Métodos dos anos de chumbo ameaçaram ressurgir em 8 de janeiro de 2023
A tentativa de golpe não foi apenas institucional. Foi física, violenta, planejada com precisão militar
No dia 19 de agosto de 2025, o deputado Pastor Henrique Vieira apresentou à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 4089/25, propondo a inscrição de Frei Tito de Alencar Lima no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.
A iniciativa reacende a memória de um dos mais pungentes símbolos da resistência à ditadura militar de 1964 — o golpe apelidado pelos generais de “revolução” — que sequestrou, prendeu em masmorras medievais, torturou e matou centenas de brasileiros, a maioria na casa dos 20 anos. Mais do que uma homenagem a uma das vítimas, a iniciativa de Henrique Vieira é um gesto político de reparação e afirmação histórica. Frei Tito não foi apenas vítima da repressão — foi mártir da fé e da liberdade. Uma das vítimas da sanha assassina de uma ditadura que foi derrotada, mas nunca definitivamente enterrada, e que, vez por outra, tenta ressurgir com mesmos métodos cruéis dos anos de chumbo.
Torturas brutais sob o comando de um aluno de Ustra
Nascido em Fortaleza, em 1945, Tito ingressou na Ordem Dominicana e tornou-se militante da Juventude Estudantil Católica. Em plena efervescência política dos anos 1960, envolveu-se com movimentos de oposição ao regime militar, sendo acusado de colaborar com a Ação Libertadora Nacional (ALN). Em 1969, foi sequetrado e levado ao DOPS de São Paulo, onde sofreu torturas brutais sob o comando do delegado Sérgio Fleury — um dos rostos mais sombrios da repressão da escola macabra de Brilhante Ustra, o herói de Jair Bolsonaro, de seus filhos e dos militares golpistas de hoje. Mesmo após ser libertado em troca do embaixador suíço Giovanni Bucher, Tito carregava feridas profundas. Exilado na França, viveu entre o silêncio e o sofrimento. Em 10 de agosto de 1974, aos 28 anos, tirou a própria vida no convento de Éveux. Seu gesto foi um grito contra a barbárie, um testemunho extremo da dor causada pela violência de Estado.
“Não posso esquecer o que fizeram comigo." Frei Betto, seu amigo e companheiro de fé, escreveu em Batismo de Sangue: “Tito morreu porque não conseguiu matar a dor. Mas sua vida é um farol para todos que enfrentam a escuridão da opressão.” Em uma de suas cartas, em momentos de desespero, Frei Tito revela o impacto psicológico da tortura: “Não posso esquecer o que fizeram comigo. Tento rezar, mas às vezes só consigo chorar.” A memória de Frei Tito é também a memória dos que resistiram, dos que tombaram e dos que ousaram sonhar com um Brasil livre. Inscrevê-lo entre os heróis da pátria é reconhecer que a democracia brasileira tem raízes que sangram — e que sua preservação exige coragem, lucidez e compromisso com a verdade histórica.
Punhal Verde-Amarelo: a volta dos métodos assassinos
O resgate da memória de Frei Tito se conecta diretamente com as revelações recentes da Operação Punhal Verde-Amarelo. Ontem como hoje, o autoritarismo recorreu aos mesmos métodos de eliminação física de opositores e podemos antever o que aconteceria se o golpe continuado da extrema-direita de triunfasse 2023. Nunca é demais lembrar do Punhal que seria cravado no coração da democracia. Liderada por Jair Bolsonaro e articulada por generais de quatro estrelas, a operação previa não apenas um golpe institucional, mas a execução de líderes democráticos. Entre as vítimas planejadas estavam o presidente Lula, o vice Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes. O método escolhido — o envenenamento — revela a natureza criminosa do complô: instaurar uma ditadura militar sanguinária pela eliminação física de quem simbolizava a resistência democrática.
O eco de 1964
Não se trata de coincidência. Durante a ditadura militar, métodos semelhantes foram empregados contra opositores. Torturas letais, enforcamentos forjados, execuções disfarçadas e até intoxicações planejadas. Vladimir Herzog, Manoel Fiel Filho e Stuart Angel são apenas três exemplos de centenas de pessoas assassinadas pelo terror de Estado. O fio de continuidade é nítido. Os mesmos setores das Forças Armadas que sustentaram a repressão de 1964 reaparecem, em pleno século XXI, retomando a lógica hedionda de extermínio.
A democracia sob ataque
Ao planejar assassinatos seletivos, os golpistas da extrema-direita bolsonarista mostraram que seu objetivo não era apenas impedir que um governo democraticamente eleito assumisse. Era também o de ressuscitar os métodos assassinos da ditadura de 1964. O bolsonarismo não criou nada de novo. Apenas reciclou o velho projeto de terror militar que marcou o período mais sombrio da história brasileira. Se a Operação Punhal Verde-Amarelo — minuciosamente elaborada pela organização criminosa liderada por Bolsonaro — tivesse sido executada, o Brasil estaria hoje mergulhado novamente nos horrores de um regime autoritário e sangrento. Revelada pela Polícia Federal em 2023, no âmbito da Operação Contragolpe, a trama foi um plano de caráter terrorista e golpista, que seria executado pelos “Kids Pretos”, militares das Forças Especiais do Exército, com o objetivo de eliminar fisicamente líderes e os pilares da democracia brasileira.
O plano incluía o uso de arsenal de guerra
Os documentos apreendidos indicam que o presidente Lula e o vice Alckmin seriam envenenados, enquanto Alexandre de Moraes seria seguido, monitorado e provavelmente sequestrado, torturado e morto. O plano incluía o uso de arsenal de guerra — fuzis, metralhadoras e lança-granadas — além da criação de um “gabinete de crise” para assumir o poder após os assassinatos. O general da reserva Mário Fernandes admitiu ter idealizado a operação, e o general Braga Netto foi citado como responsável por financiar a ação, inclusive entregando dinheiro em espécie para viabilizar a logística. A operação não foi apenas uma tentativa de golpe. Foi uma ameaça concreta de reinstaurar o autoritarismo armado, com métodos que ecoam os porões da repressão enfrentados por Frei Tito e centenas de pessoas. A história se repete, e lembrar Tito e os torturados e assassinados de 1964 é também resistir à repetição dos horrores que eles enfrentaram.
A memória como resistência
A tentativa de golpe não foi apenas institucional. Foi física, violenta, planejada com precisão militar. E é justamente por isso que a homenagem à memória de Frei Tito se torna ainda mais urgente. Ele é o símbolo de que a liberdade não é dada: é conquistada até com a própria vida. Ao inscrever Frei Tito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, o Brasil reafirma que a democracia foi regada com sangue, fé e coragem. E que os fantasmas do autoritarismo nunca se dão por vencidos. Continuam rondando nossas instituições à procura de um momento para atacar de novo.
Reconhecer Tito e todos os que tombaram ou sobreviveram às torturas da ditadura que durou 21 anos é, portanto, afirmar que a democracia não se curva diante da violência. Floresce da memória e da luta de seus mártires.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.