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      China insiste no futebol: a resiliência não se mancha

      Depois dos resultados decepcionantes das últimas três décadas, a China lançou um novo plano para promover o desenvolvimento do futebol em nível nacional

      China insiste no futebol: a resiliência não se mancha (Foto: Xinhua)
      Redação Brasil 247 avatar
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      Por Fernando Capotondo

      “Embora a China esteja a meio mundo de distância da Europa, consigo sentir a mesma paixão pelo futebol”, afirmou a lenda italiana Roberto Baggio ao participar de um jogo da Superliga Rural da China, realizado recentemente na província de Guizhou. O “Cun Chao” – como é chamado pelos camponeses – é uma competição amadora em que agricultores, pedreiros e até policiais se enfrentam em partidas intensas que costumam viralizar pela paixão que despertam. O torneio já superou 5 bilhões de visualizações em um ano no Weibo (mistura de X e Facebook), e um gol de meio de campo marcado por um professor ultrapassou 45 milhões de reproduções no Douyin (o TikTok chinês).

      A enorme repercussão do que começou como o futebol de várzea de Rongjiang – um condado humilde de 300 mil habitantes, onde as colinas se transformam em arquibancadas improvisadas – teria sido um dos fenômenos sociais observados pelas autoridades chinesas para voltar a apostar em um esporte marcado por fracassos, frustrações e escândalos de corrupção.

      De fato, dois meses após a eliminação da seleção nacional da Copa do Mundo de 2026, a China voltou a recorrer à sua conhecida capacidade de resiliência e apresentou um novo plano integral para impulsionar o desenvolvimento do futebol, desta vez com um ambicioso programa voltado para a formação de base, entre os 250 milhões de crianças e adolescentes do país.

      Em uma conferência sobre o desenvolvimento do futebol, a conselheira de Estado Shen Yiqin anunciou o “enfoque crítico” que o governo pretende dar à “criação de um sistema nacional robusto de futebol juvenil”. “Esta iniciativa – explicou – tem como objetivo acelerar a construção de centros de treinamento em todos os níveis, promover a educação futebolística infantil e formar talentos de alto nível com o apoio de treinadores.”

      Segundo Shen, haverá maior cooperação entre escolas e clubes profissionais, programas de capacitação para técnicos e financiamento adicional para as mais de 500 ligas regionais e locais.

      O governo também concentrará programas-piloto nas cidades mais apaixonadas por futebol e na região oeste do país, além de incentivar o “desenvolvimento saudável” das ligas profissionais e fortalecer os intercâmbios internacionais.

      A referência às ligas profissionais está relacionada às diretrizes mais recentes da Academia Geral de Esportes da China, que proibiu os clubes de contratar mais de cinco estrangeiros por elenco e impôs limitações contratuais para garantir sustentabilidade. O objetivo é virar a página de uma era em que valores astronômicos eram pagos a estrelas em fim de carreira, como ocorreu com o argentino Carlos Tévez, contratado pelo Shanghai Shenhua aos 33 anos com um salário de quase US$ 900 mil por semana.

      Os novos tempos buscam evitar o desperdício e focam no talento local, com o desenvolvimento de 50 mil escolas modelo sob os padrões da FIFA e programas de treinamento que, até 2030, devem envolver cerca de 50 milhões de chineses.

      Para alcançar essa meta, Shen Yiqin reafirmou o compromisso do governo em ampliar o apoio econômico — estimado em 400 bilhões de yuans (cerca de US$ 60 bilhões) na próxima década — e destacou a decisão política de aplicar “rigoroso controle disciplinar e medidas anticorrupção” em um esporte que acumulou escândalos recentes.

      Nesse ponto da conferência, era inevitável o peso das 18 condenações por corrupção nos últimos anos, entre elas as do ex-treinador da seleção Li Tie, do ex-presidente da Superliga Chinesa Liu Jun e do ex-diretor do Comitê Disciplinar da Associação Chinesa de Futebol (AFC), Wang Xiaoping.

      Talvez o nome mais lembrado tenha sido o de Chen Xuyuan, ex-presidente da ACF, condenado à prisão perpétua por desvio de fundos, manipulação de arbitragens e recebimento de US$ 11 milhões em subornos entre 2010 e 2023. “Os torcedores podem tolerar o atraso do futebol chinês, mas não a corrupção”, declarou o próprio Chen, com expressão inalterada, em um documentário exibido meses antes de sua sentença.

      Perseverar para vencer

      A China só participou da Copa do Mundo de 2022, ocupa o 94º lugar no ranking masculino da FIFA (entre Síria e Benin), tem a seleção feminina na 16ª posição mundial e 4ª na Ásia, e seu futebol profissional vive um momento de transição. Essa situação não se deve à falta de interesse oficial — pelo contrário. As autoridades veem o futebol como parte de seu patrimônio cultural e lembram com frequência que, em 2004, a FIFA reconheceu o Cuju chinês, praticado há mais de 2 mil anos durante a dinastia Han, como o primeiro antecedente do futebol moderno.

      Esse contexto ajuda a explicar a insistência de Pequim em reativar o esporte, mesmo após o fracasso de projetos anteriores como o “Plano de Reforma e Desenvolvimento do Futebol” (1994), o “Projeto Futebol Escolar” (2009), o “Plano de Médio e Longo Prazo do Futebol” (2016), a “Iniciativa 50.000 Escolas” (2015-2020) e o “Programa de Naturalizações” (2019-2023).

      Para qualquer outro país, o insucesso desses programas seria suficiente para sepultar o interesse. Na China, no entanto, as quedas ativam uma disciplinada “estratégia da perseverança”, como batizou um poeta argentino.

      “O futebol chinês atravessa um período de ajustes profundos. Aprendemos com os erros do passado e estamos construindo bases sólidas, com paciência e determinação. Essa é a resiliência chinesa: transformar desafios em oportunidades, com uma visão de longo prazo que prioriza a sustentabilidade em vez do sucesso imediato”, afirmou Gao Zhidan, diretor da Administração Geral de Esportes da China, em um fórum sobre desenvolvimento do futebol em Pequim.

      Resta saber se o futebol chinês realmente aprendeu com seus repetidos erros. A única certeza, até agora, é que — parafraseando Maradona — a resiliência chinesa não se mancha.

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