Como a ABIN virou uma arma contra o Brasil
'Espionagem ilegal, dossiês secretos, lawfare e censura formaram uma estrutura clandestina de controle político que segue ativa no coração do Estado'
Por Reynaldo Aragon e Sara Goes
O Relatório Final da Polícia Federal sobre o uso do sistema First Mile pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) é o raio-X de um projeto de guerra invisível travado dentro do Estado. Entre 2019 e 2021, mais de 60 mil operações de geolocalização foram realizadas sem ordem judicial, sem rastreabilidade e à margem da legalidade. Jornalistas, magistrados, promotores, servidores, ativistas e até membros da própria ABIN foram monitorados por uma engrenagem clandestina que transformou o Estado em arma contra seus próprios cidadãos. O que se revela não é um desvio isolado, mas um modelo de poder baseado na captura da informação, na repressão da dissidência e na destruição simbólica dos opositores.
A gravidade ultrapassa a violação da privacidade individual. O relatório evidencia a atuação de uma organização criminosa dentro do Estado, dividida em núcleos com funções definidas (operacional, político, informacional, de sabotagem e jurídico) que trabalhavam de forma coordenada para proteger o núcleo duro do bolsonarismo, eliminar resistências e fabricar uma realidade paralela. A ABIN foi desviada de sua função institucional para se tornar um aparelho de contrainteligência privado a serviço de uma facção.
A Polícia Federal identifica crimes de violação de sigilo, abuso de autoridade, prevaricação, obstrução de justiça e formação de quadrilha. Os envolvidos agiam sob uma lógica paralela, com objetivos políticos claros e autonomia em relação aos mecanismos formais de supervisão. O ex-diretor da ABIN, Alexandre Ramagem, é apontado como figura central desse esquema, articulando a conexão entre os setores técnicos e o comando político do governo, ao lado de servidores alocados em áreas estratégicas como o Centro de Inteligência Nacional (CIN), o Escritório de Projetos Especiais (EPE) e setores de tecnologia da informação.
A repressão interna era sistemática. Servidores experientes ou críticos foram silenciados por meio de transferências forçadas, assédio moral e processos disciplinares forjados, como o PAD 03/2019. Essa coerção com aparência formal revela uma das dimensões menos debatidas da guerra híbrida: o controle da inteligência por meio da intimidação de seus próprios agentes, instaurando uma cultura institucional de medo e isolamento.
O CIN, criado sob o argumento de “eficiência técnica”, concentrou atividades antes dispersas, dificultando o controle externo e institucionalizando a opacidade. Na prática, construiu-se uma “ABIN dentro da ABIN”, com outro código de conduta, orientado a proteger o presidente e atacar seus adversários.
A inteligência foi redesenhada sob a lógica da lealdade política: quem não serve, torna-se inimigo. E como em qualquer guerra, os inimigos devem ser vigiados, descredibilizados e neutralizados. O sistema First Mile e os dossiês que dele derivavam foram instrumentos dessa lógica. A ABIN passou a atuar em articulação com estruturas da SECOM, da Polícia Rodoviária Federal, do Gabinete do Presidente e de setores das Forças Armadas, revelando que a captura não se restringia a uma área isolada, mas integrava um projeto sistêmico.
Esse projeto não se limitava à espionagem. Operava nas camadas profundas da governança informacional: manipulação de dados, censura não oficial, fabricação de narrativas e silenciamento institucional. O objetivo não era proteger o país, mas reconfigurar a realidade para garantir a sobrevivência do bolsonarismo, mesmo à custa da legalidade.
O aparelhamento da ABIN foi deliberado e estruturante. Como reconhece o próprio relatório, não se tratou de uma falha pontual, mas de um pilar de um projeto autocrático em andamento, cujo legado persiste em setores do funcionalismo e da segurança institucional. Uma agência de inteligência capturada e subordinada a interesses políticos deixa de servir à soberania nacional e passa a ser o braço técnico da tirania.
O sistema First Mile e a técnica da violação silenciosa
No centro do esquema revelado pelo Relatório da Polícia Federal está o sistema First Mile, uma tecnologia de geolocalização em tempo real cuja simples existência na estrutura da ABIN já deveria ser suficiente para provocar escândalo. Mas o que o relatório revela é ainda mais grave: o sistema foi adquirido de forma disfarçada, instalado sob justificativas forjadas, operado sem controle legal e utilizado para espionagem massiva contra milhares de cidadãos brasileiros. O First Mile era mais que uma ferramenta, era o eixo técnico de uma doutrina clandestina de vigilância total, sustentada pela dissimulação.
Formalmente incorporado em 2018, durante a Intervenção Federal no Rio de Janeiro, o sistema foi apresentado como reforço à segurança pública. No entanto, como demonstram os documentos periciados pela PF, nenhum item do processo de aquisição – estudo técnico, termo de referência, parecer jurídico – descrevia a real natureza da tecnologia. Não foi descuido, mas ocultação deliberada por agentes com pleno domínio técnico e consciência dos riscos jurídicos envolvidos.
Na prática, o sistema permitia acesso direto à localização de dispositivos móveis conectados a redes celulares, sem ordem judicial, sem registros públicos e sem qualquer mediação institucional. As informações vinham da malha de antenas das operadoras, acessadas sem consentimento, configurando um modelo de espionagem institucionalizada.
A operação era estruturada para evitar rastreamento: não havia log de entradas, controle de IPs ou hierarquia clara de autorização. Os acessos eram pulverizados entre operadores fora do quadro técnico da ABIN, dificultando a responsabilização. A arquitetura da ferramenta foi pensada para garantir opacidade desde o início.
Mais do que coletar dados, o sistema permitia ações sofisticadas em tempo real: geração de mapas de calor, reconstrução de trajetos e montagem de perfis de movimentação. Com isso, tornou-se uma arma de controle territorial, usada para monitorar adversários políticos, ministros, jornalistas, parlamentares, servidores da Receita, membros do Ministério Público e opositores internos.
Um dos aspectos mais alarmantes descritos no relatório é que muitos dos dados acessados serviam de base para ações paralelas de constrangimento, intimidação ou chantagem indireta, através da produção de dossiês apócrifos, “vazamentos seletivos” e campanhas coordenadas nas redes sociais. Ou seja, o First Mile era a origem técnica de uma máquina de sabotagem simbólica e guerra informacional, conectada às engrenagens da desinformação, da perseguição política e do lawfare.A Polícia Federal também identificou ações deliberadas para apagar vestígios do uso do sistema após o início das investigações. Equipamentos foram formatados, senhas foram alteradas, registros apagados e servidores técnicos afastados. O objetivo era claro: interromper a cadeia de rastreabilidade, dificultar a produção de provas e blindar os operadores centrais. Essa conduta, classificada como obstrução de justiça, reforça que o uso do First Mile não era uma anomalia, mas parte de um projeto estruturado de vigilância ilegal com respaldo hierárquico e funcional.
O escândalo do First Mile não se limita à violação da privacidade individual, embora isso por si só já fosse gravíssimo. O que está em jogo é a violação da soberania informacional do povo brasileiro por um sistema operado por agentes públicos sob a lógica de guerra interna. Trata-se de um marco no uso de tecnologias digitais pelo Estado: não para proteger a democracia, mas para controlá-la silenciosamente, por meio da coleta invisível, da intimidação simbólica e da vigilância sem identificação.
Mais que uma ferramenta, o First Mile simboliza uma virada histórica: a informação tornou-se a principal arma política, e o Estado, seu campo de batalha.
A guerra interna: da inteligência ao terror informacional
A espionagem não era o objetivo final, mas o instrumento. O sistema First Mile e a estrutura clandestina revelada pela Polícia Federal não visavam apenas mapear deslocamentos, mas alimentar uma engrenagem voltada à produção de terror cognitivo no campo da opinião pública. Operavam sob a lógica da guerra híbrida, em que a informação deixa de ser recurso para se tornar arma.
O alvo não era o crime organizado, como se tentou alegar, mas as instituições democráticas e seus representantes. Ministros do STF, como Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, foram monitorados. Jornalistas, pesquisadores de desinformação, ativistas de direitos humanos e técnicos do TSE responsáveis pela segurança eleitoral foram vigiados. A intenção era instaurar um clima de paranoia institucional, inibindo a ação democrática e corroendo a confiança pública.
Esse padrão reflete a lógica das guerras cognitivas contemporâneas: não é necessário destruir fisicamente uma instituição, basta desmoralizá-la socialmente. O relatório aponta a intencionalidade política na escolha dos alvos, na manipulação dos dados e na disseminação das narrativas, que funcionavam como bombas simbólicas lançadas para desestabilizar o espaço público. O objetivo era semear descrença, ruído e insegurança epistêmica como método de governo.
A PF identificou o uso desses dados ilegais em campanhas eleitorais, sabotagens administrativas e tentativas de judicialização de adversários. Também revelou conexões entre a estrutura clandestina da ABIN e outros órgãos com atuação autoritária, como o Ministério da Justiça, a PRF e setores da Defesa. A informação como arma estava disseminada por todo o aparato estatal, com epicentro no poder executivo.
É preciso ir além da responsabilização individual. É necessário desmontar a arquitetura do medo e reconstruir o pacto democrático com base em uma nova ética da informação, centrada na transparência, na justiça e na dignidade republicana.
O Brasil precisa decidir se fará desse momento um marco ou mais um silêncio.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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