Fascismo na Austrália: crimes de ódio e racismo entram na moda
A Austrália tem fantasmas antigos
Há algo de perturbador no ar australiano. O país que se orgulhava de ser diverso, tolerante e multicultural está vendo o ódio sair das sombras. Grupos de extrema direita, organizados ou difusos, agora gritam mais alto. E o alvo? Praticamente todos que fogem do padrão branco, cristão e heterossexual.
Muçulmanos. Judeus. Povos indígenas. Pessoas LGBTQIA+. Quatro grupos diferentes, um mesmo inimigo simbólico: a diversidade.
“O fascismo é uma peste psíquica”, disse Carl Gustav Jung. O grande psicólogo se recusava a admitir o fascismo como uma verdadeira ideologia, preferindo defini-lo como uma psicose: “O fascismo é uma psicose que se apodera de formas ilusórias da política e que utiliza os instrumentos da política para realizar um sistema de poder baseado no sadismo e no masoquismo”.
Nos dias que correm, grupos formados por pessoas que, como diria Jung, sofrem dessa psicose estão pipocando em todo o mundo, particularmente em países do Ocidente, estimulados por líderes infectados pela mesma peste psíquica. A distante Austrália, infelizmente, não está imune à doença. A Internet chega lá, eliminando as barreiras de tempo e de espaço.
Vejam o que aconteceu há pouco, no dia 31 de agosto, em Camp Sovereignty, lugar consagrado e cemitério da comunidade aborígene em Naarm, designação aborígene para a cidade de Melbourne. O local é um centro cerimonial, de cura, de resistência e de verdade histórica para os habitantes originais da Austrália. É também um cemitério para restos repatriados de aborígenes de 38 nações (estes restos haviam sido conservados em museus e depois devolvidos). Foi originalmente estabelecido em 2006 como parte do movimento Black GST (Genocide, Sovereignty, Treaty) e reativado em 2024 com apoio de ativistas indígenas. Para os povos aborígenes, os restos mortais de seus antepassados devem permanecer em solo consagrado e ser cultuados com regularidade. Se isso não acontecer, as almas dos mortos correm o risco de permanecer perdidas por aí, em estado de sofrimento e desespero, assombrando e perturbando a existência dos vivos.
Pois bem: nesse mesmo dia, após participarem de uma marcha anti-imigração chamada “March for Australia” (como se a inteira população australiana, com exceção dos aborígenes, não fosse constituída por imigrantes e seus descendentes), um grupo de extremistas de extrema direita (incluindo membros do grupo neo-nazista National Socialist Network, liderado por Thomas Sewell) dirigiu-se ao acampamento aborígene. Aproximadamente 40-50 homens vestidos de preto, armados com paus, hastes de bandeiras (flagpoles) e outras armas improvisadas, invadiram o espaço do acampamento. Eles destruíram os altares, quiosques e barracas, pisotearam a bandeira aborígine, abusaram verbalmente dos presentes, atacaram fisicamente algumas pessoas - há relatos de mulheres e pessoas jovens sendo derrubadas, estapeadas, chutadas, agredidas. Quatro pessoas ficaram feridas; duas delas tiveram ferimentos mais graves na cabeça e foram hospitalizadas. A polícia foi chamada e investiga o incidente. Também se envolveu a unidade de contraterrorismo. Espera-se que como resultado não aconteça o de sempre em situações desse tipo de violência: ou seja, nada.
Camp Sovereignty é um dos locais mais sagrados da cultura tradicional aborígene. É descrito como um local de descanso para ancestrais indígenas, um lugar de cura espiritual, um símbolo de soberania aborígine e da própria identidade do antigo povo da Austrália. O ataque é visto não apenas como uma agressão física, mas uma violação simbólica muito profunda.
Thomas Sewell e outras duas pessoas foram formalmente acusadas de envolvimento, com acusações que incluem desordem violenta (violent disorder), affray (uma forma de tumulto/altercação pública), agressão por chute, entre outras.
O episódio é apenas mais um na extensa lista de crimes de ódio e racismo que têm acontecido na Austrália. Há evidências e denúncias indicando que a extrema-direita na Austrália tem cometido esses crimes e também o de divulgação de ideologias extremistas. Pesquisadores observam que esse tipo de ação se liga a um crescimento recente do extremismo de direita, com divulgação de conteúdo neo-nazista, discursos de ódio em redes sociais, uso de símbolos supremacistas, etc.
A Austrália tem fantasmas antigos. Durante décadas, a White Australia Policy ditou quem podia ou não pertencer à nação.A política acabou, mas a mentalidade ficou.Em tempos de crise - econômica, política ou cultural -, a velha nostalgia colonial reaparece. O discurso é conhecido: “estão tomando o nosso país”, “estão destruindo nossos valores”, “não são como nós”.
São mentiras convenientes. E, como toda mentira bem contada, encontra terreno fértil no medo.
Há quatro alvos principais desse ódio. Em todos eles, uma só lógica. Os extremistas australianos não escolhem apenas um inimigo. Querem todos:
Muçulmanos, vistos como invasores.
Judeus, acusados de conspirar.
Indígenas, tachados de privilegiados e primitivos.
LGBTQIA+, culpados por “destruir a família”.
São narrativas diferentes, mas com o mesmo DNA: a negação da diferença, assentada em mentiras que sustentam o ódio. A base é sempre a mesma: mitos travestidos de fatos.
“A Austrália está sendo invadida pelo Islã.” - Falso. Muçulmanos são apenas 3,2% da população.
“Judeus controlam a mídia e o dinheiro.” - Falso. Narrativa antissemita clássica, sem qualquer dado real.
“Os aborígenes já têm privilégios demais.” - Falso. Ainda vivem com indicadores sociais abaixo da média nacional.
“A ideologia de gênero destrói a família.” - Falso. Educação inclusiva salva vidas e reduz o bullying.
Essas ideias não informam. Servem apenas para dividir.
Os três pilares do extremismo
Como toda ideologia autoritária, o extremismo precisa de um tripé. O da extrema direita australiana é claro:
Medo da substituição - a fantasia de que “a Austrália branca” está sendo tomada;
Conspiração globalista - o mito de que elites judaicas ou progressistas controlam o mundo;
Aversão à diversidade - o impulso de apagar o diferente, o plural, o novo. Esses pilares sustentam o ressentimento. E o ressentimento, sabemos, é combustível político. Conhecemos isso muito bem, aqui no Brasil.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



