O plano de Trump para encerrar o genocídio: manobra política e vitória ilusória de Israel
Apesar de seu aparente caráter humanitário, este plano visa essencialmente “salvar” a ocupação israelense
Uma ocupação israelense disfarçada, tutela estadunidense-internacional, deslegitimação e apagamento da identidade palestina, além da eliminação da resistência — tudo visando erradicar a causa palestina — constituem, em resumo, o verdadeiro conteúdo do plano de Trump para encerrar a guerra israelense na Faixa de Gaza.
Em contraste, o plano de Trump, anunciado na segunda-feira, 29 de setembro, aborda as necessidades palestinas mais urgentes, principalmente a interrupção da agressão israelense, a autorização da entrada de ajuda humanitária na Faixa e a prevenção do deslocamento da população local. Inclui também promessas vagas sobre a retirada israelense da região e a implementação de um acordo de troca de prisioneiros “razoável” ou exequível.
No entanto, o plano ignora (ou evita deliberadamente) o requisito fundamental e essencial do conflito: o direito do povo palestino à sua terra e à soberania sobre ela, de tomar suas próprias decisões e de eleger sua liderança de forma livre e espontânea.
É inegável a necessidade urgente e extrema de pôr fim à guerra de extermínio israelense em Gaza, assim como a inexistência de qualquer interesse em desperdiçar uma única gota de sangue, sempre que possível. Entretanto, o plano cria de maneira intencional uma contradição entre os direitos humanos básicos dos palestinos e seus direitos legais, políticos e legítimos fundamentais — como se a conquista dos primeiros implicasse a negação dos segundos.
Problemas e Gatilhos
O problema do plano de Trump não está no Hamas, mas no conjunto do povo palestino, independentemente de sua filiação política. O documento não trata os palestinos como seres humanos com direitos básicos, iguais aos de todos os demais povos — à liberdade e a uma vida digna em sua terra, sob sua própria soberania. Em vez disso, busca ampliar para a arena internacional, sob uma capa árabe-islâmica, o mesmo enquadramento que Israel já lhes impõe: o de seres humanos incompetentes ou até mesmo “animais humanos”.
Trata suas necessidades materiais básicas e naturais — comuns a “animais e escravos”, como comida e água — como elementos de chantagem e moeda de troca.
Após mais de cem anos de resistência, revoluções e levantes, e após centenas de resoluções internacionais que reconhecem o direito do povo palestino à autodeterminação, ao retorno e ao estabelecimento de seu Estado independente, Trump surge para usurpar a legitimidade de seus verdadeiros proprietários e instituir um “órgão de tutela” para Gaza, denominado “Conselho de Paz”, sob sua liderança. É provável que sua administração fique a cargo de Tony Blair, ex-primeiro-ministro britânico. Tudo isso é feito sem consulta ou consentimento do povo palestino e sem prazo definido para o término desse mandato.
Ele vincula sua continuidade ao que chama de conclusão do programa de reformas da Autoridade Palestina, que está vinculado a padrões e controles estabelecidos pelo inimigo e pela própria ocupação.
Esses padrões se mostraram inatingíveis ao longo dos 31 anos de existência da Autoridade (desde 1994). Eles serviram apenas como um disfarce para a continuação da ocupação, para subjugar o povo palestino, para transformar seus aparatos e instituições em ferramentas a serviço da ocupação e para apagar a questão palestina.
O povo palestino é o povo mais educado do mundo árabe e está entre os mais bem-educados do mundo. Eles possuem centenas de milhares de indivíduos qualificados e experientes em todos os campos científico, tecnológico, econômico, administrativo e político. Eles não precisam da ajuda de ninguém, nem de um centavo ou um dólar, nem de comida ou sustento.
Seu problema fundamental é a ocupação, e a solução para o seu problema está em acabar com a ocupação. A ocupação é o que confisca suas terras, os oprime, sufoca sua liberdade, suprime sua criatividade, os mata, os desloca e destrói sua infraestrutura, escolas, hospitais e fábricas. O que Trump está fazendo é recompensar a ocupação, não acabar com ela.
O plano de Trump oferece ao Hamas e às forças de resistência uma receita para "suicídio e autodestruição". Ele os remove do cenário político palestino, elimina sua resistência, destrói sua infraestrutura, os desarma, exige que concordem com a tutela estadunidense e estrangeira sobre a Faixa de Gaza e os obriga a concordar com a continuação da ocupação israelense de grandes partes da Faixa, com uma retirada que seria arbitrária, qualitativa e de acordo com seus próprios critérios.
Em suma, é um processo de rendição em troca da permissão para o atendimento das necessidades básicas do povo de Gaza.
Ele tenta (enganosamente) retratar o Hamas e as forças de resistência como a causa da obstrução do acesso do povo palestino às suas necessidades básicas. Tenta posicioná-los contra a comunidade árabe e internacional, como se fossem a causa da guerra e da destruição em curso em Gaza.
Tenta reverter o cerne da narrativa palestina, após o círculo de simpatia global pelo povo palestino e sua causa ter se expandido e a brutalidade e arrogância sionistas terem sido expostas. Isso é feito desviando, enfraquecendo e desmantelando o apoio internacional, absorvendo-o e esvaziando-o de seu conteúdo, e redirecionando as flechas de culpa e raiva para o Hamas e a resistência palestina.
O plano de Trump cria uma entidade funcional com responsabilidades essenciais de segurança. Essa entidade, agindo em nome da ocupação israelense, buscará a erradicação do Hamas e da resistência, rastreando, prendendo, eliminando e neutralizando suas células militares.
Também perseguirá apoiadores do Hamas em departamentos e instituições governamentais, incluindo educação, saúde, economia e serviços, para eliminá-los, como aconteceu e está acontecendo na Cisjordânia.
A retirada gradual de Israel da Faixa de Gaza estará vinculada ao sucesso dessa entidade funcional em atingir os objetivos israelenses. Portanto, independentemente de o Hamas concordar ou não com o plano, seu líder é procurado, e sua erradicação, por meios duros ou brandos, continuará.
A maioria das disposições do plano são vagas e pouco claras, especialmente no que diz respeito aos compromissos israelenses. Muitos deles exigem um processo de negociação separado para serem implementados.
Isso proporciona à ocupação israelense uma margem significativa de manobra, evasão e a imposição de um fato consumado.
O plano de Trump separa a Faixa de Gaza da Cisjordânia, mina a essência da solução de dois Estados e interrompe o processo que, nos últimos dias, ganhou impulso significativo em direção ao reconhecimento do Estado da Palestina. Atualmente, 156 países já o reconhecem, o que corresponde a aproximadamente 81% do mundo.
O plano de Trump não se compromete com o estabelecimento de um Estado palestino e condiciona até mesmo o início de um processo de negociação à aprovação israelense e estadunidense do que chama de “reforma da Autoridade Palestina”. Trata-se do mesmo processo fútil que se iniciou com os Acordos de Oslo, há 32 anos.
Resta uma observação fundamental acerca do nível de confiança e credibilidade em torno do presidente Trump e de seu governo. Alguns partidos e observadores demonstram preocupação com a possibilidade de futuras revisões ou modificações em posições e compromissos. Outros manifestam receio de que certas políticas possam ser interpretadas como um enfraquecimento das questões regionais e dos interesses de governos e povos. Netanyahu e os líderes israelenses, de modo geral, são amplamente conhecidos por violar acordos e pactos, interpretá-los de acordo com sua conveniência, impor fatos consumados e trabalhar abertamente em prol da anexação, da judaização, do deslocamento populacional e até mesmo do projeto de “Grande Israel”.
O plano de Trump oferece à entidade israelense a oportunidade de se “reabilitar”, “branquear” sua imagem, reposicioná-la e impulsionar fortemente a normalização e a expansão dos “Acordos de Abraão”. Isso ocorre após seu comportamento hediondo ter frustrado esse caminho ao longo da agressão a Gaza. O plano também tenta romper o isolamento internacional de Israel sem que este arque com qualquer preço real por seus atos.
Por outro lado, a simples apresentação do plano por Trump e sua aprovação por Netanyahu constituem, na prática, uma admissão da incapacidade da esmagadora força militar israelense de atingir seus objetivos em Gaza: derrotar a resistência e recuperar os prisioneiros sionistas.
Esse diagnóstico é reforçado pelo relatório apresentado pelo Chefe do Estado-Maior israelense a Netanyahu antes do anúncio do plano, no qual se enfatizava a ausência de uma perspectiva real de vitória decisiva sobre a resistência e a necessidade de seguir um caminho político. Em consequência, este plano busca alcançar pela política o que não foi conquistado pela força militar.
Em artigo anterior, mencionei o verdadeiro objetivo israelense era atacar o Hamas, desarmá-lo, impedir a atividade da resistência na Faixa de Gaza e recuperar prisioneiros. Quanto à ocupação completa, ao deslocamento e ao governo direto, esses pontos funcionaram apenas como teto de barganha e cartas de pressão adicionais, que poderiam ser abandonadas e, no fim, “vendidas” como supostas grandes concessões israelenses.
Lidando com o Plano Trump
Enfrentar o plano de Trump exige firmeza e sabedoria, especialmente porque ele foi concebido para forçar a rendição da resistência e isolá-la nos âmbitos árabe e internacional.
A resistência não precisa responder com aprovação ou rejeição absoluta. O plano, em essência, é apenas uma carta colocada sobre a mesa de negociações. O próprio lado israelense já rejeitou ou frustrou planos anteriormente aprovados pelo Hamas.
As disposições do plano mesclam aspectos positivos, negativos e riscos. A resposta pode ser estruturada em três níveis:
Primeiro: disposições positivas que podem ser aceitas e implementadas após ajustes e esclarecimentos, como a cessação das hostilidades, a entrada de ajuda humanitária, o retorno dos deslocados, a reconstrução e a troca de prisioneiros.
Segundo: pontos que se encontram em uma zona cinzenta e exigem negociações sérias para produzir resultados claros, como o cronograma da retirada israelense, o funcionamento e os poderes de um governo tecnocrático, a assunção do controle de Gaza pela Autoridade Palestina, a possível presença temporária de forças não palestinas, a natureza de suas tarefas transitórias, seus mecanismos de operação e seus locais de implantação.
Terceiro: questões que não dizem respeito especificamente ao Hamas, mas sim aos direitos inalienáveis e fundamentais do povo palestino. Isso inclui a autoridade soberana que deve liderar ou supervisionar Gaza; o direito à resistência armada; o direito das facções de resistência à participação política e à reconstrução da Organização para a Libertação da Palestina; o direito de realizar eleições justas que expressem a verdadeira vontade popular; e o direito à autodeterminação, à soberania sobre suas terras e à rejeição de qualquer tutela estrangeira.
O Hamas e as forças de resistência devem esforçar-se por estabelecer um consenso nacional palestino sobre essas questões, enfatizando que se trata de uma decisão interna, tomada pelos próprios palestinos.
Portanto, sua rejeição decorre da vontade nacional palestina e dos interesses supremos do povo palestino, e não deve ser usada como pretexto para obstruir o fim da guerra ou impedir o alívio do sofrimento. A pressão deve ser dirigida ao agressor — Israel — e não ao povo palestino, às vítimas da ocupação, nem àqueles que reivindicam seus direitos naturais.
Finalmente, apesar de seu aparente caráter humanitário, este plano visa essencialmente “salvar” a ocupação israelense: reabilitá-la e promovê-la, legitimar a ocupação e a tutela internacional, eliminar a resistência palestina e apagar a causa palestina — independentemente de o Hamas concordar ou não.
Portanto, não há alternativa senão enfrentá-lo com a sabedoria e a firmeza necessárias para alcançar as aspirações do povo palestino.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.