Discurso de Trump na Assembleia Geral transitou entre narcisismo, ignorância e fraude
É curioso notar que o país das “amizades mais fortes” não encontrou aliados para votar a seu lado — e ao lado de seu protegido mimado, Israel
Quem acompanha os discursos dos chefes de Estado e de governo na 80ª sessão da Assembleia Geral não pode deixar de se surpreender com o longo, vulgar e bufão pronunciamento feito pelo presidente dos EUA, Donald Trump, em sua primeira participação na sessão anual da Assembleia Geral, após o retorno à Casa Branca. Como sua fala destoou fortemente das demais intervenções dos chefes de delegação, considerei sensato esclarecê-la, a fim de separar o joio do trigo: as distorções dos fatos, a arrogância e as pretensões de perfeição, genialidade e realização de milagres em um período de apenas oito meses.
Pretendo, portanto, analisar o que ele disse e demonstrar aos leitores que o presidente dos EUA misturou verdades e falsidades, distorceu fatos e violou regras de conduta diplomática, as quais se baseiam no respeito ao público, mesmo quando este discorda de quem fala. Sem muito esforço, é possível identificar três falhas principais em seu discurso, além de dezenas de outras menores. A primeira é a arrogância, marcada por autoestima inflada e um senso de grandeza sem limites, que pode se tornar um defeito fatal. A segunda refere-se à distorção de fatos e à atribuição de realizações imprecisas ou falsas. A terceira é a ignorância, expressa na negação de avanços científicos já consolidados, enquanto reivindica para si um conhecimento inexistente até mesmo para o restante do mundo.
Quanto à arrogância e à presunção, o discurso está repleto de sinais de vaidade, que predominam em toda a sua extensão. Ele chegou a citar um dos slogans de seus seguidores, estampado em camisetas com os dizeres “Trump está sempre certo”, comentando: “Parece que esse slogan é verdadeiro”. Quase afirmou nunca agir por capricho ou tomar uma decisão equivocada. Declarou: “Os Estados Unidos estão atualmente vivendo uma era de ouro após apenas oito meses sob minha liderança, pois têm a economia mais forte, as fronteiras mais fortes, o exército mais forte, as amizades mais fortes e o espírito mais forte de qualquer nação.”
É curioso notar que o país das “amizades mais fortes” não encontrou aliados para votar a seu lado — e ao lado de seu protegido mimado, Israel — contra a acolhida da Declaração de Nova York em favor de uma solução de dois Estados, exceto por três pequenos países. Ele acredita estar certo em relação às mudanças climáticas, ao fim da imigração, ao combate ao crime, à atração de investimentos, à redução de impostos e ao aumento de salários. Ouça o que ele diz, com um tom de arrogância e presunção condescendente: “Meu país garantiu US$ 17 trilhões em investimentos atuais e futuros.” Também afirmou que seu governo implementou os maiores cortes de impostos e regulamentações da história, tornando os EUA, mais uma vez, o melhor país do planeta para se fazer negócios.
Fraude e conquistas fabricadas
Comecemos por um ponto óbvio: sua alegação de ter encerrado sete guerras, incluindo uma entre a Etiópia e o Egito. Quem disse que esses dois países estavam em guerra? A Etiópia seguiu com a construção da Grande Barragem do Renascimento até sua conclusão e comemorou a inauguração em 9 de setembro, ignorando os protestos egípcios.
Quanto ao conflito entre Índia e Paquistão, ele tampouco o encerrou. Após os ataques contra a Força Aérea Indiana — com a derrubada de cinco aeronaves e ataques a todas as bases de onde partiam aviões e mísseis indianos — foram os próprios generais indianos que contataram seus homólogos paquistaneses e solicitaram o cessar-fogo, prontamente aceito. O governo indiano, inclusive, negou oficialmente a alegação de Trump de que teria encerrado a guerra.
Não há registros claros de que uma guerra estivesse ocorrendo entre Kosovo e Sérvia. Em 2020, ele chegou a alegar ter evitado uma guerra iminente entre ambos, mas a reconciliação já estava em curso muito antes de sua intervenção. Quanto ao Congo e Ruanda, tampouco foi ele quem impediu o conflito. Na realidade, capitalizou os esforços do Catar, que mediou as negociações entre os dois lados em março de 2025 e firmou um acordo preliminar na presença de autoridades de ambas as nações. Posteriormente, a União Africana organizou as reuniões para a assinatura final. Trump apenas apareceu depois, apropriando-se dos esforços alheios e alegando ter evitado a guerra. Um correspondente da CNN, contudo, confirmou que os confrontos ainda prosseguiam em diversas regiões.
Ele também errou ao mencionar o acordo de paz entre Armênia e Azerbaijão, chegando inclusive a pronunciar incorretamente os nomes dos dois países. A reconciliação entre eles havia começado muito antes de sua chegada.
Trump afirma que as pesquisas mostram que sua popularidade está no auge, atribuindo esse suposto resultado às suas ações na fronteira com o México. No entanto, os fatos desmentem essa alegação. Na realidade, as pesquisas indicam o oposto: seu índice de aprovação no trabalho é talvez o pior de sua carreira política. Um levantamento do New York Times registrou 43% de aprovação e 54% de desaprovação. Outra pesquisa, conduzida pelo jornalista Elliott Morris, encontrou 42% de aprovação e 54% de desaprovação — justamente no dia do discurso. Já a CNN, durante a mesma semana, constatou 41% de aprovação contra 57% de desaprovação.
Entre as falsificações de Trump está a afirmação de que teria derrotado a inflação, alegando que “não há inflação”, o que é uma mentira evidente. Os preços, na verdade, atingiram o nível mais alto em quatro anos, subindo de 2,7% para 2,9% e alcançando 3% em agosto. Ele também declarou que os preços das compras cotidianas haviam diminuído, o que não corresponde à realidade: em agosto, eles estavam 1% mais altos em comparação a janeiro. Os valores dos imóveis residenciais subiram 0,6% entre junho e agosto, o maior aumento desde 2022. Quanto à energia, afirmou que as contas de luz estavam caindo, quando, na verdade, o aumento foi inédito. A lista de distorções prossegue, sempre exaltando supostos feitos de sua administração.
No que diz respeito à sua ignorância sobre as Nações Unidas e os avanços científicos, suas declarações foram feitas sem qualquer constrangimento. Em primeiro lugar, convém destacar que o mau funcionamento da escada rolante, citado por ele, ocorreu porque um cinegrafista que o acompanhava começou a andar de ré na escada para tirar fotos suas e da primeira-dama, o que acionou o sistema de segurança e provocou a parada do equipamento — e não por falha atribuível às Nações Unidas.
Trump também afirmou que a ONU “não resolve os problemas que deveria resolver; ao contrário, muitas vezes cria novos problemas para nós”. Segundo ele, a organização estaria financiando uma guerra contra os países ocidentais e suas fronteiras, fornecendo ajuda a imigrantes ilegais. Essa alegação apenas demonstra sua profunda ignorância, já que ele desconhece os tratados internacionais firmados pela comunidade internacional para oferecer assistência a refugiados e migrantes que fogem de guerras e perseguições. Além disso, esquece-se de que muitas dessas migrações resultam de conflitos provocados ou intensificados por potências ocidentais — como as intervenções dos EUA no Iraque, Afeganistão e Líbia, ou ainda pelo apoio irrestrito a Israel na Palestina. Soma-se a isso a exploração dos recursos naturais de países africanos, prática que levou várias nações do continente a se insurgirem contra a hegemonia francesa.
Sua zombaria das mudanças climáticas e da energia verde apenas reforça a ignorância ou a deliberada negação de fatos científicos, substituídos por uma retórica bufônica incapaz de resistir ao escrutínio da comunidade científica. Trump declarou que seu país estaria eliminando gradualmente o que chamou de “fontes de energia renováveis com nomes falsos. Elas são uma piada, ineficientes e extremamente caras”. Acrescentou ainda que muitos países europeus estariam “à beira da destruição” por causa da agenda ambiental. Para ele, “a mudança climática é a maior farsa já perpetrada contra o mundo”.
No seu discurso, terremotos, furacões, deslizamentos de terra, enchentes devastadoras, tsunamis e até o aquecimento global seriam conspirações chinesas ou pura desinformação. Só ele, em sua visão narcisista, teria acesso à “verdade”. Todos os cientistas do planeta, portanto, deveriam se curvar ao mestre dos palhaços, líder dos narcisistas e arquiteto da falsificação.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.