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      China: não haverá mais guerras nem esquecimento

      O governo desclassificou milhares de documentos, em resposta à “amnésia” do Ocidente em relação aos 35 milhões de vítimas chinesas na Segunda Guerra

      China: não haverá mais guerras nem esquecimento
      Redação Brasil 247 avatar
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      Por Fernando Capotondo

      O Arquivo Estatal da China desclassificou mais de 40 mil artigos sobre os 14 anos de resistência aos ataques japoneses, no contexto do crescente interesse do governo em lembrar ao mundo o papel crucial desempenhado pelo povo chinês durante a Segunda Guerra Mundial. Suas 35 milhões de vítimas, 80 milhões de deslocados e mais de 1.100 cidades arrasadas representam feridas ainda abertas, à espera de um reconhecimento unânime da comunidade internacional, segundo reivindicam autoridades de Pequim, no 80º aniversário da vitória na Guerra de Resistência do Povo Chinês contra a Agressão Japonesa e na Guerra Antifascista Mundial, como preferem chamá-las.

      Nesse sentido, os atos oficiais repetem a mensagem política que o chanceler Wang Yi levou à agenda em uma de suas últimas visitas à Rússia, no início de 2025: “Devemos apoiar firmemente a justiça internacional e, junto com os povos amantes da paz em todo o mundo, defender a história escrita com sangue e vidas, além de nos opormos a qualquer tentativa ou ação que negue, distorça ou falsifique a história da Segunda Guerra Mundial.”

      Além da desclassificação dos documentos do período 1931-1945, a China revelou nesta semana quase 4 mil arquivos sobre crimes de guerra cometidos contra seu povo e denunciou a responsabilidade da empresa South Manchuria Railways Co. no financiamento dos planos militaristas japoneses, informou a agência Xinhua.

      Como parte deste plano pela memória, o Museu da Guerra de Resistência se tornou palco de uma megaexposição com 1.525 fotografias e 3.237 relíquias. Até 3 de setembro, data oficial da comemoração, estão previstas 20 peças de teatro nas principais salas do país, além da seleção de mais de 300 obras de arte — entre pinturas tradicionais, óleos, gravuras, esculturas e aquarelas — para exibição no Museu Nacional de Arte da China, anunciou o vice-ministro da Cultura e Turismo, Lu Yingchuan.

      No cinema, cresce a expectativa pelo lançamento de 731, filme do diretor Zhao Linshan sobre a guerra bacteriológica desencadeada pelo Japão. A produção Death to Rights, sobre o Massacre de Nanquim, arrecadou 210 milhões de dólares em apenas 10 dias e segue repercutindo na imprensa internacional. Paralelamente, cerca de 100 produções — incluindo microdramas e documentários restaurados com Inteligência Artificial — já ultrapassaram 600 milhões de visualizações em plataformas de streaming (Tencent Video, iQiyi e Bilibili) e redes sociais (Douyin, Kuaishou e WeChat Video Channel).

      A lista de iniciativas inclui as séries Nossa Pátria e Oito Mil Milhas de Nuvens e Lua, previstas para 2025, além de diversos documentários e docuseries sobre a guerra, segundo antecipou o vice-diretor da Administração Nacional de Rádio e Televisão, Liu Jianguo.

      Diplomacia da memória

      Essa ofensiva cultural vem acompanhada de uma “diplomacia da memória” que a China levou da Rússia à América Latina e Caribe, com exposições fotográficas, exibições de documentários, conferências, lançamentos de livros, debates e difusão de material histórico. “Em 18 de setembro de 1931, os invasores japoneses iniciaram uma guerra de agressão contra a China que durou 14 anos. Como principal frente oriental da Guerra Antifascista Mundial, a Guerra de Resistência do Povo Chinês contra a Agressão Japonesa foi a que começou mais cedo, durou mais tempo, mobilizou mais forças e causou mais vítimas”, afirmou o embaixador Wang Wei, na abertura de uma mostra em Buenos Aires.

      Entre as análises mais repercutidas está a do historiador britânico Rana Mitter, para quem a resistência chinesa às tropas japonesas foi decisiva para a vitória aliada. “Oito décadas após o armistício, o Ocidente ainda não compreende qual foi o papel da China no conflito”, disse ele.

      Mitter, professor da Universidade de Oxford e autor do livro A Aliança Esquecida: a Segunda Guerra Mundial da China, 1937-1945, argumenta: “A China foi o principal cenário de combate no Oriente, e se tivesse se rendido ao Japão ou chegado a algum tipo de acordo, a guerra teria seguido um rumo completamente diferente.”

      Segundo o especialista, a narrativa ocidental ainda privilegia o início da guerra na Europa, com a invasão nazista da Polônia em 1939, e considera eventos anteriores na China como secundários. Assim, o “Incidente de Mukden” de 1931 e o “Incidente da Ponte Marco Polo” de 1937, que marcou o início da Segunda Guerra Sino-Japonesa, permanecem pouco lembrados.

      O papel esquecido

      O foco tradicional dos relatos da Segunda Guerra recai sobre o front europeu e só volta ao Pacífico com o ataque a Pearl Harbor. Filmes, livros e o reconhecimento social destacam o heroísmo aliado, o Holocausto e a derrota do Japão após Hiroshima e Nagasaki, enquanto o sacrifício chinês permanece em segundo plano.

      O historiador Hans van de Ven, da Universidade de Cambridge, concorda: “Sem a prolongada resistência chinesa, o Japão teria tido liberdade para expandir-se muito mais pela Ásia-Pacífico. Essa contribuição, no entanto, nunca entrou no centro da memória bélica ocidental.”

      Van de Ven observa que a memória coletiva no Ocidente favoreceu batalhas curtas e espetaculares, como Midway ou o Dia D, em detrimento de campanhas longas e desgastantes como as travadas no território chinês.

      Razões para o esquecimento

      Historiadores apontam três motivos principais para essa lacuna:

      1.  A imediata eclosão da Guerra Fria tornou politicamente inconveniente reconhecer as conquistas de um país comunista.
      2.  O eurocentrismo reduziu a importância do front oriental e subestimou até 40% as baixas na região.
      3.  A divisão interna entre o Partido Comunista Chinês e o Kuomintang apagou a memória de uma resistência unificada contra o Japão.

      Diante disso, Pequim decidiu usar o 80º aniversário do fim da guerra para reforçar suas reivindicações de memória histórica. A aposta inclui produções cinematográficas de grande apelo, exposições interativas e ações voltadas ao público jovem.

      Num mundo em que se discutem guerras econômicas, tecnológicas e climáticas, a China parece evitar um “conflito pela memória”, mas não abre mão de preservar a lembrança de seus mortos. “Se deixarmos o mundo esquecer os 35 milhões de chineses massacrados, então seu sangue terá sido derramado em vão”, disse o Nobel de Literatura Mo Yan no Museu do Massacre de Nanquim, onde 300 mil pessoas foram mortas em apenas seis semanas.

      Ninguém melhor que um Nobel para escolher as palavras certas.

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