Oriente Médio: muito além do balaio de gatos
Enquanto no Brasil e no mundo persiste a celeuma provocada pelos tarifaços de Trump, Israel dá continuidade à passagem de suas boiadas em Gaza e agora na Síria
Sim, Israel atacou Damasco, capital da Síria, na tarde de 16 de julho, em uma ação surpresa e diurna. Os alvos foram prédios estratégicos do novo governo provisório sírio, entre eles o edifício do Estado-Maior e do Ministério da Defesa, próximo à Praça dos Omíadas, ao lado do palácio presidencial de Ahmed al Sharaa, novo líder sírio com passado jihadista, que liderou a revolta contra Bashar al-Assad. O ataque incluiu bombardeios aéreos e uso de drones. Um dos bombardeios ocorreu ao vivo durante a transmissão de um telejornal da TV síria, o que reforça o caráter ostensivo da operação. As imagens da jornalista apresentadora fugindo em desespero do estúdio da tv, em meio ao barulho das explosões, correu o mundo.
O saldo inicial divulgado foi de 3 mortos e 34 feridos. O ministro da Defesa de Israel, Israel Katz, anunciou a operação publicamente na rede X (ex-Twitter), dizendo:
“Os avisos a Damasco terminaram. Agora começam os ataques mais duros”. Israel afirma que o objetivo da operação é proteger a comunidade drusa da região de Sweida, que estaria sob ataque por forças associadas ao regime sírio. Sweida é um importante reduto druso localizado perto da fronteira com o Golã, território sírio ocupado e anexado por Israel desde 1967.
Assim que a notícia dos ataques se espalhou, a fronteira mergulhou no caos: cerca de mil drusos israelenses cruzaram a fronteira, passando por Majdal Shams, para ajudar a comunidade de Sweida. Netanyahu interveio em vídeo com um apelo: “Não façam isso, estamos operando contra as gangues do regime sírio para salvar nossos irmãos drusos, vocês correm risco de serem mortos ou sequestrados”.
A proteção (ou, mais precisamente, o apoio tático e político) que Israel oferece a alguns grupos drusos na Síria, especialmente os localizados nas Colinas de Golã e na região de Sweida (sul da Síria), se deve a uma combinação de motivos geoestratégicos, históricos e humanitários. Cerca de 150 mil drusos vivem em Israel, e muitos deles são cidadãos leais ao Estado. Diferente de outros grupos árabes, os drusos israelenses servem nas Forças de Defesa de Israel (IDF) e ocupam cargos em instituições estatais. Uma mão lava a outra...
O que é mesmo importante é que o ataque a Damasco é altamente significativo porque alveja não apenas forças ligadas ao antigo regime de Assad, mas também o novo governo provisório sírio, apoiado pela Turquia e reconhecido pelos EUA. Ao mesmo tempo, mostra um posicionamento claro e militarmente agressivo de Israel em um momento de transição política na Síria. Pode provocar reações internacionais, dada a violação do espaço aéreo sírio e o envolvimento direto em território soberano.
Mas o envolvimento dos drusos nos conflitos do Oriente Médio é muito mais do que um detalhe étnico. É um fator estratégico que sinaliza instabilidade grave; fragilidade de governos; a possibilidade de intervenções externas justificadas pela proteção a minorias. A sua presença e resistência ajudam a compreender a complexidade moral e geopolítica da região, onde nenhuma identidade é neutra e nenhum conflito é puramente local.
É exatamente por causa dessa complexidade que o Médio Oriente é frequentemente retratado como uma região mergulhada em caos e conflitos intermináveis. É chamado de laboratório do Armagedom apocalíptico, barril de pólvora do mundo, balaio de gatos ensandecidos, e outros epítetos do mesmo gênero. Na verdade, o Oriente Médio é um tabuleiro complexo onde histórias milenares, disputas religiosas, fronteiras coloniais e interesses estratégicos globais se entrelaçam - e se chocam.
Assim sendo, e a bem da verdade, reduzir o Oriente Médio a um “balaio de gatos” pode parecer uma metáfora útil para descrever seus conflitos recorrentes, mas é também uma forma preguiçosa de pensar. O que muitos enxergam como desordem é, na realidade, o resultado de camadas profundas de história, disputas geopolíticas, rivalidades religiosas e heranças coloniais mal resolvidas. A região segue uma lógica própria, que exige leitura atenta, contextualizada e livre de estereótipos.
Comecemos pelo colonialismo: as fronteiras dos atuais países da região foram traçadas com réguas europeias. Grande parte dos Estados do Oriente Médio moderno surgiu após a Primeira Guerra Mundial, quando impérios como o Otomano ruíram e potências europeias como França e Reino Unido redesenharam o mapa da região com base em interesses políticos, econômicos e militares, e não em realidades étnicas ou religiosas. O acordo Sykes-Picot, de 1916, é emblemático dessa engenharia territorial artificial que deixou legados de instabilidade até hoje.
O peso das religiões e o abismo sectário: a diversidade religiosa no Oriente Médio é imensa: muçulmanos sunitas, xiitas, cristãos, drusos, judeus, yazidis, entre outros, para citar apenas alguns. Conflitos como o que opõe Arábia Saudita (sunita) ao Irã (xiita) são muitas vezes descritos como “religiosos”, mas envolvem também profundas disputas por hegemonia política regional, influência sobre grupos armados e acesso a recursos.
Intervenções externas - quando o fogo vem de fora: as guerras do Iraque, Afeganistão, Líbia e Síria mostraram como as potências externas, especialmente os Estados Unidos, a Rússia e potências europeias, moldam os destinos do Oriente Médio conforme seus próprios interesses. Frequentemente, essas intervenções resultam em instabilidade prolongada, destruição de instituições e multiplicação de grupos radicais.
Israel e Palestina, epicentro da tensão contínua: nenhuma ferida aberta é tão simbólica quanto o conflito entre Israel e os palestinos. Com raízes no colonialismo britânico e agravado por décadas de ocupação dos territórios palestinos, deslocamentos forçados e resistência, o embate continua sendo um símbolo das disputas entre nacionalismos, identidades e memórias históricas que atravessam toda a região.
Recursos naturais - petróleo como benção e maldição: o Oriente Médio concentra cerca de 48% das reservas mundiais de petróleo. Essa abundância atrai a cobiça global, alimenta regimes autoritários, sustenta conflitos e desequilíbrios econômicos. O petróleo é ao mesmo tempo motor de riqueza e combustível da instabilidade.
Populações resilientes - entre a guerra e a esperança: apesar da violência e das crises, milhões de pessoas no Oriente Médio – resistem, constroem, reinventam. Movimentos civis, arte, literatura, ciência e resistência cultural florescem em meio ao caos aparente, mostrando que há muito mais do que guerras no coração da região. Entre esses povos não estão apenas os palestinos, mas também os curdos (cerca de 30-40 milhões, o maior povo sem Estado do mundo); armênios (no Oriente Médio), sobreviventes do genocídio da população armênia perpetrado pela Turquia (1915-1923). Sem falar nos assírios (ou caldeus e arameus), os yazidis, os beduínos, os coptas (cristãos egípcios), os drusos.
O Oriente Médio não é exatamente, portanto, um “balaio de gatos”, apesar das aparências. Esperamos que não seja também, apesar das aparências que sugerem o contrário, a região do Armagedom do Apocalipse bíblico, o cenário da batalha final entre o bem e o mal, antes do Juízo Final. Armagedom (em hebraico Har Megiddo, ou “Monte Megido”) é apresentado como o local onde os reis da Terra, enganados por espíritos malignos, se reunirão para a batalha contra Deus.
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