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Luis Pellegrini

Luís Pellegrini é jornalista e editor da revista Oásis

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Gaza no divã: quando o conflito atravessa fronteiras e abala consciências

O conflito em Gaza, dois anos após os ataques de 7 de outubro, é um confronto que extrapola fronteiras geográficas e se instala no interior das pessoas

Rio de Janeiro (RJ), 07/07/2025 - Grupos ligados ao Comite de Solidariedade com a Luta do Povo Palestino fazem manifestação contra o genocídio do povo palestino na Faixa de Gaza e por uma Palestina livre, na Cinelândia, no centro da cidade (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

A guerra entre Israel e Hamas divide a segunda maior comunidade judaica do mundo - a americana - e rompe até o pacto sagrado da escuta terapêutica. E uma investigação da New York Magazine mostra como a guerra também está abalando a confiança entre analistas e pacientes.

Há guerras que se travam com mísseis e tanques. Outras, com palavras, silêncios e feridas invisíveis - mas nem por isso menos dolorosas. O conflito em Gaza, dois anos após os ataques de 7 de outubro, é um desses confrontos que extrapolam fronteiras geográficas e se instalam no interior das pessoas, das famílias e até dos consultórios. O que antes era um tema de política externa tornou-se um espelho que reflete culpas, dilemas morais e identidades em crise.

Segundo uma pesquisa do Washington Post, a comunidade judaica americana - a segunda maior do mundo - está irremediavelmente dividida: 48% desaprovam as ações militares de Israel; 46% as apoiam. Um racha quase perfeito, que não se limita ao campo das opiniões políticas. Ele expõe, com clareza dolorosa, o quanto a guerra em Gaza reabre feridas históricas e exige que cada indivíduo se posicione num terreno onde neutralidade parece impossível.

A responsabilidade pela guerra é atribuída a vários lados: 91% apontam o dedo para o Hamas, que para 94% dos entrevistados cometeu crimes de guerra. Mas, ao mesmo tempo, 86% reconhecem graves responsabilidades de Benjamin Netanyahu - sobretudo pela destruição e a matança indiscriminada de palestinos em Gaza -, e 61% acreditam que Israel também cometeu crimes de guerra. De fato, o premiê israelense é visto de forma negativa por 68% dos entrevistados.

E não para por aí: 61% criticam também o presidente americano Donald Trump, que mesmo assim aspira ao Prêmio Nobel da Paz - “não fez o suficiente”, dizem. Nada menos que 39% chegam a falar em genocídio; 51% não concordam. Já 59% acreditam na necessidade de uma solução de dois Estados. Há consenso apenas em um ponto: a relação entre judeus americanos e israelenses está em crise. A ruptura chega até à esfera pessoal: 36% admitem ter tido sérias brigas familiares sobre o tema.

Não surpreende, portanto, que as tensões tenham ultrapassado os limites da praça pública e invadido até os espaços mais íntimos: os lares e os consultórios de terapia. A New York Magazine relata um fenômeno inédito - a ruptura da confiança entre analistas e pacientes. O divã, lugar consagrado à escuta sem julgamento, torna-se campo minado quando as palavras “Israel” ou “Gaza” são pronunciadas.

Sionistas e antissionistas - ambos judeus, ambos marcados por uma herança de perseguição e exílio - agora se veem incapazes de dialogar até mesmo no ambiente que deveria acolher suas dores. Psicanalistas relatam casos de “divórcios terapêuticos”: pacientes que se despedem ao descobrir que seus terapeutas pensam diferente; profissionais que encerram atendimentos ao perceber que não partilham da mesma visão moral de seus analisandos. É o espelho fragmentado de uma comunidade que, diante da guerra, se olha e já não se reconhece.

Essa divisão atinge com força especial a cidade de Nova York, berço da psicanálise americana e território moldado pela diáspora judaica que fugiu do nazismo nos anos 1930 e 1940. Há, portanto, uma ironia trágica neste retorno do trauma: descendentes daqueles que foram perseguidos por serem judeus agora se veem presos em novas armadilhas identitárias, pressionados a escolher entre solidariedade e crítica, entre lealdade e ética.

O drama que se desenrola nos consultórios revela algo maior: a dificuldade, hoje, de sustentar o diálogo em sociedades polarizadas, em que cada palavra é um gesto político e cada silêncio, uma omissão. A guerra, ao contrário do que se imagina, não acontece apenas “lá fora”. Ela reverbera nos vínculos, atravessa as subjetividades e testa os alicerces da empatia.

Em tempos em que até o divã se torna trincheira, cabe perguntar: o que resta da escuta, da alteridade, da possibilidade de compreender o outro sem transformá-lo em inimigo? Quando até a terapia - espaço de acolhimento e elaboração - é contaminada pela lógica binária da guerra, é sinal de que algo profundo se rompeu não apenas entre povos, mas dentro de cada um de nós.

Mais do que números ou estatísticas, o que o retrato da comunidade judaica americana nos mostra é a extensão emocional e simbólica de um conflito que parece não ter fronteiras. No campo de batalha da consciência, todos estão convocados a um exercício árduo: o de sustentar a complexidade, resistir ao maniqueísmo e, sobretudo, reaprender a escutar.

O mundo - e talvez a paz - começa a ser reconstruído aí: no gesto silencioso de quem, diante do ódio, ainda é capaz de ouvir.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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