China entre consumo e cautela
China tem buscado reduzir sua dependência de exportações e investimentos em infraestrutura e apostando em estímulos à demanda interna
Desde o final dos anos 2000, principalmente após a crise financeira global de 2008, a China tem buscado recalibrar seu modelo de crescimento, reduzindo sua dependência de exportações e investimentos em infraestrutura (o famoso "modelo exportador") e apostando em estímulos à demanda interna, urbanização e inovação tecnológica.
O paradoxo chinês
Durante décadas, o mundo acostumou-se a enxergar a China como uma locomotiva impulsionada por exportações e grandes obras. Mas nos últimos anos, Pequim começou a girar o volante da história econômica rumo a outro modelo: o crescimento puxado pelo consumo interno. Os resultados, ao menos no papel, impressionam. De 2021 a 2024, o consumo respondeu por 86,4% da expansão média do Produto Interno Bruto (PIB), um recorde histórico, segundo dados oficiais. No entanto, por trás dos números grandiosos, surgem fissuras que indicam que esse motor, embora potente, pode começar a falhar. Especialistas alertam: desequilíbrios estruturais e endividamento das famílias podem minar essa trajetória.
A China vive um paradoxo. Apesar dos incentivos maciços – como as 48 medidas pró-consumo lançadas em 2025 – as famílias continuam reticentes em gastar. A explicação vai além da economia e penetra em traços culturais e estruturais: trata-se de um país com longa tradição de poupança, agora agravada pelas incertezas pós-pandemia, lacunas na seguridade social e, sobretudo, a crise imobiliária que corroeu a confiança da classe média. Entre 2021 e 2024, a poupança das famílias chinesas cresceu 50%, impulsionada pelo medo e pela perda de valor dos ativos, sobretudo imóveis.
O setor imobiliário é o coração desse impasse. Responsável por 27% dos calotes corporativos em 2021, tornou-se um símbolo da bolha de crédito que Pequim tenta controlar enquanto injeta novos estímulos. O número de empréstimos inadimplentes entre famílias quase dobrou, levantando preocupações sobre uma possível crise de dívida privada, especialmente entre os jovens, cada vez mais endividados, desempregados e com renda estagnada.
Li Yuan, jornalista do The New York Times, apontou em artigo publicado em 06/08, que o governo chinês não apenas quer que os cidadãos gastem mais, como deseja que se endividem mais — numa tentativa quase desesperada de salvar a economia de uma crise prolongada. Bancos foram instruídos a ampliar o crédito ao consumidor, políticas de "troca de bens antigos por novos" movimentaram o equivalente a R$ 1,3 trilhão em 2024, e subsídios temporários, como os ¥300 bilhões liberados neste ano, garantiram algum fôlego. Mas nada disso tem sido suficiente para reverter a estagnação do consumo, que permanece em torno de 40% do PIB – muito abaixo da média global de 54% e distante da meta chinesa de 50% até 2035.
Há quem veja nessa estagnação uma crise estrutural, e não apenas conjuntural. Li Wei, economista do Conselho de Estado, resumiu o sentimento com uma frase seca: “Falta fôlego no gasto”.
A desigualdade entre o campo e a cidade permanece abissal; a renda per capita rural ainda é metade da urbana. Municípios e estatais escondem dívidas em balanços paralelos, inflando bolhas setoriais com crédito barato e opaco.
O caminho das reformas
Diante desse quadro, o Partido Comunista Chinês prepara uma nova cartada: o 15º Plano Quinquenal (2026-2030), ainda em discussão, que promete atacar os gargalos de frente. Entre as prioridades, está a flexibilização do sistema de registro residencial (hukou). O "hukou" na China é um sistema de registro doméstico que funciona como uma espécie de passaporte interno, determinando o acesso a serviços públicos e benefícios sociais com base na localização de registro. Este sistema, apesar de reformado ao longo do tempo, ainda gera desigualdades entre residentes urbanos e rurais. Calcula-se que exclui 290 milhões de migrantes do acesso a serviços básicos.
Outro eixo é a previdência rural, que poderá receber aportes de ativos estatais. E por fim, o foco em novos motores de crescimento, como a chamada “economia prateada” – voltada para a população idosa e setores verdes, com forte apelo internacional.
A transição chinesa não está falida, mas enfrenta seu maior teste de estresse. O dilema é claro: continuar apostando no crédito e em estímulos paliativos ou enfrentar de vez os desequilíbrios estruturais. Como adverte Chen Long, da consultoria Plenum, “a China precisa escolher: corrigir os desequilíbrios ou adiar o inevitável”.
Se as reformas distributivas avançarem, o consumo pode sustentar a transição para um crescimento de qualidade. Caso contrário, o endividamento das famílias e as bolhas podem cobrar seu preço.
O mundo, cada vez mais impactado pela dinâmica chinesa, observa com atenção se a segunda maior economia do planeta fará essa virada com consistência ou se sucumbirá às próprias contradições.
Há mais um agravante: as medidas tarifárias impostas à China pelo governo de Donald Trump piora o quadro e o esforço que a economia chinesa terá que fazer.
Em 2024, os EUA importaram US$ 438,7 bilhões em bens da China, uma fatia importante dos quais são manufaturados. Em períodos mais recentes, os embarques mensais giraram em torno de US$ 28,8 bilhões (dados de maio de 2025), indicando um patamar anual potencial de US$ 340–360 bilhões segundo o The Observatory of Economic Complexity. Mesmo sem um número exato de manufaturados isolado, sabe-se que esse segmento domina o comércio bilateral EUA–China. As tarifas implicam em mais produtos a serem absorvidos pelo mercado interno ou dirigido a outros mercados.
Paralelos entre Brasil e China
Olhando para trás, o Brasil nos governos petistas também apostou no crescimento pela demanda interna, com aumento do salário mínimo, expansão do crédito e programas de transferência de renda. Mas, ao contrário da China, não possuía uma base industrial sólida, nem um sistema de planejamento centralizado capaz de coordenar as transformações produtivas. A experiência brasileira mostrou como o crescimento pelo consumo pode se tornar insustentável sem um reforço correspondente do lado da oferta.
Embora haja paralelos entre China e Brasil em termos de foco na demanda interna; a escala, a base produtiva, as inovações tecnológicas, a institucionalidade e a articulação entre setores são completamente diferentes. A China com sua tradição de planejamentos quinquenais tenta fazer uma transição mais estruturada, ainda que cheia de obstáculos. O que está em curso não é o colapso, mas o teste de estresse de um modelo que tenta, ao mesmo tempo, estimular o consumo, modernizar a economia e manter a estabilidade social — tudo isso em meio a um ambiente externo cada vez mais hostil.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com [email protected].
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: