Especialistas criticam ameaça da Casa Branca ao Brasil e apontam incoerência
Para analistas, declaração da porta-voz Karoline Leavitt sobre uso da força militar contra o Brasil é inconsistente e sem fundamento estratégico
247 - Especialistas em relações internacionais e política têm se manifestado de forma contundente sobre a declaração da porta-voz da Casa Branca, Karoline Leavitt, feita na terça-feira (9), onde ela afirmou que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, impôs tarifas e sanções ao Brasil e não descarta usar força militar com a justificativa de proteger a liberdade de expressão. A fala foi emitida no contexto do julgamento de Jair Bolsonaro (PL) no Supremo Tribunal Federal (STF). Para os analistas, as palavras da representante do governo norte-americano foram precipitadas e não refletem uma estratégia clara.
Carlos Poggio, professor de relações internacionais da PUC-SP e especialista em política dos EUA ouvido pela Folha de S. Paulo, considerou a declaração como "impetuosa" e desprovida de fundamento. Em sua análise, ele afirmou que a ameaça não deveria ser levada a sério. "É a administração que usa palavras sem o menor nível de cuidado", destacou Poggio, que também lembrou que Trump faz constantes ameaças que, em grande parte, não são cumpridas. O especialista citou como exemplo as promessas do presidente em relação à Rússia, que segue realizando bombardeios, apesar das ameaças de consequências dos Estados Unidos. "A Rússia continua bombardeando. É um governo que não tem credibilidade naquilo que concebe as palavras", completou.
Para Poggio, a declaração de Leavitt foi feita de forma espontânea e desleixada, sem uma análise precisa das relações entre Brasil e Estados Unidos. "Não me parece que ela entenda a diferença entre Brasil e Venezuela", afirmou, concluindo que a fala da Casa Branca é apenas mais uma "declaração vazia" vinda do governo Trump. O professor ainda enfatizou que não há uma estratégia por trás da declaração e sugeriu que o governo brasileiro deveria ignorá-la. "Se todo mundo for responder a cada maluquice que sai da Casa Branca, todo mundo entra na maluquice", afirmou.
O Itamaraty, por sua vez, emitiu uma nota oficial na noite de terça-feira (9), repudiando a utilização de sanções econômicas ou ameaças militares contra a democracia brasileira. A nota reafirma que os Poderes do Brasil não se deixarão intimidar por tais ataques à soberania nacional.
Camila Rocha, doutora em Ciência Política pela USP e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), alertou que é preciso cautela diante da declaração. "Nada é falado à toa. O Brasil é um país que tem uma série de recursos estratégicos, que podem sim vir a ser alvo de disputa", pontuou. Rocha também destacou que a retórica sobre liberdade de expressão pode ser uma forma de justificar interesses econômicos e políticos dos Estados Unidos em relação ao Brasil. "A luta pela liberdade de expressão a favor do Bolsonaro não deixa de ser uma espécie de retórica para, na verdade, alavancar interesses outros que os Estados Unidos possa ter em relação ao Brasil", explicou.
O advogado Pierpaolo Cruz Bottini, professor da Faculdade de Direito da USP, também criticou a ameaça de uso de poder militar, afirmando que é "inexplicável" vir de um país que se considera democrático e defensor da separação dos Poderes. "O Brasil não tem qualquer possibilidade jurídica de ceder a tais pressões", afirmou Bottini, ressaltando que a solução para o impasse deve ser diplomática. Gabriel Sampaio, diretor da ONG Conectas, reforçou a gravidade da declaração, considerando-a uma tentativa de atacar a independência do Poder Judiciário e a soberania do Brasil. A fala também revela que, para além da tentativa de obstrução da justiça, "há continuidade delitiva de cunho golpista e com a colaboração de país estrangeiro para prática do crime de atentado à soberania", pontuou Sampaio.
Já Paulo José Lara, co-diretor-executivo da ONG Artigo 19, considerou a ameaça mais um passo nas ações autoritárias da administração Trump, com o intuito de desestabilizar o multilateralismo e perturbar a ordem internacional. "É particularmente preocupante, pois mostra um ataque à nossa região, que vem sendo assediada de maneira crescente", disse Lara. O especialista também questionou a legitimidade da justificativa dos EUA sobre a liberdade de expressão no Brasil. "Ideias fundamentais como liberdade, democracia e liberdade de expressão aparecem, novamente, como um véu para cobrir o interesse político, econômico e ideológico desta administração", afirmou, lembrando que o governo dos Estados Unidos tem sido criticado por violações à liberdade acadêmica e ao direito de manifestação dentro de seu próprio território.


