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Maria Luiza Falcão Silva

PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England.

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De Yalta a hoje: O fantasma da diplomacia das grandes potências

O Sul Global corre o risco de repetir o erro histórico de 1945: não ter voz à mesa.

Trump diz estar ansioso por segundo encontro com Putin (Foto: REUTERS/Jorge Silva)

Fevereiro de 1945. Em Yalta, uma sala decorada com pesados cortinados e mapas espalhados sobre a mesa reunia Franklin Roosevelt, Winston Churchill e Joseph Stalin. Oficialmente, discutiam como encerrar a Segunda Guerra Mundial e como construir um mundo mais seguro. Na prática, dividiam o planeta em zonas de influência, como quem traça fronteiras invisíveis sobre um mapa em disputa. Alemanha e Berlim seriam repartidas, a Polônia teria seu destino redesenhado e o Leste Europeu ficaria sob a órbita soviética. O discurso era de paz e reconstrução; o resultado foi o embrião da Guerra Fria, um mundo polarizado e marcado por disputas estratégicas.

Não foi apenas a geografia do poder que saiu redesenhada em Yalta. Ali se selou a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), cujas bases já haviam sido traçadas meses antes em Dumbarton Oaks, mas que ganhou forma definitiva no acordo entre Roosevelt, Churchill e Stalin, incluindo o privilégio do veto às grandes potências no Conselho de Segurança. No pano de fundo, outra engrenagem já havia sido posta em movimento: a arquitetura econômica de Bretton Woods, erguida em 1944, que deu ao dólar o papel central e criou o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.

 Yalta e Bretton Woods formaram, juntas, o arcabouço político e econômico que governaria o mundo nas décadas seguintes — uma lembrança de que encontros entre líderes moldam não só fronteiras, mas também as regras do jogo global.

O eco de Yalta ressoa novamente quando olhamos para o possível encontro entre Vladimir Putin e Donald Trump. Setenta e nove anos depois, o cenário é outro — não há guerra mundial em curso, embora haja múltiplos conflitos regionais de proporções inimagináveis em um mundo civilizado (o massacre em Gaza promovido pelo por Israel sob liderança do genocida Netanyahu), tensões nucleares e uma disputa econômica que fragmenta cadeias de comércio e tecnologia. Tal como em 1945, o risco não está apenas no que se declara publicamente, mas no que se negocia nas entrelinhas: acordos tácitos sobre quem manda onde, concessões territoriais, barganhas energéticas e promessas de não-interferência que redefinem o equilíbrio de poder.

Há, porém, um deslocamento incômodo: a Europa, que financia e arma Kiev e que arcou com os maiores custos energéticos e inflacionários do conflito, assiste da plateia. Em 1945, o destino de países europeus foi traçado sem a presença de muitos dos diretamente afetados; agora, um acerto bilateral entre Washington e Moscou — à revelia da União Europeia e da própria Ucrânia — esvaziaria a capacidade europeia de definir a sua arquitetura de segurança. Se um “Yalta 2.0” nascer sem a Europa na mesa, o continente corre o risco de pagar a conta sem escrever as cláusulas do contrato.

Se Yalta dividiu a Europa, um “Yalta 2.0” pode redesenhar influências no Leste Europeu, Ásia Central, Ártico e até na América Latina. Não é impossível imaginar que, em nome de reduzir tensões militares, um acordo entre Washington e Moscou possa implicar em áreas “livres” para a atuação de cada lado, inclusive na política energética e nos recursos naturais. Aqui o Brasil entra como peça potencialmente vulnerável. A Amazônia, com sua riqueza mineral e seu papel climático, poderia ser alvo de pressões veladas — seja para abrir espaço a investimentos estratégicos de uma potência, seja para restringir a presença da outra.

O Sul Global corre o risco de repetir o erro histórico de 1945: não ter voz à mesa. Yalta não contou com países latino-americanos, africanos ou asiáticos fora do círculo das grandes potências. Hoje, apesar da retórica da multipolaridade, um acordo fechado entre EUA e Rússia à revelia de China, Índia e Brasil poderia significar um retrocesso. E isso num momento em que o Brasil, sob a liderança de Lula, tem defendido ativamente um sistema internacional mais equilibrado, a cooperação climática e a ampliação do papel dos BRICS como fórum estratégico.

A diferença é que o mundo de 2025 já não é o de 1945. Há blocos econômicos como BRICS e G20, há interdependência tecnológica e cadeias produtivas complexas. Um pacto bilateral que ignore essa realidade seria não apenas anacrônico, mas potencialmente desestabilizador.

Em Yalta, a narrativa era de união contra um inimigo comum. No encontro Putin–Trump, o inimigo será difuso, mas o jogo de bastidores será o mesmo: quem controla recursos, quem estabelece rotas comerciais, quem anexa territórios, quem dita padrões tecnológicos. Para o Brasil, o recado é claro: não basta esperar convites para as grandes mesas. É preciso ocupar o espaço, reforçar alianças regionais e globais, e lembrar que a soberania se defende também nas negociações que não estampam as manchetes.

Yalta ensinou que o mapa do mundo pode mudar em silêncio, enquanto se sorri para as câmeras. Que não se repita a lição sem que estejamos preparados.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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