologia em nível internacional, especialmente entre os países do Sul Global. O anúncio foi feito pelo primeiro-ministro chinês Li Qiang durante a Conferência Mundial de Inteligência Artificial (WAIC), realizada na cidade de Xangai, com mais de 1.500 participantes de 40 países e organizações de todo o mundo.
O alto representante chinês afirmou que a iniciativa busca evitar que a IA se torne um “jogo exclusivo” dos poucos que hoje dominam o setor — entre eles, a própria China e os Estados Unidos, naturalmente. “Diante da fragmentação crescente na governança global da Inteligência Artificial, há uma necessidade urgente de ampliar o consenso sobre como equilibrar desenvolvimento e segurança”, declarou Li durante a abertura do evento, que ocorreu em paralelo à Reunião de Alto Nível sobre Governança Global da IA.
Após reconhecer que há uma “preocupação generalizada” quanto aos riscos e desafios que a IA impõe, o primeiro-ministro propôs que “a inteligência artificial deve se tornar um bem público internacional a serviço da humanidade”, e acrescentou que “a China está disposta a compartilhar sua experiência para ajudar os países do mundo todo, especialmente os do Sul Global”. Embora o anúncio tenha ocorrido num evento promovido sob o lema “Solidariedade global na era da IA”, ninguém em sã consciência deixou de perceber a intenção das autoridades chinesas de se diferenciar do Plano de Ação para a IA lançado dias antes pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
De fato, acadêmicos, especialistas e autoridades chinesas presentes na WAIC não economizaram nas referências à governança global, à abertura, à inclusão, ao multilateralismo e ao desenvolvimento conjunto — todas palavras que soaram como o completo oposto das expressadas por Trump, ao relançar um programa centrado em segurança nacional, competição, supremacia dos EUA e rejeição explícita a tudo que tenha ligação com a China.
Em preto e branco (e alguns tons de cinza)
Em um cenário cada vez mais polarizado entre Pequim e Washington, a inteligência artificial deixou de ser apenas uma tecnologia transformadora, capaz de reconfigurar até o inimaginável, e passou a ser também o novo campo de disputa de uma geopolítica cada vez mais tensa e acelerada.
Nesse contexto, o movimento da China é observado com atenção redobrada, dada sua posição de destaque no setor: o país concentra 20% dos investimentos privados globais em IA (atrás apenas dos EUA), detém impressionantes 69% das patentes internacionais, conta com 1.509 grandes modelos de IA — mais do que qualquer outro país —, além de possuir 5.100 empresas e 71 startups unicórnio na área. Também é responsável por 23,2% de todas as publicações científicas de 2023. Como se isso não bastasse, a China pretende investir mais de 150 bilhões de yuans (aproximadamente 20,7 bilhões de dólares) em pesquisa e desenvolvimento em 2025, o que representa um aumento de 40% em relação ao Plano Quinquenal anterior, segundo o Ministério da Indústria e Tecnologia da Informação (MIIT).
Esse apoio estatal foi destacado em um relatório recente da Bloomberg, que relatou a proliferação de “centenas de empresas de robótica impulsionadas pelo respaldo do presidente Xi Jinping e por uma série de incentivos”. No entanto, o mesmo documento alerta que, embora os semicondutores de fabricação nacional e os modelos de IA de código aberto estejam ganhando velocidade, não se espera que todas as startups sobrevivam.
Nem todos, é claro, compartilham o mesmo entusiasmo.
“O crescimento dos modelos linguísticos chineses, especialmente os de código aberto, trouxe esperança à comunidade internacional, oferecendo a possibilidade de aproveitar os benefícios da IA. Um bom exemplo é como os serviços de tradução baseados na tecnologia DeepSeek contribuíram para os esforços de resgate após o terremoto em Mianmar”, afirmou Wang Ruomeng, da Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma, em uma declaração feita semanas atrás, que agora ganha nova relevância diante do anúncio sobre a governança global.
Como uma Fórmula 1
Do outro lado do balcão, a estratégia de Trump foi apresentada como uma espécie de manifesto tecno-político contra seu arquirrival, a China, com medidas que vão desde o controle rigoroso das exportações e a exclusão de tecnologias “adversárias” até alianças com países em desenvolvimento para conter a “Rota da Seda Digital” e a imposição de uma narrativa ideológica centrada na segurança nacional. “Estamos garantindo que os Estados Unidos vençam a corrida da IA, e não vamos permitir que outros países, especialmente a China, definam as regras para essa tecnologia crucial”, declarou o presidente.
Como resumiu com precisão Steven Hai, professor de inovação tecnológica na Universidade Jiaotong Liverpool, em Xi’an, “China, Estados Unidos e outras grandes economias estão engajadas em uma maratona com velocidade de Fórmula 1”, na qual ainda é cedo para prever qual nação sairá vencedora.
De acordo com relatórios do instituto de pesquisa europeu Epoch IA, divulgados durante a WAIC, China e Estados Unidos dominam amplamente o setor, sendo que apenas entre 10% e 15% dos modelos mais recentes foram desenvolvidos sem a participação de nenhum dos dois países. Nesse cenário, 78% dos modelos chineses são considerados “na vanguarda” da tecnologia, em comparação com 70% dos norte-americanos.
E em casa, como estamos?
Nesse tabuleiro binário, o Sul Global é observado com desconfiança, ao mesmo tempo em que é visto como território em disputa e potencial aliado ou cliente em uma corrida cujo desfecho é imprevisível. Segundo dados da UNESCO, mais de 85% dos países em desenvolvimento não possuem sequer uma estratégia básica de inteligência artificial, e apenas 20% contam com infraestrutura suficiente para implementá-la com algum grau de soberania.
Para essas nações, uma das maiores vantagens da China em relação aos Estados Unidos “é que a maioria de seus principais modelos são de código aberto e ‘open-weight’ (com livre acesso aos algoritmos de ponderação), como o bem-sucedido DeepSeek”, comentou o ex-CEO do Google, Eric Schmidt, em uma das palestras da WAIC.
À parte das fissuras econômicas e políticas, a inteligência artificial mostra-se como um negócio em plena expansão, a julgar pelos 150 bilhões de dólares investidos globalmente em 2023, conforme indicado pela plataforma Statista, e pelos 15% do PIB mundial que ela pode representar até 2030 — ou seja, logo ali —, segundo projeções da International Data Corporation (IDC).
O valor do mercado global ficou entre 230 e 280 bilhões de dólares em 2024. As estimativas para 2025 variam entre 300 e quase 400 bilhões de dólares, e as projeções para 2032 chegam a 1,7 trilhão de dólares, conforme os dados mais recentes da Fortune Business Insights, Grand View Research, Exploding Topics e da UNCTAD.
Enquanto os lucros se concentram nas mãos de poucos e a impotência se espalha entre muitos, resta saber se as respostas globais também serão inteligentes diante de dois modelos que, à primeira vista, parecem antagônicos. Talvez seja interessante perguntar isso ao ChatGPT, DeepSeek, Gemini ou a qualquer outra tecnologia emergente. Mas talvez a questão mais urgente não seja quem dominará a IA — e sim, quem poderá usá-la sem precisar pedir permissão.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com [email protected].
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: