Heba Ayyad avatar

Heba Ayyad

Jornalista internacional e escritora palestina-brasileira

172 artigos

HOME > blog

Conflitos inúteis à margem da voz de Hind Rajab

O impacto de A Voz de Hind Rajab expõe como a política ainda tenta limitar o reconhecimento internacional da causa palestina

Joaquin Phoenix, Amer Hlehel, Motaz Malhees, Saja Kilani, Clara Khoury, Kaouther Ben Hania e Rooney Mara posam durante uma sessão de fotos para o filme "A Voz de Hind Rajab", em competição, no 82º Festival de Cinema de Veneza, Veneza, Itália (Foto: REUTERS/Yara Nardi )

Não fosse o enorme número de vítimas em Gaza e as cenas apocalípticas de destruição em várias cidades da Faixa, diríamos que a própria Gaza representa esperança: a prova de que não perecerá e de que cem anos de injustiça não serão capazes de condená-la ao esquecimento.

Tudo ao redor continua a demonstrar, dia após dia, há dois anos, que é possível massacrar um povo e persegui-lo de um lado a outro, em meio ao completo desespero diante da ausência de qualquer ação séria para socorrer as vítimas, aquelas que ainda resistem entre as ruínas.

A revolta nos campi estadunidenses, que se espalhou para cidades europeias, provou que uma nova geração extraordinária está nascendo no mundo, recusando-se a aceitar a injustiça. E não apenas nas universidades: considere o grupo Ação Palestina, que persiste apesar de ter sido banido por uma ordem judicial injusta, enquanto britânicos desafiam a proibição sem se importar com prisões ou sentenças.

As reações são inúmeras, incluindo as de estrelas de Hollywood, que se desviaram de discursos enlatados e arranjos pré-estabelecidos em festivais para aparecer como símbolos e entoar slogans em solidariedade à Palestina. Onde situar tamanha magnificência? Não é também parte da esperança? E, em última instância, graças a Gaza?

A ovação de pé de 23 minutos após a exibição de A Voz de Hind Rajab no recente Festival de Cinema de Veneza foi igualmente um evento cinematográfico retumbante — um voto a favor da justiça. E, fundamentalmente, segundo as notícias que jorraram de Veneza, Gaza não esteve ausente das atividades do festival nem de seus arredores. Hind Rajab, a criança palestina morta com sua família em Gaza, esteve presente no debate cinematográfico antes mesmo de chegar ao tapete vermelho, desde a inclusão do filme na programação, senão desde o momento em que se soube que a talentosa diretora tunisiana Kaouther Ben Hania pretendia realizá-lo a partir da voz de Hind Rajab — como ouvimos naqueles dolorosos telefonemas ao Crescente Vermelho Palestino, sozinha em um carro bombardeado, cercada pelos corpos de sua família martirizada.

Protesto

O filme conquistou recentemente o Leão de Prata, o segundo maior prêmio do Festival de Veneza. Trata-se, sem dúvida, de uma conquista significativa para a obra, para a diretora e para Gaza. O Leão de Ouro foi concedido ao filme independente estadunidense de Jim Jarmusch, Pai, Mãe, Irmã, Irmão. Muitos não acreditaram que uma obra que recebera tamanha aclamação e cobertura midiática pudesse ser preterida em favor de outra. Imediatamente, irromperam protestos de críticos e entusiastas.

Um crítico de cinema de uma rede de televisão árabe não hesitou em afirmar que a postura política foi o que impediu A Voz de Hind Rajab de ganhar o Leão de Ouro, sustentando que “o viés político dos tomadores de decisão ocidentais está, pela milionésima vez, limitando a questão Palestina”.

Assim, embora consideremos uma conquista o fato de um filme sobre Gaza ter alcançado esse nível de recepção, controvérsia e cobertura jornalística, pode-se argumentar que a política impediu que ele fosse ainda mais longe. A própria diretora comentou, após o anúncio da premiação, que o vencedor Jim Jarmusch era seu modelo na produção cinematográfica. De fato, poucos dias antes, Jarmusch havia declarado sua decepção com a decisão da plataforma de streaming Mubi, que aceitou financiamento de um fundo de investimentos com vínculos com Israel. A empresa havia recebido US$ 100 milhões da Sequoia Capital, companhia estadunidense que inclui em seu portfólio a empresa de defesa israelense Kela. Esse vínculo levou Jarmusch e outros artistas a assinarem uma petição de protesto.

Lista de problemas

Por outro lado, o filme — e, em particular, sua diretora — foi alvo de um ataque vil, em artigo que se iniciava com a frase: “Se um filme oportunista tivesse uma pátria, A Voz de Hind Rajab seria sua capital.” Segundo a crítica, assinada por uma sobrevivente do genocídio armênio: “Após o estupro em Na Palma da Mão de um Demônio, o asilo sírio em O Homem que Vendeu as Costas e o jihadismo salafista em As Filhas de Olfa, a diretora tunisiana Kaouther Ben Hania, especialista em explorar trending topics, passa para um novo atoleiro: a agressão israelense a Gaza. Assim, ela segue navegando entre temas garantidos, aqueles que os grandes festivais acolhem de braços abertos e para os quais estendem o tapete vermelho.”

É direito de qualquer crítico desconstruir um filme e chegar à conclusão que desejar, mas aqui fica evidente que a prioridade foi desqualificar o resultado, o que soa mais como insulto. Uma conclusão completamente oposta à batalha heroica travada pela diretora tunisiana. Afinal, quem disse que a Palestina — e Gaza em particular — é causa garantida em festivais internacionais? Pessoas vêm sendo presas no Ocidente por exibirem meros símbolos que, até recentemente, passavam despercebidos. Basta lembrar das perseguições na Alemanha, da Berlinale (Festival de Cinema de Berlim), da escritora Adania Shibli, cuja homenagem foi cancelada na Feira do Livro de Frankfurt após a escalada da guerra em Gaza. Lembremos ainda das estrelas de Hollywood abandonadas por suas próprias produtoras em razão de posições públicas sobre a Palestina.

A lista de proibições e perseguições é longa — o que está oculto supera o que é visível. Nem mesmo o Tribunal Penal Internacional escapou das sanções dos EUA por acusar Israel de genocídio, nem das pressões e perseguições movidas pela inteligência israelense contra seu promotor, Karim Khan.

Portanto, quando pedem uma “lista” de questões que poderiam ser abordadas sem ofender a ordem vigente, até que se sintam satisfeitos, fica claro: trata-se de uma afirmação repugnante. Se não há nada de substancial a dizer contra um filme que obteve reconhecimento no Ocidente, então digam apenas que foi aceito porque se adequou às agendas ocidentais — como tantas vezes ouvimos. Ora por seu flerte com o feminismo, ora por sua proximidade com o Holocausto, e desta vez por causa de Gaza!

Aqui e agora

Embora o diretor aborde, a cada obra, um tema quente e atual (a Primavera Árabe, a Síria, o jihadismo, Gaza etc.), a função do criador é ser parte influente de uma discussão contemporânea que diz respeito a todos. Temas fora do presente sempre foram descritos como evasivos, e a fuga de obras criativas para o passado costuma ser vista como forma de desvalorização. Queremos Shakespeare porque ele é contemporâneo: os diretores se esforçam para extrair de sua obra algo que se cruze com o presente e sobre o qual todo o seu trabalho se apoie. Talvez a primeira pergunta crítica que um analista devesse fazer seja: Por que agora? O que este filme, ou aquela peça, significa aqui e agora?

O crítico não se limita à diretora tunisiana, mas também acusa todo o público ao descrever os 23 minutos que impressionaram a plateia e a mídia, dizendo: “Por trás dos aplausos estrondosos, dos olhos marejados, dos vestidos brilhantes e do apoio da sociedade liberal, reside uma questão premente: até que ponto a tragédia de Gaza pode ser explorada sem cair na armadilha da comercialização?” E responde: “O filme explora o desamparo do árabe e a necessidade do Ocidente de ‘lavar sua vergonha’ através da tela do cinema.”

A crítica só seria aceitável e passível de discussão se evitasse a acusação já pronta de oportunismo. Muitas perguntas poderiam ter sido levantadas: por que o filme não permaneceu apenas um documentário? O impacto da voz real da criança se reduz quando reutilizada em um filme narrativo? Que implicações trazem os diálogos e a construção dos personagens?

Todas essas questões pertencem ao âmbito da reflexão cinematográfica e, sem dúvida, enriquecem a experiência, tornando a voz de Hind Rajab — a criança martirizada de Gaza — ainda mais poderosa e significativa. O olhar do crítico, no entanto, talvez só se desloque quando vir Ben Hania acusada de antissemitismo e perseguida por calúnias aqui e ali; pode até ignorar quando ela for privada de financiamento por esta ou aquela instituição, pois frequentemente poderá se ver excluída sem que ninguém precise explicar.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

Carregando anúncios...