Em Gaza, a história se repete como tragédia humanitária
O plano de Trump para Gaza não pode ser recebido com otimismo pelos que desejam uma paz justa e duradoura na Palestina
Carol Proner e Helena Pontes
Na tarde da segunda-feira, dia 29 de setembro, pouco antes de uma coletiva de imprensa conjunta dos líderes estadunidense e israelense Donald Trump e Benjamin Netanyahu, a Casa Branca divulgou a íntegra de sua proposta para solucionar o conflito em Gaza.
O documento é estruturado em 22 tópicos, com disposições voltadas à liberação dos reféns capturados pelo Hamas nos ataques do 7 de outubro, à retomada do auxílio humanitário na Faixa de Gaza e à cessação das hostilidades na região. A proposta de cessar-fogo, nos mesmos moldes do armistício pactuado em janeiro de 2025, abrange a suspensão imediata das operações militares conduzidas pelas forças armadas israelenses, incluindo o bombardeio aéreo e de artilharia. Além disso, as estipulações de médio prazo do plano de paz preveem o direito de retorno das pessoas forçadamente deslocadas pelo conflito, assim como proscrevem a ocupação ou anexação de Gaza pelo Estado de Israel.
Sem dúvidas, a perspectiva de um cessar-fogo duradouro em Gaza deve ser recebida com satisfação por todos aqueles que prezam os direitos humanos, o direito humanitário e os princípios cogentes que regem as relações interestatais. Esses são valores inegociáveis, lamentavelmente aviltados pela campanha genocida do Estado de Israel contra o povo palestino, como já denunciado perante as principais cortes internacionais e pelos órgãos, organismos e agentes competentes no sistema de governança global.
Contudo, por mais que se reconheça a urgência de encerrar a insuportável carnificina que ocorre na Faixa de Gaza, há bons motivos para duvidar das promessas do plano de paz anunciado na segunda-feira, assim como da boa-fé de seus proponentes. Para começar, é revelador que a divulgação da proposta tenha ocorrido pouco antes do pronunciamento conjunto do premiê de Israel e do presidente dos Estados Unidos, sem que se oportunizasse no mesmo momento qualquer manifestação das lideranças palestinas.
A própria ocasião de anúncio do plano contribui para desmascarar a posição dos EUA, que, embora apresentem-se como mediadores neutros do conflito, são os principais cúmplices do genocídio cometido por Israel em Gaza. À parcialidade da proposta, soma-se ainda sua natureza coercitiva, explicitada por Trump na coletiva de imprensa ao afirmar que Netanyahu terá o apoio dos EUA para "fazer o que for preciso” para "destruir" o Hamas caso o grupo não concorde em aderir ao plano de paz. Dessa maneira, subtrai-se inteiramente o direito de autodeterminação do povo palestino, coagido a aceitar uma proposta formulada à sua revelia sob pena de sujeitar-se a uma destruição ainda mais completa do que a perpetrada desde outubro de 2023.
Não bastassem a ofensa à autodeterminação palestina e a conivência com os crimes de Estado israelenses, o plano de Trump é semelhantemente problemático no que diz respeito à proposta de um governo de transição para Gaza após a retirada do Hamas e das forças armadas de Israel. Nos termos do plano de paz, tal função deve ser exercida por um comitê “tecnocrata e apolítico” de palestinos e especialistas internacionais sob a supervisão de um “Conselho da Paz” chefiado pelo próprio presidente Trump. Esse arranjo, que por si só já evoca inquietações quanto à duração, eficácia e legado das ocupações estadunidenses, torna-se ainda mais perturbador diante da escolha do primeiro membro do “Conselho da Paz”: o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair.
De fato, a escolha de Blair para compor a liderança do governo interino da Faixa de Gaza é mais um motivo para indignação entre os que conservam alguma memória dos crimes internacionais cometidos pelos EUA e seus aliados no Oriente Médio no início deste século. Durante seu mandato como premiê do Reino Unido, Tony Blair foi o principal aliado da chamada Guerra ao Terror do governo Bush, que teve seu apoio na invasão ilegal do Iraque em 2003. A Guerra ao Terror, como se sabe, foi um fracasso em suas missões declaradas de promoção da segurança e propagação da democracia. Seu legado, ao contrário, é de destruição, desestabilização regional e violações em massa de direitos humanos, emblematizadas pela tortura de prisioneiros em sítios de detenção militar e pelo bombardeio indiscriminado de civis revelado em vazamentos do WikiLeaks.
Assim, tendo em mente o lamentável precedente histórico das intervenções dos EUA e aliados no Oriente Médio, sem falar na coincidência dos sujeitos envolvidos neste e naquele projetos de ocupação, o plano de Trump para Gaza não pode ser recebido com otimismo pelos que desejam uma paz justa e duradoura na Palestina. Se “a história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa”, na Faixa de Gaza o passado se reproduz como tragédia humanitária (em que pesem os contornos burlescos de alguns dos principais personagens).
* Helena Pontes é acadêmica de Direito da UFRJ e pesquisadora vinculada ao Instituto Joaquín Herrera Flores - América Latina
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.