O ronco das ruas, o enterro da PEC da Blindagem e o 8 de janeiro
Decisão de rejeitar a PEC mostra que o Congresso respeita o grito ensurdecedor das ruas
Ainda sob o impacto das manifestações populares que tomaram as principais capitais do país no domingo, o Senado Federal enterrou de vez a chamada PEC da Blindagem, apelidada pelas ruas e pelas redes de “PEC da Bandidagem”. O texto, aprovado com folga na Câmara dos Deputados há uma semana, foi rejeitado por unanimidade pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado e pelo presidente Davi Alcolumbre.
A expressão “o ronco das ruas” tornou-se um símbolo do poder das mobilizações populares. O exemplo mais marcante vem do governo João Goulart (1961–1964). Diante das pressões de setores conservadores e militares, Jango afirmava que confiava no “ronco das ruas” para sustentar as Reformas de Base e resistir aos golpistas que conspiravam contra a democracia.
O ronco das ruas na história
Em 1968, o ronco das ruas ecoou de forma ensurdecedora na Passeata dos 100 Mil, no Rio de Janeiro. Estudantes, artistas, intelectuais, religiosos e trabalhadores tomaram as ruas para protestar contra a repressão do regime militar. Foi a maior demonstração popular desde o golpe de 1964 e mostrava que a ditadura não conseguia silenciar a sociedade civil.
A resposta veio no dia 13 de dezembro de 1968, com a decretação do AI-5, o chamado “golpe dentro do golpe”.
O Ato Institucional nº 5 fechou o Congresso Nacional, suspendeu direitos e liberdades, deu poderes absolutos ao Executivo e inaugurou a fase mais cruel da ditadura militar.
A partir daí, começaram os anos mais sangrentos do regime: torturas sistemáticas, assassinatos de opositores e a perseguição de todos que ousassem discordar do poder militar.
O Congresso só voltaria a ser reaberto com liberdade em 1985, após duas décadas de silêncio imposto. Nesse período, o ronco das ruas foi sufocado pela repressão sanguinária, mas sobreviveu como memória e resistência. A lembrança da Passeata dos 100 Mil permanece como símbolo de que o povo organizado nas ruas é a maior ameaça a regimes autoritários.
O ronco das ruas nas Diretas Já
Duas décadas depois, a frase ressurgiu com força nas campanhas pelas Diretas Já (1983–1984). Lideranças como Ulysses Guimarães, Leonel Brizola e Tancredo Neves evocavam o ronco popular como energia capaz de empurrar o Congresso a votar pela redemocratização. A multidão nas ruas — mais de um milhão apenas no comício da Praça da Sé — tornou-se argumento político incontornável.
O ronco das ruas pela Constituição de 1985
Mesmo com a derrota da emenda Dante de Oliveira em 1984, a pressão popular não cessou. O ronco das ruas seguiu firme até 1985, quando a transição democrática se consolidou e o Congresso convocou a Assembleia Nacional Constituinte. Foi a vitória da mobilização que culminaria, em 1988, na Constituição Cidadã, celebrada por Ulysses Guimarães como marco da redemocratização e do compromisso com a liberdade.
Sem o povo nas ruas, a Constituinte teria sido sufocada pelos remanescentes do regime militar. Foi o ronco popular que empurrou o país a enterrar o ciclo autoritário de 21 anos, iniciado em 1964.
O ronco das ruas no dia D do golpe
O ronco mais estridente de todos os que a história registrou ocorreu precisamente no dia D, que marcou o ponto culminante das várias tentativas de golpe de Estado, planejadas pela organização criminosa de Jair Bolsonaro e seus militares de alta patente, desde o primeiro dia do governo do ex-presidente.
Foi no dia 1º de janeiro de 2023, na cerimônia de posse do terceiro mandato do presidente Lula, que o ronco das ruas atingiu sua expressão mais estridente. Centenas de milhares de brasileiros de todo o país lotaram Brasília numa celebração democrática sem precedentes. Não era apenas uma cerimônia de posse: era a afirmação de que o povo chegava ao poder pela porta da frente.
E mais importante ainda: esse ronco das ruas foi tão estridente que os golpistas liderados por Jair Bolsonaro e seus militares decidiram adiar mais uma tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito. Temiam o contraste imediato com a força popular expressa no dia da posse. Recuaram. E só tentaram novamente consumar o golpe dentro do golpe em 8 de janeiro, fracassando diante da resistência institucional e da pressão internacional.
Quando o Congresso se move ao som das ruas
O episódio desta semana confirma essa tradição. A PEC da Blindagem não caiu por convicção democrática dos parlamentares, mas porque o grito das ruas ecoou forte o bastante para tornar a proposta insustentável.
Deputados e senadores avaliaram o risco de desafiar o clamor popular e, temendo desgaste irreversível, preferiram recuar.
Esse é o ensinamento central: o Congresso não se move por virtude, mas por cálculo. E nesse cálculo, o ronco das ruas é determinante. Foi assim no passado, é assim agora e será assim no futuro.
Em 21 de setembro de 2025, o ronco das ruas voltou a ecoar com potência. Só essa presença poderá enterrar de vez as tentativas de anistia, blindagem e pacificação de fachada que buscam absolver golpistas e preparar novos ataques ao Estado Democrático de Direito.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.