Uma entrevista exclusiva com o criminalista Luiz Fernando Pacheco, cuja morte abalou a advocacia
Pacheco foi muito mais do que o advogado que peitou, na tribuna do Supremo Tribunal Federal, o então temido ministro Joaquim Barbosa
Morreu o advogado Luiz Fernando Pacheco, criminalista corajoso, ex-presidente da Comissão de Prerrogativas da OAB SP e um dos fundadores do grupo Prerrô. Sua morte, em circunstâncias a serem esclarecidas, deixa uma lacuna na advocacia e no Direito brasileiros.
Este jornalista teve a honra de privar de sua amizade e de contar com seus conhecimentos em inúmeros artigos e matérias. Nossa relação jornalista-fonte começou em setembro de 2023, quando ele nos concedeu a entrevista reproduzida abaixo. Na época, o conteúdo não foi publicado no formato “pergunta e resposta”, como trazemos aqui, mas embasou reportagem mais ampla, publicada numa revista dirigida a advogados.
Pacheco foi muito mais do que o advogado que peitou, na tribuna do Supremo Tribunal Federal, o então temido ministro Joaquim Barbosa, relator do “mensalão”.
A seguir, um pouco do destemor de Luiz Fernando Pacheco.
Paulo Henrique Arantes - A população e autoridades compreendem o que são as prerrogativas dos advogados?
Luiz Fernando Pacheco - As prerrogativas são instrumentos para que o advogado possa bem exercer o mandato que lhe foi outorgado por um cidadão. Ao fim e ao cabo, as prerrogativas são direitos da cidadania no Estado Democrático. Por exemplo, a prerrogativa de ter acesso aos autos de um inquérito. Quando eu exerço essa prerrogativa, eu estou trabalhando, eu estou lendo os autos, tirando cópia dos autos, porque eu tenho um trabalho a fazer em prol de um cidadão que me contratou. Não é privilégio nenhum. Há de fato um grande desconhecimento.
PHA – E os advogados sabem defender suas prerrogativas?
LFP - O Estatuto da OAB e da Advocacia deixa muito claro, é texto de lei: não há hierarquia entre juiz, promotor e advogado. Eu fico até abismado que a gente tenha que ter dentro de um texto de lei algo tão óbvio. Dentro de um Estado de Direito, as pessoas exercem suas funções. Essas pessoas fizeram a mesma faculdade, são formadas em Direito. Espera-se que todos sejam igualmente capacitados, e todos são indispensáveis à administração da justiça. Todo esse arcabouço legal vem como um desejo do constituinte, o legislador originário, de que a gente deixe de ter essa cultura e essa falsa reverência. Desde 1889, o Brasil não é mais Corte, mas uma República, então temos de nos tratar de maneira republicana.
PHA – Como foi seu entrevero com o ministro Joaquin Barbosa, no STF, quando você defendia José Genuíno no “mensalão”?
LFP - Joaquim Barbosa foi uma tempestade que passou. Na história centenária do STF, eu fui o único advogado expulso da tribuna daquela casa, por conta do abuso de autoridade do então presidente Joaquim Barbosa. Eu tive a minha prerrogativa, que está escrita em lei, de pedir a palavra pela ordem... o ministro Joaquim, que era presidente da Corte e relator do caso, quis cortar minha palavra, eu não admiti que a cortassem enquanto eu não concluísse o meu pensamento. Ele cortou meu microfone, eu continuei falando sem microfone, ele mandou a segurança me retirar do tribunal. Me retiraram. Eu estava exercendo o direito de defesa do meu constituinte, me utilizando das prerrogativas profissionais escritas em lei perante a casa maior da Justiça brasileira. Somente sob a presidência de uma pessoa absolutamente autoritária e desequilibrada uma situação como essa poderia acontecer.
PHA – A mídia parece confundir o advogado com o cliente, não?
LFP - Quanto mais o cidadão desconhece os seus próprios direitos, mais ele confunde a pessoa do advogado com a do réu. Nós, advogados, remos que ter o couro duro porque apanhamos junto. Essas exposições feitas por parte de certos promotores, certos magistrados, nos obrigam a participar desse jogo, porque a gente não pode deixar que a mídia seja ocupada só com a palavra de um lado do caso. Muitas vezes acabamos tendo que fazer a defesa do nosso constituinte não só nos autos, mas perante a mídia e a população. Existe uma mídia séria e existe uma mídia absolutamente pirotécnica. Não só em casos de grande repercussão, mas nesses programas de fim de tarde da televisão, que só deseducam a população e geram o ódio. O âncora desse tipo de programa se sente no direito de fazer o papel de investigador, promotor, juiz e executor da pena, que ele aplica ali na hora. Destrói a vida de um cidadão muitas vezes honesto, trabalhador, ter sua cara exposta num programa de televisão.
PHA – Cite um caso emblemático disso, por favor.
LFP - Fala-se muito do caso Escola Base, que foi um erro gestado fortemente pela mídia. É um caso emblemático, certamente, que deve ser lembrado, mas outros casos do mesmo nível acontecem todo dia. A polícia acerta, mas erra também.
PHA – Como você avalia o comportamento da polícia, em geral, especialmente em operações nas periferias?
LFP - A quantas chacinas nós ainda vamos assistir, é a pergunta que eu faço. A polícia entra... claro, sempre na favela, sempre contra o preto, o pobre e o periférico. Entra nas favelas, entra nas comunidades matando a torto e a direito, com os aplausos, infelizmente, do governador. O pior é que uma grande parcela da população, por desconhecer o assunto, aplaude. Acontece que amanhã a polícia pode entrar na minha casa, na sua casa, chutando a porta e metendo tiro - provavelmente, não farão isso na minha casa, porque eu sou um homem de 50 anos, branco e advogado, mas se eu eu estivesse numa situação de pessoa mais exposta à sanha punitiva, vingativa da polícia, eu estaria com medo. O extermínio a bel prazer da população pela polícia... morre um hoje, o tráfico vai cooptar outro amanhã, principalmente numa comunidade em que as crianças não têm acesso à escola, à saúde, à moradia. O verdadeiro traficante, aquele que banca o tráfico está muito longe da favela - ele mora nos Jardins.
PHA - É possível advogar para um chefe do crime organizado sem se envolver com o crime?
LFP - O advogado precisa ter uma postura muito séria e muito ética. Ele deve exercer no limite máximo, dentro da legalidade, suas funções e a defesa do seu cliente. Mas suas funções são muito bem delimitadas: nós somos a voz técnica e legal do cidadão que está sendo investigado, e ponto final. O advogado deve se resguardar e deve trabalhar objetivamente nos autos, defendendo os direitos do seu cliente. Claro que, como em todas as profissões, na nossa também há maus profissionais. Esses não são verdadeiros advogados. A advocacia não é uma profissão para covardes , disse Sobral Pinto. Essa frase tem sido muito repetida, e isso é bom, porque desperta no advogado a importância de exercer a profissão com independência. Eu acho que o grande ponto desta nossa conversa é a educação da advocacia, dos operadores do Direito em geral e da própria sociedade quanto à figura do advogado, qual é o seu papel e quais são as garantias que o advogado tem para bem exercer esse seu papel.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.