Lula na ONU: o poder de um discurso de estadista
Em um mundo fragmentado por guerras e desigualdades, o presidente brasileiro retoma a tradição do país como voz do diálogo e da justiça social
Em tempos de descrédito generalizado nas lideranças políticas e de fragmentação da ordem internacional, discursos capazes de transcender a retórica doméstica e propor caminhos para a humanidade tornaram-se raros. O pronunciamento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Assembleia-Geral das Nações Unidas reafirmou não apenas o papel histórico do Brasil como voz do Sul Global, mas também a capacidade de um líder de falar ao mundo sem subserviência nem isolamento — um equilíbrio que distingue o estadista do mero governante.
Lula pronunciou, diante de uma Assembleia-Geral quase lotada, um verdadeiro discurso de estadista. Sua fala deverá ficar gravada na história. Estou certo de que foi ela que levou Donald Trump, no último momento, a mudar radicalmente — pelo menos no que se infere a partir do seu próprio discurso, que se seguiu ao do presidente brasileiro — sua postura em relação a Lula. Trump ouviu todo o discurso de Lula nos bastidores da Assembleia, enquanto se preparava para entrar em cena. E certamente foi ele quem pediu para que, no caminho para o palco, cruzasse com o brasileiro que se retirava. Pode até ser que Trump não seja de todo avesso à “boa química” espontânea com as pessoas, mas o estopim dessa súbita empatia foi acendido ao ouvir as palavras e perceber o carisma do nosso presidente ao falar para o mundo.
Desde que Getúlio Vargas inaugurou, em 1947, a tradição de o Brasil abrir o debate anual da ONU, cada presidente imprimiu nesse púlpito a marca de seu tempo. Mas poucos souberam, como Lula, transformar a ocasião em plataforma global de ideias e valores. Seu discurso, neste contexto de guerra prolongada na Ucrânia, escalada do genocídio em Gaza e recrudescimento das desigualdades, recuperou o tom universalista que parecia perdido nas relações internacionais.
Ao enfatizar a necessidade de um mundo multipolar e solidário, Lula deu voz a uma crítica que ecoa entre países emergentes: a de que as estruturas de poder global, moldadas no pós-guerra, já não representam a realidade do século 21. Sua defesa da reforma do Conselho de Segurança da ONU, da inclusão dos pobres nas decisões econômicas e da urgência climática não é mera diplomacia protocolar — é um chamado à revisão das hierarquias internacionais que perpetuam exclusões e injustiças.
Mais do que recitar slogans, o presidente articulou um pensamento coerente sobre o papel do Brasil: mediador, construtor de pontes, defensor do diálogo e da soberania dos povos. Em um cenário polarizado, onde o belicismo substitui a diplomacia e o interesse nacional estreito se sobrepõe à cooperação, essa postura o coloca na linhagem dos líderes que compreendem a política como instrumento de convivência global.
É claro que o discurso, por si só, não transforma a realidade. Há distância entre a retórica da ONU e a prática do Itamaraty, entre a ambição de protagonismo e os limites da política externa. O desafio de Lula será transformar as palavras em ação: consolidar o Mercosul, fortalecer os BRICS, reafirmar o papel da América Latina como ator coeso e, sobretudo, fazer da luta contra a fome e a desigualdade o fio condutor da diplomacia brasileira.
Ainda assim, em um mundo dominado por líderes que reduzem a cena internacional a um palco de vaidades e confrontos, ver um presidente brasileiro defender o multilateralismo, o respeito ao meio ambiente e a dignidade humana é um sinal alentador. Foi um discurso que não se limitou a representar um país, mas a reafirmar um ideal: o de que o diálogo, a cooperação e a justiça social ainda podem orientar a política global.
Em Nova York, Lula falou ao mundo — e o mundo ouviu. Nesse gesto, reafirmou a vocação histórica do Brasil de ser ponte entre Norte e Sul, entre potências e nações emergentes, entre o realismo e a utopia. E lembrou, sobretudo, que o verdadeiro poder de um estadista reside menos na força que impõe e mais na palavra que inspira.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
