"Os Estados Unidos estão pleiteando o papel de xerife do mundo", diz Liana Cirne Lins
Soberania e exequatur: Liana Cirne Lins explica por que ordens estrangeiras não podem ser cumpridas automaticamente no Brasil
247 - A jurista Liana Cirne Lins concentrou sua análise no alcance da decisão do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), sobre o cumprimento de decisões e ordens estrangeiras no país. Em entrevista ao programa Bom Dia, da TV 247, ela detalhou a base jurídica que impede a execução automática, no Brasil, de medidas determinadas por cortes de outros países, inclusive no que tange a eventuais sanções financeiras.Segundo Liana, o ponto de partida é a competência da jurisdição brasileira e o requisito do exequatur pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em suas palavras, “decisões judiciais estrangeiras só podem ser cumpridas em território brasileiro se elas receberem o que nós chamamos de exequatur”. Ela explicou que “só quem possui poder jurisdicional no Brasil é a jurisdição brasileira”, em razão do princípio da territorialidade e da soberania, e que, por isso, uma decisão estrangeira “é destituída de jurisdicionalidade brasileira” até ser submetida ao procedimento no STJ.
O caso que motivou a decisão do ministro, relatou Liana, envolveu uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) proposta pelo Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), após municípios buscarem a Justiça do Reino Unido em ações contra mineradoras. Houve decisão liminar britânica para que o Ibram desistisse da ADPF no STF. Liana sintetizou a reação do ministro Dino: “Opa, vocês não podem fazer isso aqui no Brasil, que a decisão de vocês não tem exequatur, vocês não têm o condão de determinar a desistência de uma ação que tramita na Justiça brasileira”.
A jurista apontou que não há litispendência entre jurisdições nacionais e estrangeiras, de modo que ações podem tramitar “concomitantemente”, mas sua execução em território brasileiro depende do exequatur: “Vai ser executada no Reino Unido ou no Brasil? Ah, tem que ser executada no Brasil. Então, depende da concessão do exequatur pelo STJ. Não tem exequatur pelo STJ, então não se cumpre”.
Liana também destacou o alcance prático da medida do ministro Dino ao notificar o sistema financeiro. Conforme descreveu, “nenhuma decisão, ordem executiva ou legislação estrangeira pode ser cumprida no Brasil de modo automático e [as instituições devem] se abster de transferir dinheiro, encerrar contas ou tomar qualquer tipo de atitude punitiva sem a concessão do exequatur pela Justiça brasileira”. Na avaliação da jurista, a orientação atinge bancos, seguradoras e demais instituições do Sistema Financeiro Nacional, e reforça a necessidade de chancela do STJ para dar executividade interna a ordens nascidas fora do país.
Ao tratar da chamada Lei Magnitsky, Liana situou o debate no eixo da extraterritorialidade normativa. Ela afirmou: “Os Estados Unidos estão se comportando como se eles tivessem o poder de emitir leis extraterritoriais”, observando que leis nacionais têm alcance territorial e que “somente pode pleitear a característica da extraterritorialidade a lei internacional”. Por isso, advertiu: “Se o Supremo Tribunal Federal admitir que a lei Magnitsky seja cumprida no Brasil sem o intermédio do STJ, sem a concessão do exequatur, isso significa que a gente não tem soberania nacional. É gravíssimo”.
No plano institucional, Liana sustenta que o STF não recuará: “O Supremo Tribunal Federal não vai recuar em relação a isso. Não vai, porque não é uma questão de Alexandre de Moraes, é uma questão de soberania”. Para o setor bancário, ela reconhece um dilema prático, mas de natureza econômica, não jurídica: “A decisão vai pesar para o lado que mais tiver potencial de causar prejuízos econômicos”, ponderou, acrescentando que, do ponto de vista legal, “o sistema financeiro nacional já foi notificado para que não cumpra ordens executivas ou legislação estrangeira de modo automático [...] e vai punir quem descumprir a decisão do Supremo Tribunal Federal determinada ontem pelo ministro Flávio Dino”.
Na síntese de Liana, o eixo do conflito está na tentativa de impor normas de um país a outro sem mediação da jurisdição local: “Os Estados Unidos estão pleiteando o papel de xerife do mundo”, afirmou. Para ela, admitir execução direta de medidas estrangeiras, sem exequatur, representaria renúncia a um atributo essencial da ordem constitucional brasileira: a soberania jurídica sobre o próprio território.