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Sara York

Sara Wagner York (também conhecida como Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior) é bacharel em Jornalismo, doutora em Educação, licenciada em Letras – Inglês, Pedagogia e Letras Vernáculas. É especialista em Educação, Gênero e Sexualidade, autora do primeiro trabalho acadêmico sobre cotas para pessoas trans no Brasil, desenvolvido em seu mestrado. Pai e avó, é reconhecida como a primeira mulher trans a ancorar no jornalismo brasileiro, pela TV 247

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Não julgueis: Charlie Kirk e a construção de um inimigo imaginário

'O discurso que transforma identidades em ameaça não é apenas retórico; ele prepara o terreno para o ataque e legitima o ódio', analisa Sara York

Homem segura foto de Charlie Kirk durante vigília em frente à Embaixada dos Estados Unidos em Berlim, Alemanha (Foto: REUTERS/Annegret Hilse)

Em setembro de 2025, o ativista conservador Charlie Kirk foi assassinado a tiros durante um evento universitário. O crime, por si só trágico, rapidamente se transformou em um campo de batalha simbólico. Narrativas políticas e fantasias sociais foram mobilizadas para reforçar preconceitos e justificar políticas repressivas.

Charlie Kirk era um ativista conservador americano, fundador da Turning Point USA, uma organização que promove o conservadorismo entre jovens em escolas e universidades nos EUA. Ele também apresentava o The Charlie Kirk Show, um programa de rádio e podcast onde comentava política sob uma perspectiva conservadora.

Eu não fazia ideia de que Charlie Kirk era a mesma figura que eu via sendo exaltada meses antes, nos EUA. Como pesquisadora, eu o observava sendo idolatrado por parte da população que defendia Trump. Ele parecia ter a resposta para tudo, falava com todos e, acima de tudo, falava de Deus.

Quando a notícia de sua morte começou a circular nas redes, vi seu nome em postagens de evangélicos que eu conhecia, muitos compartilhando luto e indignação. A curiosidade me levou a pesquisar e, assim, descobri que se tratava de um influente ativista conservador e uma figura central no movimento de direita cristã americana. Que, diga-se, odeia gente como eu! A trans que fala, lê, escreve e reflete antes de dizer o "amém". 

Vamos entender as cascas dessa cebola que só cria biles, nada de sabor!

Minutos antes de ser morto, Kirk respondia a uma pergunta sobre a suposta frequência de "atiradores trans" - uma teoria conspiratória que ele próprio havia ajudado a difundir. A ironia cruel da cena não passou despercebida: o discurso que transforma identidades trans em ameaça foi interrompido por uma violência real.

Sem evidências, comentaristas de direita passaram a sugerir que o autor do crime seria uma pessoa trans. O Wall Street Journal chegou a publicar que havia "ideologia trans" nas cápsulas de munição - uma afirmação desmentida pelas autoridades em menos de 24 horas. Ou seja, ganhemos a cena mesmo sendo mentira, é o desmentido da realidade - manter a fantasia mesmo quando os fatos a contradizem - lucro?! Com certeza!

A rapidez dessa construção pelos seguidores revela um desejo inconsciente de encontrar um "outro" que possa ser responsabilizado pela desordem. Na vida real, nomeamos de bode expiatório - culpar alguém (seja o parceiro trans do autor, ou qualquer um com relação à causa) mesmo sem evidências, com a desculpa de "restaurar a ordem moral".

O assassino foi identificado como Tyler Robinson, um homem cisgênero branco de 22 anos. Ainda assim, a mídia conservadora tentou transferir a culpa para o parceiro trans de Robinson, sem qualquer evidência de envolvimento. Essa manobra expõe um mecanismo psíquico de projeção e foraclusão: o sujeito trans é excluído do campo simbólico e transformado em ameaça, mesmo quando os fatos apontam em outra direção.

Dados Ignorados e Vidas em Risco

A narrativa de um "atirador trans" não se sustenta nos fatos. Segundo o Gun Violence Project, menos de 0,1% dos tiroteios em massa na última década foram cometidos por pessoas trans ou não binárias. Por outro lado, as estatísticas gritam uma realidade oposta: pessoas trans têm quatro vezes mais chances de serem vítimas de violência.

A insistência em associar a identidade trans à violência não apenas distorce a verdade, mas legitima políticas de ódio e coloca vidas em risco. A narrativa do "atirador trans" ganhou força após o tiroteio em Nashville, quando a direita intensificou ataques contra os direitos LGBTQIA+. O Departamento de Justiça chegou a cogitar restrições específicas para pessoas trans na compra de armas, mesmo sem dados que sustentassem a proposta.

A reação tímida de alguns políticos democratas diante dessa escalada de desinformação revela uma falha estrutural na defesa dos direitos humanos. É um sinal de que o medo e a fantasia podem, infelizmente, se sobrepor à razão e à justiça.

Quando o Discurso Mata

A morte de Charlie Kirk não pode ser analisada como um evento isolado, mas como um sintoma de um mal maior como sempre aponto nessa coluna. É a construção de inimigos imaginários para justificar a exclusão e a violência. A identidade trans, nesse cenário, se torna o espelho onde a sociedade projeta seus medos mais profundos e sua incapacidade de lidar com a diferença.

Outro fantasma que atravessa essa narrativa é o da "travesti que estupra mulheres em banheiros públicos" - uma figura inexistente, mas vendida e repetida como verdade por décadas. Essa mesma fantasia social é irmã da lenda da "travesti que pega homem casado". Ambas reforçam a ideia de um corpo trans como uma ameaça, nunca como vítima de homens que como Kirk sabem muito bem amolar a faca - e apertar o gatilho - do qual foi vítima.

O discurso que transforma identidades em ameaça não é apenas retórico; ele prepara o terreno para o ataque, legitima o ódio e, em última instância, mata. É uma chamada à reflexão: estamos dispostos a ignorar a verdade por uma narrativa que nos conforta, mesmo que isso custe a vida e a dignidade de outras pessoas?

As próximas eleições nos darão essa prova!

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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