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Suspensão de evento com Boaventura na USP gera repúdio de acadêmicas

Manifesto de pesquisadoras alerta para efeitos da política de silenciamento na vida acadêmica

Suspensão de evento com Boaventura na USP gera repúdio de acadêmicas (Foto: ABR)

247 - Um grupo de 23 acadêmicas e ativistas publicou uma nota crítica sobre a crescente legitimação da chamada “cultura do cancelamento” no ambiente acadêmico. O texto foi divulgado após a suspensão do seminário O futuro da democracia ou a democracia do futuro, que ocorreria na Universidade de São Paulo (USP) com participação do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. 

Segundo a justificativa oficial, o evento foi cancelado porque Boaventura não poderia comparecer por razões de saúde. No entanto, a decisão coincidiu com manifestações contrárias à presença do intelectual. O episódio reacendeu debates sobre a influência das redes sociais, denúncias públicas e a fragilidade do espaço acadêmico diante de pressões externas.

O contexto das acusações

Boaventura de Sousa Santos, sua parceira intelectual Maria Paula Meneses e o professor cabo-verdiano Bruno Sena Martins foram alvos, em 2023, de acusações dentro do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Embora amplamente repercutidas pela imprensa, as denúncias não se transformaram em processos formais. Atualmente, o caso está judicializado em Portugal, após ações movidas por difamação contra o coletivo de acusadoras.

As autoras do manifesto ressaltam que o objetivo não é detalhar o processo, mas estimular reflexão sobre os riscos de normalizar práticas de cancelamento no meio acadêmico brasileiro.

Impactos na produção científica

Na avaliação das pesquisadoras, quando a cultura do cancelamento se instala nas universidades, ela ameaça a integridade científica e a liberdade de cátedra. O documento lista práticas que incluem desde a exclusão de autores de bibliografias até a recusa de artigos que citam intelectuais “proibidos”, passando por convites cancelados para palestras, bancas ou seminários.

Essas ações, afirmam, trazem riscos como violação de direitos autorais, estímulo ao plágio disfarçado e comprometimento da transparência científica. “Eliminar referências não é um gesto crítico, mas sim o apagamento do debate”, enfatizam.

Leia a nota na íntegra:

Esta nota crítica surge diante da preocupação coletiva em relação à suspensão do evento 'O futuro da democracia ou a democracia do futuro', que teria lugar na Universidade de São Paulo e contaria com a presença de Boaventura de Sousa Santos. Embora a justificativa oficial da organização tenha sido a impossibilidade da presença do palestrante por motivos de saúde, fato é que a suspensão do evento coincidiu com mobilizações contrárias à participação do intelectual português.

Ressalte-se que o intelectual português sofreu acusações, em 2023, no interior da instituição de pesquisa em que atuava. Elas também se dirigiam à sua aliada e parceira intelectual de longa data, a moçambicana Maria Paula Meneses, e ao seu ex-orientando e então colega docente, o cabo-verdiano Bruno Sena Martins. Embora tenham gerado conteúdos midiáticos sensacionalistas e linchamentos simbólicos, as denúncias nunca se configuraram como processos legais formais. Atualmente, o caso segue no Poder Judiciário Português, para além das redes sociais, porque o professor moveu ações por difamação contra o coletivo de acusadoras.

Confeccionada e/ou assinada por vinte e três mulheres acadêmicas e/ou ativistas comprometidas com a justiça social e epistêmica, assim como pela criação de um ambiente acadêmico de diálogo, esta reflexão não pretende esmiuçar os pormenores do caso e os seus desdobramentos. O seu objetivo é convidar pesquisadores/as, docentes, discentes, centros de ensino e pesquisa a refletir, com serenidade e profundidade, sobre os riscos da consolidação, no ambiente acadêmico brasileiro, do fenômeno social denominado de “cultura” ou “política” do cancelamento.

Cabe destacar que a maior parte de nós esteve, em algum momento de nossas trajetórias acadêmicas, na Universidade de Coimbra, especialmente no Centro de Estudos Sociais, e nos nutrimos do projeto intelectual e político das Epistemologias do Sul proposto, em grande medida, por Boaventura e Maria Paula Meneses. 

Enfatizamos, além disso, que não estamos de acordo com práticas de violência de gênero, de qualquer forma de opressão, acosso individual ou institucional nas universidades ou em qualquer outro ambiente doméstico ou de atuação profissional e política, em particular da exercida por homens contra as mulheres, fruto de um projeto civilizatório secular, hierárquico e patriarcal. Defendemos que denúncias devem ser consideradas pertinentes e apuradas e, quando comprovadas como procedentes, devem resultar em medidas de justiça e reparação que permitam a superação da violência. 

Reconhecer o enraizamento estrutural da violência de gênero é um passo indispensável, mas insuficiente, se não vier acompanhado da construção coletiva de mecanismos de escuta, acolhimento e responsabilização que não repliquem a violência que pretende-se combater.

A cultura do cancelamento, ainda em fase de definição conceitual, envolve a crítica (sistemática e massiva) e a censura (arbitrária) de pessoas cujos discursos ou condutas denunciados são considerados execráveis por determinado grupo. Levadas ao limite, as ações de interdição compulsória, inicialmente propagadas pelas redes sociais, impactam diretamente a vida real dos alvos, inviabilizando outras dimensões da existência como trabalho, fontes de renda, relação conjugal e familiar e liberdade de ir e vir, além de abalarem ou destruírem a saúde psíquica e física dos alvos.

Trazidas para o ambiente acadêmico e tendo em vista o extermínio intelectual e profissional de um pensador ou pensadora, as práticas canceladoras envolvem:

a) a retirada de nomes de autores/as cancelados/as das referências bibliográficas de dissertações e teses, por mais basilares que tenham sido para as pesquisas ali apresentadas;

b) a revogação dos convites (para participação em bancas, palestras e seminários) feitos aos intelectuais cancelados e, também, àquelas pessoas que, discordam deste apagamento epistêmico;

c) a recusa de artigos que trazem ideias e argumentos fundamentados nas propostas das fontes “proibidas”, por parte de editores e pareceristas de revistas acadêmicas;

d) a exigência, por parte do alunado, bem como de algumas instâncias de poder nas lides acadêmicas, de que docentes retirem determinadas obras dos planos de ensino das disciplinas;

e) a impossibilidade de estudantes e docentes “confessarem” haver vivido experiências exitosas e desprovidas de abuso, nas relações (pessoais, acadêmicas ou profissionais) estabelecidas com as pessoas canceladas, assim como nos espaços considerados tóxicos;

f) e, por fim, o impacto institucional, — como evidenciado recentemente na USP —, em que grupos organizados dentro da universidade podem impedir a realização de eventos, motivados pela discordância quanto à presença de determinado convidado.

Estas e outras ações de cancelamento têm consequências – jurídicas, éticas e metodológicas – interconectadas entre si, a saber:

- O risco de violação do direito autoral, previsto no artigo 184 do Código Penal brasileiro;- A tolerância crescente às formas dissimuladas de plágio ou falso ineditismo de ideias - considerado inadmissível -, através da apropriação de conceitos, reflexões e propostas teóricas e metodológicas sem que o autor receba os devidos créditos;- A confiabilidade e a validade das pesquisas científicas e dos resultados que estas apresentam. Isto porque um dos princípios fundamentais do método científico é o da replicabilidade, que depende, por sua vez, da transparência e da veracidade das fontes citadas.

Outro imbróglio, de caráter político - e também psicanalítico -, diz respeito ao silenciamento ou autocensura, que provoca um cenário coletivo de cancelamento pelo receio de represálias.

O ambiente de silenciamento – marcado pela alta probabilidade de a voz discordante tornar-se o novo alvo das práticas canceladoras – decorre da expansão, dentro e fora do ambiente digital, do dispositivo biopolítico do medo, para usar o conceito de Michel Foucault. Nesse contexto, as redes sociais funcionam como arenas de julgamento sumário, onde a lógica da polarização amplifica o medo do ostracismo e reduz a possibilidade de debates mais complexos e matizados.

Observamos, com assombro crescente, que a cultura do cancelamento vem sendo legitimada, inclusive entre intelectuais e ativistas comprometidos/as com as lutas sociais e com a construção de uma sociedade mais igualitária. Essa contradição revela que, mesmo em espaços críticos, podemos reproduzir lógicas opressivas, o que exige de nós vigilância constante e disposição para tensionar práticas cristalizadas.

Importante destacar que distinguimos a diferença fundamental entre cancelar e criticar publicamente — ainda que, na prática, as fronteiras entre ambas possam se embaralhar. A crítica pública é parte essencial do debate democrático: ela visa contestar ideias, posicionamentos ou comportamentos com base em argumentos, permitindo o contraditório e o esclarecimento.

Diferentemente, a política de cancelamento tende a operar como uma forma de deslegitimação sumária da pessoa cancelada, em que o foco deixa de ser o conteúdo do que está em debate, e passa a ser a invalidação da própria pessoa enquanto sujeito legítimo no espaço público ou acadêmico. A crítica estimula o debate, enquanto o cancelamento o encerra; a crítica busca transformar, enquanto o cancelamento visa punir. Distinguir esses dois gestos é crucial para preservar a responsabilidade ética nas disputas contemporâneas de sentidos.

É nesse ponto que cabe afirmar: autores e obras não podem ser apagados, ainda que devam ser atravessados pela crítica legítima, que reconhece a densidade histórica e política de uma referência, situando-a em seus limites e contradições. Questionar uma referência é parte do movimento de construção do pensamento; eliminá-la é recusar o próprio solo sobre o qual se ergue o debate. O gesto crítico, quando autêntico, não fecha caminhos, mas os multiplica — não elimina vozes, mas tensiona seus sentidos, abrindo horizontes mais amplos de compreensão e disputa.

Defendemos a urgência de construir mecanismos que enfrentem as múltiplas violências engendradas pelas articulações de classe, gênero e raça que, no espaço acadêmico, não aparecem como fatos isolados, mas como expressões articuladas de uma estrutura que, há séculos, nega legitimidade a determinados corpos, saberes e territórios. 

Compreendemos, neste sentido, os limites do direito moderno que, criado sob uma lógica ocidental, capitalista, patriarcal e colonial, muitas vezes segue reproduzindo privilégios. Apesar disso, não podemos prescindir do uso contra-hegemônico dos meios legais disponíveis. Uso este que, ao longo das últimas décadas, resultou em inúmeras conquistas coletivas.

As mídias, as plataformas digitais e as redes sociais não podem servir como alternativa ao aparato jurídico existente, por mais limitado que ele seja.  Superar os seus limites exige ações institucionais, pedagógicas e coletivas que reconheçam a pluralidade de vozes, experiências e existências. Assim, podemos seguir caminhando em direção a uma justiça verdadeiramente emancipatória, que enfrente as raízes das violências e promova mudanças duradouras.

É, portanto, urgente impor limites ao avanço das práticas canceladoras - contrárias à legislação, antiéticas e anti metodológicas - no ambiente acadêmico (e fora dele). A cultura do cancelamento atropela os direitos humanos, além de corroer a metodologia científica e a liberdade de cátedra. Não obstante, ela fragiliza a produção de conhecimento e os afetos, e afasta a academia de ser um espaço de diálogo, debate e formação crítica e sensível, comprometido com a transformação social. Seguimos na luta por igualdade e justiça para todas as pessoas, em particular para as mulheres, e também na defesa dos espaços que respeitem a pluralidade, a presunção de inocência e a complexidade dos vínculos humanos.

Assinam a nota:

  • Adriana Bebiano, docente e pesquisadora (Universidade de Coimbra - UC) [i]
  • Allene Carvalho Lage, docente e pesquisadora (UFPB)[ii]
  • Ana Cristina Joaquim, pós-doutora (UNICAMP) e pós-doutoranda (Universidade do Porto) [iii]
  • Bruna Muriel, docente e pesquisadora (UFABC)[iv]
  • Cláudia Cristina Ferreira Carvalho, docente e pesquisadora (UFGD)[v]
  • Cláudia Maisa Antunes Lins, docente e pesquisadora (UNEB)[vi]
  • Claudia Rose Ribeiro da Silva, mestre (FGV) e gestora cultural do Museu da Maré[vii]
  • Daniele Silva Gonzalez, mestra (UNB) e advogada[viii]
  • Denilza da Silva Frade, doutoranda (CES- UC) [ix]
  • Elziane Menezes Flores, doutoranda (Colégio das Artes-UC) [x]
  • Fátima Cristina da Silva, doutoranda (CES-UC) [xi]
  • Flora Strozenberg, docente, pesquisadora associada aposentada e consultora jurídica (UNIRIO)[xii]
  • Inês Barbosa de Oliveira, docente e pesquisadora associada aposentada (UERJ)[xiii]
  • Inesita Soares de Araújo, docente e pesquisadora sênior (FIOCRUZ)[xiv]
  • Maria Tertuliana Brasil, doutoranda (FPCEUC-UC) [xv]
  • Maria do Socorro da Silva Arantes, docente e pesquisadora (UFPI)[xvi]
  • Maria de Lourdes Paz dos Santos Soares, doutoranda (FPCEUC-UC) [xvii]
  • Marina Andrea von Harbach Ferenczy, doutora (USP e Università di Ferrara) [xviii]
  • Mary N. Layoun, professora emérita e pesquisadora (University of Wisconsin, Madison) [xix]
  • Marina Pereira de Almeida Mello, docente e pesquisadora (UNIFESP)[xx]
  • Suzeley Jorge, doutoranda Faculdade de Letras (UC), professora (UFSC)[xxi]
  • Vivian Urquidi, docente e pesquisadora (USP)[xxii]
  • Vania de Vasconcelos Gico, Docente Pesquisadora, docente e pesquisadora (UFRN)[xxiii]

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