E se o golpe de 2023 desse certo?
A resposta pode estar no livro Torturadores — Perfis e Trajetórias de Agentes da Repressão na Ditadura Militar Brasileira, de Mariana Joffily e Maud Chirio
O plano golpista Punhal Verde-Amarelo, elaborado pelos articuladores do 8 de janeiro de 2023, estabelecia o retorno imediato aos métodos da ditadura militar de 1964. De forma explícita, o plano determinava que, logo após a ruptura institucional, seriam assassinados o presidente recém-empossado Luiz Inácio Lula da Silva, por envenenamento, o vice Geraldo Alckmin e o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes. Os documentos encontrados pela Polícia Federal não deixaram dúvidas sobre as das primeiras vítimas — início de uma provável longa série de execuções políticas, como foi na ditadura militar anterior.
Se o golpe de Jair Bolsonaro e da organização criminosa que ele liderava tivesse dado certo, o Brasil teria assistido em 2023 à reimplantação da ditadura que durou 21 anos? Se era esse o objetivo, o que efetivamente ocorreu nos 21 longos anos da ditadura 1964/1985 que poderia ocorrer de novo?
A resposta pode estar no livro Torturadores — Perfis e Trajetórias de Agentes da Repressão na Ditadura Militar Brasileira, de Mariana Joffily e Maud Chirio, duas historiadoras referenciais para o estudo da ditadura, um corajoso perfil coletivo dos agentes que atuaram diretamente na repressão aos opositores do regime militar.
O rosto da violência
Durante 21 anos, a ditadura militar brasileira cultivou um mito conveniente — o da repressão exercida por “porões” clandestinos, com poucos homens sádicos, agindo à margem do Estado. O livro Torturadores mostra exatamente o contrário. A violência foi política, oficial, planejada e executada por uma rede de mais de 170 agentes — militares, policiais, delegados e até médicos — integrados à máquina estatal.
Entre os nomes mais conhecidos está o do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do DOI-Codi de São Paulo, reconhecido pela Justiça em 2008 como torturador. Aquele Brilhante de quem o então deputado Jair Bolsonaro relembrou ao pronunciar seu voto no impeachment de Dilma Rousseff, em 2016: “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff… o meu voto é sim.”
Quando militante, Dilma Rousseff foi torturada por Brilhante Ustra herói dos Bolsonaro. Eduardo, o 03, vestia com frequência uma camiseta com a foto do seu herói. Sob comando de Ustra, centenas de militantes foram torturados, assassinados, "desaparecidos". Outro personagem é Paulo Malhães, que confessou ter participado de execuções e ocultações de cadáveres.
O livro recupera também a trajetória de Sérgio Paranhos Fleury, delegado do DOPS paulista, que personificava a ponte entre polícia civil e aparato militar, sendo acusado de liderar esquadrões da morte e operações de extermínio. Mas o mérito maior da pesquisa é trazer à luz os “operadores invisíveis”: capitães como Benoni de Arruda Albernaz, identificado como torturador na Operação Bandeirante; agentes como Rubens Paim Sampaio, o “Dr. Teixeira”, ligado à Casa da Morte em Petrópolis; e médicos como Alfredo Magalhães.
A normalização da barbárie
O que a obra de Joffily e Chirio revela é perturbador. A tortura não foi um ato clandestino, mas uma instituição normalizada dentro do regime. Os algozes eram reconhecidos, condecorados e promovidos. Relatórios internos elogiavam “serviços prestados” e carreiras avançavam justamente pelo envolvimento no trabalho sujo da repressão assassina.
As sessões de tortura não aconteciam em porões secretos, mas em repartições oficiais, como os DOI-Codi de São Paulo e do Rio, centros militares equipados e financiados pelo Estado, com registro em folha de pagamento e orçamento público.
Ao contrário da imagem de “psicopatas isolados”, os torturadores eram oficiais disciplinados, cumprindo ordens, operando numa doutrina de “guerra interna” ensinada em escolas militares e legitimada pelo discurso da “segurança nacional”.
Perfis que desmontam o silêncio
Ao compor uma biografia coletiva, Joffily e Chirio mostram que esses homens tinham trajetórias semelhantes. Eram jovens oficiais formados na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, policiais civis envolvidos em esquemas de corrupção e violência urbana, médicos que colocaram sua ciência a serviço para prolongar a "vida" dos torturados até conseguir tudo que queriam e algo mais que as vítimas diziam na tentativa ilusória de sair do inferno.
Terminada a ditadura, em 1985, todos esses homens saíram ilesos. A Lei da Anistia de 1979, interpretada para proteger os agentes do Estado, blindou-os de qualquer responsabilização judicial. Enquanto países vizinhos, como Argentina e Chile, julgaram e condenaram seus torturadores, o Brasil optou pela impunidade.
As vítimas que simbolizam a barbárie
Rubens Paiva, Vladimir Herzog, Honestino Guimarães, José Carlos da Mata Machado e Gildo Lacerda estão entre as vítimas mais emblemáticas da ditadura militar. Suas histórias expõem a máquina de morte que operou no Brasil entre 1964 e 1985. E que quase se repete em 2023.
Rubens Paiva: o deputado desaparecido
Cassado em 1964, o parlamentar foi sequestrado em 1971 por agentes da repressão. Nunca mais foi visto. Seu corpo permanece desaparecido até hoje, testemunho vivo da violência do Estado. O filme de Walter Salles, Ainda estou aqui, documenta a barbaridade cometida com Rubens e sua família.
Vladimir Herzog: a farsa do suicídio
Jornalista e diretor da TV Cultura, foi preso e assassinado em 1975 no DOI-Codi de São Paulo. O regime tentou encobrir o crime como suicídio, mas a farsa caiu por terra e sua morte se tornou símbolo da luta contra a ditadura assassina.
Honestino, José Carlos e Gildo: presidente da UNE
Presidente da UNE, Honestino Guimarães foi sequestrado em 1973 e nunca mais apareceu. O filme sobre sua vida está pronto e entrará no circuíto no início de 2026. José Carlos, presidente da UNE, foi morto sob tortura no mesmo ano, aos 26 anos. Presidente da UNE, Gildo foi assassinado no mesmo dia que José Carlos.
A versão oficial sobre as mortes de Gildo Lacerda e José Carlos da Mata Machado foi contestada pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), que concluiu que ambos foram presos e torturados até a morte por agentes do Estado brasileiro no DOI-CODI do IV Exército, em Recife, no dia 28 de outubro de 1973.
Lembrar agora para não esquecer
Num momento em que a extrema-direita tenta reabilitar o legado da ditadura, livros como o Torturadores cumprem um papel essencial: dar rosto aos algozes, mostrar que a repressão não foi uma exceção, e, sim, um projeto de Estado. Exatamente como seria se a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 desse certo. E o pior é que eles continuam a bradar pela anistia para a organização criminosa de Jair Bolsonaro e seus militares de alta patente, já condenados a longos anos de prisão.
Lembrar quem foram os torturadores não é exercício de vingança, mas de justiça histórica. Ao nomear os algozes e expor suas trajetórias, o livro de Mariana Joffily e Maud Chirio cumpre uma função democrática. A de mostrar que a violência não foi obra de monstros isolados, mas de um Estado que se organizou para esmagar a sociedade civil. E tentou de novo em 2023 embalados pela certeza da impunidade.
Num país em que políticos dae uma família inteirta -- os 01, 02, 03, 04 e o chefe — ex-presidente da República Jair Messias Bolsonaro — exalta a memória de Brilhante Ustra em pleno Congresso Nacional, a memória não pode ser neutra. É preciso dizer com todas as letras: aqueles homens torturaram, mataram e "desapareceram" cidadãos brasileiros, a maioria com menos de 30 anos, E é justamente o silêncio em torno de seus crimes que permite que fantasmas autoritários de extrema-direita continuem ameaçando, hoje, a democracia.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.