Trump e a Cruzada contra o Mais Médicos
Por trás da retórica “humanitária” dos EUA contra o Mais Médicos, o que se esconde é uma tentativa de deslegitimar a cooperação médica cubana no mundo
Donald Trump, em sua nova temporada de ataques ao Sul Global, escolheu um alvo que diz muito sobre a visão de mundo que defende: o Mais Médicos. O programa foi criado em 2013, durante o governo da presidente Dilma Rousseff, para suprir a falta crônica de médicos em regiões remotas e de difícil acesso do Brasil. Garantindo atendimento básico via Sistema Único de Saúde (SUS), contou com milhares de profissionais cubanos que fizeram aquilo que a medicina privada nunca se interessou em fazer — atender populações invisíveis para o mercado
Entre 2013 e 2018, os médicos cubanos foram a maioria dos profissionais do Mais Médicos. Em 2015, por exemplo, eles representavam 60% dos 18,1 mil médicos atuantes (cerca de 11 mil profissionais). Atuaram principalmente em municípios com alto índice de vulnerabilidade, zonas rurais, periferias urbanas e Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) .
Em 2018, Cuba retirou seus médicos do Brasil após o governo de Jair Messias Bolsonaro exigir a revalidação de diplomas (Revalida) e o pagamento integral direto aos profissionais rompendo com a natureza do programa que além de um trabalho humanitário é um produto de exportação de Cuba.
Em 2023, o programa foi reestruturado como Mais Médicos para o Brasil, priorizando profissionais brasileiros (93% das vagas em 2025).
Na prática, o programa de missões médicas cubanas é uma das mais bem-sucedidas exportações de Cuba — não de açúcar, níquel ou tabaco, mas de conhecimento, serviço e saúde pública. Desde 1963, médicos da ilha já estiveram em mais de 150 países, levando atendimento onde a presença de um profissional local era improvável ou economicamente inviável.
Em março de 2025, estimou-se que Cuba possui cerca de 24.180 médicos trabalhando em 56 países, com muitos deles nos países do Caribe e da América Latina, onde suprimem falhas graves na saúde pública local.
Em contextos de crise, essa rede de cooperação mostrou sua força: após o terremoto no Haiti em 2010, Cuba foi o primeiro país a enviar equipes médicas; durante o surto de ebola na África Ocidental em 2014, mais de 250 profissionais cubanos atuaram na linha de frente; na pandemia de Covid-19, brigadas da Henry Reeve International Medical Contingent — formada especialmente para emergências — foram enviadas a 40 países. Tudo isso enquanto a ilha seguia sob embargo econômico dos Estados Unidos (EUA), que desde 1962 tenta asfixiar sua economia e seu sistema de saúde.
Para Trump, essa missão humanitária não passa de “trabalho forçado” e “fraude diplomática”. É a repetição de uma velha narrativa que a máquina de propaganda de Washington repete há mais de 60 anos: qualquer ação cubana no exterior não pode ser vista como solidariedade, mas como manipulação política. O ataque desta vez veio com sanções contra ex-dirigentes do Ministério da Saúde do Brasil, acusados de “facilitar” um esquema de exploração.
A ideia de que esses médicos são explorados ignora o contexto. Parte de sua remuneração é enviada diretamente ao governo cubano, sim, mas isso sustenta um sistema de saúde gratuito para 11 milhões de pessoas na ilha, que mantém indicadores de saúde comparáveis ou melhores que os de países ricos: mortalidade infantil de 4,0 por mil nascidos vivos (inferior à dos EUA), cobertura vacinal superior a 95% e expectativa de vida de 78 anos. A lógica é simples e transparente: o Estado forma, mantém e envia esses profissionais, e o retorno financeiro é coletivo, não individual.
É importante lembrar que a formação médica em Cuba é pública e integralmente financiada pelo Estado. Não só para cubanos, mas também para milhares de estrangeiros que estudam gratuitamente na Escola Latino-Americana de Medicina (ELAM), em Havana. Muitos dos médicos brasileiros que atuaram no Mais Médicos se formaram nessa escola, retornando ao país com compromisso social enraizado. Nesse modelo, a medicina não é vista como negócio, mas como função social, e o serviço prestado no exterior é parte de um pacto solidário global.
No Brasil, o impacto do Mais Médicos foi concreto e mensurável. Criado em 2013, durante o período de maior cobertura (até 2017) atendeu mais de 63 milhões de pessoas em áreas onde havia carência crônica de médicos, abrangendo cerca de 81% do território nacional - Amazônia Legal, sertão nordestino, periferias urbanas. Em muitas cidades, era a primeira vez que a população tinha um médico fixo no posto de saúde. Estudos do IPEA mostraram que o programa reduziu internações por condições sensíveis à atenção primária e ampliou a cobertura vacinal. Sua presença foi crucial em milhares de municípios de alta vulnerabilidade, onde resolviam até 80% dos problemas de saúde primária. Não há estatísticas oficiais específicas sobre o número exato de pacientes atendidos exclusivamente por cubanos, pois os dados são consolidados pelo programa
Como os cubanos compunham a maioria dos profissionais, é plausível inferir que tenham atendido dezenas de milhões de cidadãos brasileiros. Pesquisas de opinião indicaram aprovação superior a 80% entre os usuários do SUS que tiveram contato com médicos cubanos.
Por trás da retórica “humanitária” dos EUA contra o Mais Médicos, o que se esconde é uma tentativa de deslegitimar a cooperação médica cubana no mundo, seja no Brasil, na África ou no Caribe. Trata-se de sufocar uma política que, ao mesmo tempo, salva vidas e demonstra que é possível organizar saúde pública fora da lógica do lucro. São milhões de brasileiros que tiveram, pela primeira vez, um médico fixo em suas comunidades.
O Mais Médicos foi, e continua sendo, um choque de realidade para aqueles que acreditam que a saúde só funciona se estiver subordinada ao mercado.
O ódio que destila de Trump é porque Cuba demonstra que, mesmo sob bloqueio, um país pequeno pode oferecer ao mundo um bem mais valioso do que qualquer commodity, o direito à saúde. Washington pode tentar sabotar o Mais Médicos, mas não pode apagar a memória de quem viu a diferença entre o abandono e o cuidado.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.