Voepass ignorou alerta sobre falha no sistema de degelo horas antes de queda de avião, revela ex-funcionário
Testemunha afirma que problema relatado verbalmente por piloto foi omitido do diário de bordo, o que impediu manutenção e permitiu decolagem da aeronave
247 - Quase um ano após a queda do voo 2283 da Voepass, que deixou 62 mortos em Vinhedo (SP), uma nova revelação lança luz sobre possíveis negligências cometidas antes da tragédia. Em entrevista ao g1, um ex-funcionário da companhia aérea afirmou que uma falha no sistema de degelo da aeronave foi relatada verbalmente por um piloto, mas acabou não sendo registrada no diário de bordo — o que permitiu que o avião continuasse operando normalmente, mesmo sem passar por uma verificação técnica mais detalhada.
Segundo a testemunha, que trabalhava na equipe de manutenção da Voepass, o alerta foi feito por um comandante que havia voado com o mesmo ATR 72-500 horas antes do acidente. Ele teria informado que o sistema de degelo estava falhando, desligando sozinho durante o acionamento — um problema classificado como grave, principalmente diante da rota prevista para a manhã seguinte, que incluía áreas com formação de gelo severo.
“Foi alegado que ela tinha apresentado o airframe fault durante o voo. Ele acionava [o sistema] e ela desarmava. Coisa que não poderia acontecer”, relatou o ex-funcionário.
Documento obrigatório foi ignorado - O technical log book (TLB), ou diário de bordo técnico, é um documento obrigatório em operações aéreas e deve registrar todas as falhas mecânicas reportadas por pilotos. Sem esse registro, a manutenção não tem autorização formal para intervir. No caso do voo 2283, a ausência do apontamento escrito foi determinante para que a falha não fosse investigada.
“O próprio líder questionou: ‘bom, se ele não reportou em livro, não tem pane na aeronave’. Esse era o legado da empresa: se o comandante reporta, tem ação de manutenção; se não reportou, eles não vão perder tempo com nada que ele falar”, afirmou a testemunha.
A negligência, segundo o relato, teria ocorrido em um contexto de pressão por parte da diretoria da Voepass para que os aviões permanecessem em operação o máximo possível. A manutenção era feita em janelas apertadas, sem tempo adequado para diagnósticos completos.
“É um período muito curto para ser feita manutenção na aeronave. Era a própria diretoria que exigia isso, queria o avião voando. Então assim, eles nem pesquisaram [o problema no sistema de degelo]”, explicou.
Linha do tempo antes da tragédia - Com base nos relatos do ex-funcionário e nos registros do site Flightradar, que monitora voos em tempo real, é possível reconstruir os últimos movimentos da aeronave PS-VPB no dia do acidente, 9 de agosto de 2024:
- 00h12: Decolagem de Guarulhos (voo 2293)
- 01h00: Pouso em Ribeirão Preto, onde o comandante relata verbalmente a falha
- 01h–05h30: Aeronave permanece no hangar sem reparos, pois não havia registro formal da pane
- 05h32: Decolagem de Ribeirão para Guarulhos
- 06h35: Pouso em Guarulhos
- 08h20: Decolagem para Cascavel
- 11h56: Decolagem de Cascavel de volta a Guarulhos
- 13h22: Queda em Vinhedo
Degelo foi acionado, mas pode não ter funcionado - Informações obtidas pela perícia indicam que os pilotos do voo 2283 tentaram acionar o sistema de degelo três vezes durante o voo fatal. No entanto, segundo Carlos Eduardo Palhares Machado, diretor do Instituto Nacional de Criminalística (INC), tudo indica que o sistema não respondeu.
“Eles estavam voando em uma condição de gelo severo e, muito provavelmente, aquele dispositivo não funcionou. Isso é muito relevante do ponto de vista do que pode ter causado o acidente”, afirmou Palhares.
O relatório preliminar do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) aponta que a caixa-preta captou uma conversa entre os pilotos mencionando o defeito no sistema.
Segundo o professor James Waterhouse, da Universidade de São Paulo (USP), falhas no sistema de proteção contra gelo comprometem diretamente a segurança do voo:
“O avião tem que comprovar a capacidade de voar com segurança em condição de formação de gelo severo. Caso contrário, você não poderia despachar um voo para um local que teria formação de gelo”, explicou o especialista.
Investigação criminal - A omissão no registro da falha e a decisão de liberar a aeronave para voar estão sob investigação da Polícia Federal, que apura se houve crime na condução das operações da empresa. A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) cassou o certificado de operação da Voepass após constatar falhas graves de segurança.
O ex-funcionário acredita que a tragédia poderia ter sido evitada:
“Se o piloto reporta, essa aeronave teria ficado aqui [em Ribeirão Preto] ou não teria ido para o destino final que ela foi. Então, com certeza, um acidente poderia ter sido evitado".
Além da PF e do Cenipa, a investigação também conta com a atuação da Anac, que segue apurando responsabilidades no caso que marcou uma das maiores tragédias aéreas recentes no país.
Em nota enviada ao Brasil 247, a Voepass afirma: A VOEPASS informa que sempre atuou cumprindo com exigências rigorosas dedicadas a garantir a segurança das suas operações aéreas, e reitera que sua frota sempre esteve aeronavegável e apta a realizar voos. A atuação da empresa esteve sempre pautada em padrões de segurança internacionais, contando inclusive com a certificação IOSA, um requisito de excelência operacional emitido apenas para empresas auditadas IATA, além de ter o acompanhamento periódico da ANAC como agência reguladora. Em 30 anos de atuação, em um setor altamente regulado, a segurança dos passageiros e da tripulação sempre foi a prioridade máxima da companhia.
Cabe lembrar que o relatório preliminar do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA), divulgado em setembro de 2024, confirma que a aeronave do voo 2283 estava com o Certificado de Verificação de Aeronavegabilidade (CVA) válido e com todos os sistemas requeridos em funcionamento.
Por fim, a empresa reitera sua confiança no trabalho do CENIPA, com o qual tem colaborado desde o início das apurações, e reforça que a investigação de um acidente aéreo é um processo complexo, que envolve múltiplos fatores e requer tempo para ser conduzida de forma adequada. Somente o relatório final do CENIPA poderá apontar, de forma conclusiva, as causas do ocorrido.
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