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Maria Luiza Falcão Silva

PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England.

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Governança global, inovação tecnológica e a nova onda de protecionismo

O segundo mandato de Donald Trump ilustra os riscos de uma ordem internacional fragmentada

Bandeiras dos EUA e da China - 10/05/2025 (Foto: KEYSTONE/EDA/Martial Trezzini/ Via REUTERS)

São inúmeros os desafios contemporâneos da governança global em um cenário de aceleração tecnológica e crescente fragmentação do multilateralismo. A inovação em áreas como inteligência artificial, biotecnologia e energias renováveis é decisiva para moldar a economia mundial, mas enfrenta o obstáculo de uma nova onda protecionista, simbolizada pelo segundo mandato de Donald Trump nos Estados Unidos. 

O que entendemos por governança global

A expressão governança global refere-se ao conjunto de normas, instituições, processos e práticas que buscam regular questões de alcance internacional em um mundo caracterizado pela interdependência. Diferentemente de um “governo mundial”, que não existe, a governança global funciona por meio de redes de cooperação — formais e informais — entre Estados, organismos internacionais (como ONU, OMC, FMI), empresas transnacionais e atores da sociedade civil. Seu objetivo é coordenar ações em temas que ultrapassam fronteiras nacionais, como comércio, finanças, meio ambiente, segurança e, mais recentemente, ciência e tecnologia. Mas, a governança global está longe de ser neutra: reflete disputas de poder, interesses econômicos e assimetrias entre países centrais e periféricos, razão pela qual se tornou um dos grandes debates contemporâneos nas ciências sociais e econômicas.

A inovação tecnológica como força produtiva global

O século XXI trouxe uma transformação radical na base produtiva da economia internacional. A globalização da inovação tornou-se o novo motor do crescimento econômico, com setores como inteligência artificial, computação quântica, biomedicina, robótica e energias renováveis moldando o futuro da produção e do comércio.

A UNCTAD (2023) destaca que “tecnologias verdes podem gerar mercados trilionários até 2030, mas seu acesso desigual tende a reforçar a divisão internacional do trabalho.”

A China tem defendido a necessidade de um ecossistema aberto de inovação, no qual a integração em redes globais permita acelerar a transição para novas formas de desenvolvimento produtivo. Esse modelo contrasta com a tendência de fragmentação que se intensifica em várias economias avançadas.

O protecionismo de Trump e a crise do multilateralismo

O segundo mandato de Donald Trump (2025–) consolidou uma estratégia de confrontação comercial em escala planetária. Tarifas ampliadas contra China, Índia, Brasil, México, União Europeia e mais meio Mundo atingiram não apenas setores industriais, mas também cadeias digitais e fluxos de dados, configurando o que Paul Krugman chamou de uma “guerra cambial e tarifária de múltiplas frentes”. Para Dan Rodrik , outro economista reconhecido internacionalmente, argumenta que a crise atual revela que a globalização “hiperfinanceirizada” não gerou mecanismos de compensação social, abrindo espaço para políticas de fechamento.

Os efeitos dessa onda de protecionismo já se fazem sentir: aumento da inflação importada, ruptura das cadeias globais de valor e instabilidade nos fluxos de investimento estrangeiro direto. 

Donald Trump utilizou barreiras tecnológicas como instrumento geopolítico, restringindo exportações de semicondutores, equipamentos de telecomunicação e tecnologias verdes para países considerados rivais. Trata-se de um movimento que não apenas questiona a OMC como também enfraquece a cooperação científica e tecnológica internacional.

As falhas do modelo ocidental e a busca por alternativas

A onda protecionista reflete, também, os limites do modelo de modernização ocidental. J.Stiglitz, outro Nobel de Economia, ressalta que, após décadas de hegemonia neoliberal, as economias avançadas enfrentam desindustrialização, desigualdade crescente e instabilidade financeira. Esse esgotamento impulsiona políticas que priorizam ganhos imediatos às custas da cooperação multilateral.

Por outro lado, emergem iniciativas alternativas de governança, como os esforços do BRICS em ampliar mecanismos de financiamento autônomo e promover a cooperação tecnológica Sul-Sul. Ao enfatizar igualdade e benefícios compartilhados, esses arranjos podem representar uma resposta às falhas da ordem atual, ainda que enfrentem limitações de escala e coordenação.

Governança global em encruzilhada

A governança global encontra-se diante de dois caminhos. O primeiro, marcado pelo unilateralismo e pela fragmentação, aprofunda tensões estruturais e limita a difusão de inovações tecnológicas cruciais para a transição energética e digital. O segundo, baseado em abertura, cooperação e sustentabilidade, poderia revitalizar o multilateralismo e oferecer respostas conjuntas à crise climática e à reorganização produtiva.

A experiência recente evidencia que os mecanismos existentes — OMC, FMI, Banco Mundial — já não oferecem respostas adequadas. Como propõe Rodrik é preciso uma “reimaginação da globalização” que permita maior autonomia para políticas nacionais de desenvolvimento, mas que, ao mesmo tempo, preserve mecanismos de coordenação global em áreas estratégicas, como ciência, tecnologia e clima.

O que almejar

O segundo mandato de Donald Trump ilustra os riscos de uma ordem internacional fragmentada, na qual a inovação tecnológica é tratada como arma geopolítica e não como bem público global. Para evitar que a próxima década seja marcada por uma guerra econômica permanente, torna-se urgente reforçar instituições multilaterais, criar novas formas de governança e promover uma cooperação que vá além dos interesses imediatos de potências individuais.

A governança global do século XXI será definida pela capacidade de integrar inovação, sustentabilidade e equidade. O desafio consiste em transformar a inovação tecnológica em vetor de cooperação, e não em instrumento de exclusão. A ordem internacional precisa ser reconfigurada com base em igualdade, abertura e cooperação, sob risco de aprofundar cada vez mais as assimetrias entre centro e periferia.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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