Como o ataque de Israel em Doha levou Trump a forçar Netanyahu em busca de paz em Gaza
Bombardeio contra negociadores do Hamas no Catar mudou a correlação de forças e abriu espaço para pressão inédita dos EUA sobre Israel
247 - O ataque aéreo israelense de 9 de setembro contra um bairro residencial em Doha, no Catar, provocou uma reviravolta nas negociações para encerrar a guerra em Gaza. O bombardeio, que mirava líderes do Hamas reunidos para discutir um cessar-fogo, não atingiu seus principais alvos, mas matou civis, entre eles o filho de Khalil al-Hayya, chefe das negociações do grupo palestino.
O episódio, revelado pelo The New York Times, teve impacto imediato sobre os esforços diplomáticos, enfurecendo mediadores regionais e levando o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a pressionar o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, a aceitar um plano de paz.
Até então, Trump vinha dando ampla liberdade a Israel em sua ofensiva contra o Hamas, mesmo diante do crescente isolamento internacional causado pelo alto número de vítimas civis palestinas. Mas a ação em Doha, que atingiu o país mediador mais ativo no conflito, alterou o cálculo político em Washington. Vinte dias depois, Trump e Netanyahu surgiram lado a lado na Casa Branca para apresentar uma proposta que prevê libertação de reféns israelenses, retirada gradual de tropas de Gaza e garantias de permanência da população palestina no território.
A mudança provocada pelo bombardeio
O ataque a Doha pegou de surpresa até mesmo aliados de Israel. Jared Kushner, genro de Trump e ex-negociador no Oriente Médio, havia acabado de se reunir com assessores israelenses e catarianos quando foi informado, já após a ofensiva, da ação militar.
Para o governo do Catar, a reação foi de choque. O primeiro-ministro Mohammed bin Abdulrahman al-Thani acusou Israel de “sabotar toda tentativa de criar oportunidades para a paz” e suspendeu temporariamente o papel de seu país como mediador. A indignação entre líderes árabes, somada à fúria de autoridades em Washington, acabou criando uma oportunidade diplomática: com Israel mais isolado, os EUA puderam exigir concessões que antes eram rejeitadas por Netanyahu.
A pressão de Trump e os limites do acordo
Trump passou a adotar uma postura de ultimato em relação ao Hamas. “Se este ACORDO FINAL não for alcançado, todo o INFERNO, como nunca visto antes, cairá sobre o Hamas”, declarou em suas redes sociais. A mensagem tinha dupla função: pressionava o grupo palestino a ceder e mostrava a líderes árabes que Washington estava disposto a sustentar militarmente Israel caso o plano fracassasse.
Ainda assim, fissuras surgiram entre países árabes e muçulmanos. No Paquistão, o primeiro-ministro Shehbaz Sharif elogiou a proposta, mas o chanceler Ishaq Dar foi categórico: “Este não é o nosso documento. Há áreas-chave que precisam ser cobertas”. A divisão expôs as dificuldades de formar um consenso regional em torno de um cessar-fogo abrangente.
Netanyahu entre recuos e exigências
As reuniões em Nova York mostraram a resistência de Netanyahu. O premiê buscou remover referências a um Estado palestino e reduzir a profundidade da retirada israelense de Gaza. Porém, com Trump insistindo pessoalmente em ajustes, acabou cedendo o suficiente para permitir o anúncio conjunto na Casa Branca em 29 de setembro.
Antes da cerimônia, Netanyahu foi obrigado a dar um gesto político incomum: ligar ao premiê do Catar e pedir desculpas pelo ataque de setembro, leitura que fez com um tom constrangido, segundo relatos. O gesto foi considerado condição indispensável para manter Doha no jogo diplomático.
Diplomacia em terreno instável
O plano de paz, mesmo com adesões parciais, representa um avanço em relação ao impasse que marcou quase dois anos de guerra. Para analistas, como Ned Lazarus, da Universidade George Washington, “unificar nações árabes e muçulmanas em torno de um plano também apoiado por Israel talvez seja o maior êxito diplomático da administração Trump”.
O desfecho, contudo, permanece incerto. Netanyahu conseguiu introduzir ambiguidades que mantêm espaço para manobras militares israelenses, enquanto o Hamas ainda não aceitou todas as condições, sobretudo o desarmamento.
O episódio de Doha revelou, no entanto, como uma ação militar arriscada acabou alterando as engrenagens diplomáticas, forçando até aliados resistentes a considerar uma saída negociada para um conflito que já deixou milhares de mortos e ameaça a estabilidade de toda a região.