O genocídio prolongado do povo cubano
O embargo é mais que uma medida econômica. É uma forma de terrorismo de Estado
Enquanto o mundo se choca — com inteira razão — diante das imagens de morte e devastação em Gaza, há um outro genocídio que parece não merecer a mesma atenção: o genocídio prolongado contra o povo cubano. Não há bombas nem tanques, mas há mais de sessenta anos uma guerra silenciosa, travada por meio de um bloqueio econômico que sufoca cada gesto de vida na ilha.
Se em Gaza a violência se dá em minutos, com o estampido frequene das explosões, em Cuba ela se desenrola em câmara lenta. O embargo dos Estados Unidos provoca fome, apagões, falta de remédios, migração forçada, envelhecimento social e desespero cotidiano. Um crime continuado, condenado ano após ano pela ONU, mas mantido como política oficial de Washington.
A diferença é apenas estética. Enquanto um genocídio é televisivo, barulhento e sangrento, o outro é silencioso e burocrático — executado por bancos que se recusam a transferir dólares, navios proibidos de atracar, empresas que temem sanções. Gaza morre diante das câmeras. Cuba agoniza no escuro, abandonada pelas agências de notícias que deixam o mundo sem saber da morte lenta de um país.
A linha invisível
“Apenas 145 quilômetros separam a Flórida de Cuba. E, no entanto, há décadas, os dois países coexistem em lados opostos de uma linha invisível. Agora, um lado dessa linha está se desintegrando: Cuba está fracassando — desta vez, aparentemente para sempre.”
Assim escreveu recentemente Caroline Mimbs Nyce, editora do boletim da New Yorker, ao introduzir a reportagem de Jon Lee Anderson. O repórter, que morou em Havana e escreveu a biografia de Che Guevara, descreve uma ilha arruinada desde a pandemia, de onde jovens fogem em massa rumo aos Estados Unidos — apenas para encontrarem, na Flórida de Donald Trump, um novo, impiedoso e desumano regime de repressão migratória.
O retrato é devastador. Mas é preciso nomear o principal responsável por essa tragédia: o embargo criminoso dos EUA, vigente há mais de meio século, que transformou Cuba em laboratório de asfixia econômica.
EUA e a asfixia planejada
O embargo imposto pelos Estados Unidos contra Cuba em 1962 não é apenas uma medida de pressão diplomática. É o mais duradoro e cruel sistema de sanções já registrado contra uma nação. Ao longo de mais de seis décadas, converteu-se em uma política de asfixia planejada. Uma tentativa sistemática de dobrar o povo cubano pelo sofrimento cotidiano.
Em 1996, a Lei Helms-Burton radicalizou esse cerco, ao dar caráter de lei interna e extraterritorialidade ao embargo. Bancos europeus, navios asiáticos, seguradoras latino-americanas — todos podem ser punidos caso se relacionem com Cuba. É o braço do império projetado para além de suas fronteiras, isolando a ilha do comércio e das finanças globais.
Washington alega que há “exceções humanitárias” para alimentos e remédios. Mas isso é retórica. Na prática, o medo de sanções e multas bilionárias paralisa transações, cancela contratos e encarece importações. O resultado é perverso. Falta de remédios, atraso na chegada de insumos médicos, apagões por ausência de peças, escassez de alimentos. Até a compra de seringas durante a pandemia se tornou quase impossível.
Uma forma de terrorismo
Esse embargo não atinge “o regime”, como alegam os EUA. Ele atinge cada cubano anônimo que enfrenta filas intermináveis, hospitais sem suprimentos e a ausência de futuro. Se a palavra “genocídio”, no sentido jurídico, exige a intenção explícita de exterminar um povo, o que vemos em Cuba é um genocídio prolongado, que mata em câmara lenta: pela fome, pela falta de remédios, pela emigração forçada, pelo envelhecimento social. Um crime continuado, condenado pela ONU, mas mantido como política oficial dos Estados Unidos.
O embargo é, portanto, mais que uma medida econômica. É uma forma de terrorismo de Estado, por coincidência, dos Estados Unidos da América do Norte, que transformou Cuba em refém por seis décadas. Um bloqueio que deveria envergonhar o mundo, mas que persiste como símbolo da hipocrisia do Ocidente e da brutalidade imperial.
A punição coletiva
O impacto humano é medido em números e rostos:
- Mais de 850 mil cubanos deixaram o país desde 2021 — quase 8% da população.
- Em 2024, Cuba perdeu 307 mil habitantes em um único ano, a maior sangria populacional de sua história.
- A população ativa encolhe, e apenas a faixa etária dos idosos cresce.
Nas ruas de Havana, multiplicam-se apagões, filas por alimentos e a escassez de medicamentos essenciais. Jovens engenheiros, médicos e professores abandonam a ilha. Não conseguem sobreviver sob as condições impostas de fora, pelos EUA.
Genocídio ou punição coletiva?
Tecnicamente, a palavra “genocídio” exige a intenção explícita de destruir um povo. É um padrão jurídico alto, estabelecido pela Convenção da ONU. Washington se defende alegando que o alvo é o regime, não a população.
Mas a distinção soa cínica diante dos fatos. O embargo impõe condições de vida degradantes a milhões de pessoas. Se não se enquadra no conceito estrito de genocídio, é certamente um crime contra a dignidade humana, um regime de coerção que nenhum tribunal poderia justificar.
Por isso, ano após ano, a Assembleia Geral da ONU condena o bloqueio. Em 2024, foram 187 votos contra apenas 2 — Estados Unidos e Israel.
Miami e Havana: fronteiras da hipocrisia
Enquanto Havana se despovoa, Miami se enche de novas ondas migratórias. Lá, os cubanos enfrentam a repressão da “democracia americana trumpista”: centros de detenção como o apelidado “Alligator Alcatraz”, projetos de lei estaduais que reforçam a caça a imigrantes e um governo federal que endurece e esquece os critérios de humanidade e solidariedade.
O paradoxo é cruel: o país que sufoca Cuba com um embargo que mina as condições de vida, ao mesmo tempo fecha suas portas aos que fogem dessas condições.
Chamar as coisas pelo nome é essencial. O embargo é um crime histórico. Sua revogação não resolverá todos os problemas de Cuba, mas é condição indispensável para qualquer saída que não seja o colapso social e demográfico.
O povo cubano, que resistiu por mais de seis décadas à pressão de Washington, não precisa de paternalismo nem de caridade. Precisa apenas que lhe tirem o joelho do pescoço.
Se a comunidade internacional não for capaz de forçar o fim do bloqueio, continuará cúmplice de uma punição coletiva que atravessa gerações. E que, embora alguns hesitem em chamar de genocídio, tem todos os efeitos de uma asfixia programada.
É hora de usar a palavra certa: o que está ocorrendo em Cuba é genocídio — e assim será lembrado pela história.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.