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Por proteger parlamentares bolsonaristas, PEC da Blindagem tem desvio de função

Especialistas afirmam que a PEC da Blindagem é inconstitucional por ser uma forma distorcida de reagir às condenações do STF a Bolsonaro

Congresso Nacional - 16/09/2024 (Foto: REUTERS/Ueslei Marcelino)

Por Sérgio Rodas, do Conjur - A PEC da Blindagem tem desvio de função, pois visa proteger parlamentares bolsonaristas de ações penais no Supremo Tribunal Federal pela trama golpista. Por isso, se aprovada, deve ser declarada inconstitucional pela corte, de acordo com o entendimento de especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

A Câmara dos Deputados aprovou na quarta-feira (17) a Proposta de Emenda à Constituição 3/2021, apelidada de PEC da Blindagem, que restringe a abertura de processos contra deputados e senadores.

A proposta estabelece que, desde a expedição do diploma, parlamentares não poderão ser processados criminalmente sem prévia licença de sua casa legislativa. Essa votação será secreta, assim como a deliberação sobre a manutenção da prisão de deputado ou senador preso em flagrante por crime inafiançável. Além disso, a proposta concede foro privilegiado, no Supremo, aos presidentes de partidos.

Trata-se de um retorno ao regime anterior à Emenda Constitucional 35/2001. Levantamento do jornal O Globo apontou que, de 1988 a 2001, o Supremo enviou 254 pedidos ao Congresso para investigar parlamentares. Apenas um foi aprovado: o então deputado Jabes Rabelo (PTB-RO) foi acusado de receptação de veículo roubado e teve seu mandato cassado posteriormente por suposto envolvimento com tráfico de drogas.

No Senado, houve uma licença concedida a pedido do próprio parlamentar. O então senador Bernardo Cabral (AM) pediu a continuidade de um processo de calúnia contra ele no STF para provar que o que havia dito era verdade.

Atualmente, a Constituição permite que as casas, após o recebimento da denúncia, suspendam o andamento de ação penal contra deputado ou senador por supostos crimes cometidos depois da diplomação.

Em maio, a Câmara sustou a ação penal da trama golpista contra o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ) quanto aos fatos ocorridos depois de sua diplomação. Ainda assim, o Supremo o condenou, no último dia 11, a 16 anos de prisão por crimes praticados na intentona bolsonarista antes de assumir o cargo. A corte também determinou a perda de seu mandato.

Ações no STF

Na quinta (18), o ministro Dias Toffoli, do STF, deu prazo de dez dias para a Câmara se manifestar sobre a tramitação da PEC da Blindagem.

O despacho do ministro foi proferido em mandado de segurança protocolado pelo deputado federal Kim Kataguiri (União-SP) para suspender a tramitação da PEC. Após receber a manifestação da casa legislativa, Toffoli deve analisar o pedido de suspensão.

Líderes de PT, PSB e PSOL também foram ao Supremo para pedir a suspensão da PEC, e Toffoli também deverá relatar essa ação.

Os partidos questionam a falta de apresentação de emendas dentro do prazo regimental e de publicidade prévia do parecer do relator, além da convocação das sessões de deliberação sem antecedência mínima para votação da proposta.

Depois da aprovação da PEC, a matéria foi enviada à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Porém, senadores já deixaram claro que o texto não deve ser analisado rapidamente pela casa. O presidente da CCJ, Otto Alencar (PSD-BA), afirmou que o projeto não passa “de jeito nenhum” no Senado.

PEC inconstitucional

Especialistas afirmam que a PEC da Blindagem é inconstitucional por ser uma forma distorcida de reagir às condenações do STF ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e a outros políticos envolvidos na trama golpista.

Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, aponta que a PEC tem desvio de finalidade que acarreta duas inconstitucionalidades. A primeira é o desvirtuamento da imunidade parlamentar. A segunda é a interferência nas atividades do Judiciário.

“A finalidade da imunidade é proteger a atividade parlamentar, e não criar uma aristocracia que não possa ser processada por crimes que cometeu. A proposta também fere o princípio da isonomia porque cria um segmento da sociedade com privilégios, e não com direitos.”

De acordo com Serrano, leis que têm destinatários certos — e não indeterminados — podem e devem ter seus motivos analisados. Ele ressalta que a PEC não busca apenas retomar o regime pré-2001 da Constituição, mas proteger integrantes de uma organização criminosa que tentou — e continua tentando — dar um golpe de Estado.

Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá, afirma que a PEC é um retrocesso que tenta apagar a evolução do texto constitucional.

“O tempo é o vetor da racionalidade. Uma coisa que era constitucional pode ser inconstitucional mais tarde. Chama-se mutação constitucional. Em face da conjuntura, com a criminalidade se infiltrando de forma capilarizada nas instituições, não se justifica esse grau de blindagem a quem comete crime. Pior: isso poderá ser estendido aos Parlamentos estaduais.”

“A PEC é tão inconstitucional que o porteiro do STF deveria declarar inconstitucional. Enquanto o cidadão comum é julgado sem qualquer licença anterior, o parlamentar é privilegiado. Além da licença prévia, o voto dos pares é secreto. É uma desfaçatez”, opina Lenio.

Proteção do Legislativo

O criminalista José Roberto Batochio, ex-presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, diz que a PEC é uma medida legítima de autoproteção do Legislativo.

“Para que o Legislativo exerça as suas atribuições, é preciso que tenha um plexo de garantias e direitos que permitam que exerça suas funções livremente. Nisso se insere a imunidade para falar no Parlamento, para fiscalizar os outros poderes e para legislar.”

O advogado destaca que, quando a Constituição de 1988 foi promulgada, foi criada a exigência de aval das casas para processar parlamentares como uma maneira de evitar que eles fossem arbitrariamente perseguidos, como ocorria durante a ditadura militar (1964-1985).

“Assim, a PEC não é nenhuma novidade, até porque a Constituição já permite sobrestar ações contra parlamentares. É conveniente ou inconveniente? Hoje não tem ditadura militar, mas há outras investidas autoritárias contra a liberdade plena do Legislativo. Não podemos olhar para o Legislativo e julgá-lo como um poder menor porque as pessoas que o compõem são menos ilustradas. Isso tudo tem que ser afastado, em face de um dogma que tem que prevalecer: a vontade do povo. E o povo não precisa de tutores.”

Batochio também não vê problemas na determinação de que a votação sobre processo ou prisão de parlamentar seja secreta. “Se a luz do sol é o melhor desinfetante, como dizem, por que o Judiciário tem os juízes sem rosto? Por que no Tribunal do Júri o voto não é aberto? Por que nas eleições o voto é secreto? Não vejo nenhum pecado mortal no voto secreto nesses casos. É algo que visa proteger a democracia.”

Como deputado federal, Batochio redigiu a Emenda Constitucional 35/2001, que alterou a redação do artigo 53 da Constituição para estabelecer que um parlamentar só pode ser preso em flagrante por crime inafiançável.

Na época, o advogado criticou a decisão do Supremo de mandar prender Delcídio do Amaral, discordando do entendimento de que havia situação de flagrante permanente. “Trata-se de um conceito tão abstrato, tão fluido, tão aberto, que bastaria dizer que numa determinada situação operada por duas ou quatro pessoas existe situação de flagrante permanente e perpétua a todos.”

O criminalista ressaltou que o artigo 53, parágrafo 2º, da Constituição deixa claro que não cabe nenhum tipo de prisão processual contra deputados federais e senadores. Dessa forma, esses parlamentares só podem ser detidos em caso de flagrante ou condenação transitada em julgado. Mas o flagrante só cabe se o infrator for apanhado no ato da consumação do delito ou quando o crime realmente for permanente, como o de sequestro, por exemplo, destacou Batochio.

Outra PEC

Em 2024, após buscas serem decretadas contra os deputados federais bolsonaristas Carlos Jordy (PL-RJ) e Alexandre Ramagem, a oposição começou a articular a aprovação de uma PEC que determina que medidas do gênero contra parlamentares somente podem ser cumpridas após aval das mesas diretoras da Câmara ou do Senado. A PEC é de iniciativa do deputado Rodrigo Valadares (União Brasil-SE).

Especialistas ouvidos pela ConJur afirmaram na ocasião que a PEC cria distinções injustificáveis para os congressistas e viola a sistemática do processo penal. Além disso, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que essas medidas não precisam de autorização das casas legislativas.

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