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Maria Luiza Falcão Silva

PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England.

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A urgência de um acordo trilateral na Ásia

A decisão está nas mãos de Pequim, Tóquio e Seul

Bandeiras de Japão, China e Coreia do Sul (Foto: Global Times)

As trajetórias de China, Japão e Coreia do Sul refletem três modelos de desenvolvimento distintos, mas complementares. A China construiu sua ascensão apoiada em forte planejamento estatal, em reformas graduais e em crescente capacidade tecnológica. O Japão, por sua vez, consolidou-se como potência após a reconstrução do pós-guerra, combinando disciplina industrial e inovação. Já a Coreia do Sul tornou-se símbolo de industrialização acelerada, com sua aposta em educação, exportações e conglomerados empresariais capazes de competir nas cadeias globais.

Essas três histórias, embora diversas, convergem em um ponto crucial: a necessidade de cooperação econômica regional. Em um contexto em que o protecionismo norte-americano e a fragmentação do comércio global ameaçam as cadeias produtivas, a ideia de um Acordo de Livre Comércio (ALC) trilateral entre China, Japão e Coreia do Sul assume valor estratégico, tanto para os países envolvidos quanto para a economia mundial em desordem.

A falha da globalização liderada pelos EUA

O artigo publicado no China Daily pelo Professor Chi Fulin, presidente do Instituto Chinês para Reforma e Desenvolvimento, intitulado “China, Japão e Coreia do Sul precisam urgentemente de uma ALC”, destaca que “ficar parado significa ficar para trás”, em referência à urgência de Pequim, Tóquio e Seul avançarem em suas negociações. Segundo ele, a globalização liderada pelos Estados Unidos fracassou, substituída por práticas unilaterais que violam princípios fundamentais da Organização Mundial do Comércio (OMC). O resultado é a volta à lei da selva nas relações comerciais, elevando os riscos de fragmentação.

A estratégia de Washington baseia-se em “negociações bilaterais com pressão unilateral”, colocando cada parceiro contra a parede e impedindo soluções multilaterais de longo prazo. Esse movimento tem efeitos não apenas econômicos, mas também geopolíticos. Força os países asiáticos a repensarem sua dependência em relação aos Estados Unidos (EUA) e a fortalecerem seus próprios mecanismos de integração.

Comércio de serviços como motor de crescimento

Um dos pontos mais relevantes da análise publicada no China Daily é a ênfase no comércio de serviços. Para além das disputas tradicionais no setor manufatureiro, a complementaridade entre China, Japão e Coreia do Sul em áreas como dados digitais, saúde, tecnologia financeira e manufatura inteligente oferece um novo campo de expansão.

A Coreia, por exemplo, demanda maior abertura do mercado de serviços chinês, em setores como artes cênicas e estética médica. A China, por sua vez, tem dado passos voluntários de abertura unilateral, o que pode criar espaço para uma agenda de cooperação mais profunda. Se as diferenças forem superadas, o comércio de serviços poderá se transformar no principal motor de crescimento de uma parceria trilateral.

Além disso, a integração nesse campo tem potencial de elevar a Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP) a um novo patamar — do estágio 1.0, baseado em escala, para uma versão 2.0, de regras de alto nível. Ao lado do comércio digital, dos direitos de propriedade intelectual e da política de concorrência, um ALC trilateral daria sustentação institucional a esse salto qualitativo.

O risco de uma “flor murcha de ontem”

O presidente do Instituto Chinês para Reforma e Desenvolvimento, ao escrever no China Daily, lembrou um episódio anterior: há dez anos, discutia-se a criação de uma área de livre comércio entre China e União Europeia, batizada de “Rota da Seda do Amanhã”. A advertência era clara: caso o acordo não fosse firmado rapidamente, tornar-se-ia uma “flor murcha de ontem”.

O tempo mostrou que a previsão estava correta. Hoje, a mesma ameaça paira sobre o Nordeste Asiático. Quanto mais o cenário regional se torna instável, maior é a necessidade de estreitar laços entre as três maiores economias da região. Um atraso excessivo nas negociações pode desperdiçar uma oportunidade histórica de transformar a cooperação em um novo motor da economia global.

Um mercado regional unificado

A dimensão desse projeto não é pequena. Em 2024, o PIB combinado de China, Japão e Coreia do Sul alcançou 24,6 trilhões de dólares, equivalente a 84% da economia norte-americana e cerca de 24% do total global. Um relatório da Asia Global Institute afirma que "as economias da China, Japão e Coreia do Sul contribuem com quase 80% do PIB total da RCEP".

Um ALC trilateral, portanto, não seria apenas um pacto comercial, mas a construção de um grande mercado regional unificado. O efeito seria duplo: dar maior resiliência às cadeias de suprimentos e reduzir a vulnerabilidade externa diante das pressões tarifárias e geopolíticas impostas por Washington.

A assinatura de um acordo desse porte representaria não apenas um gesto pragmático de defesa dos interesses de desenvolvimento, mas também uma decisão estratégica para moldar a ordem econômica mundial nas próximas décadas.

A Ásia redefinindo seu futuro

China, Japão e Coreia do Sul representam três histórias de sucesso econômico com desafios distintos, mas complementares. No momento em que o unilateralismo norte-americano mina o multilateralismo, a Ásia tem diante de si a chance de redefinir seu futuro.

O artigo do Professor Chi Fulin no China Daily alerta para o risco da paralisia: o que hoje é oportunidade pode amanhã ser apenas memória. Um Acordo de Livre Comércio trilateral não será apenas um pacto regional, mas sim um pilar para a reconstrução do multilateralismo em meio à fragmentação global.

A decisão está nas mãos de Pequim, Tóquio e Seul: transformar o potencial em realidade ou permitir que a história repita o destino da “flor murcha de ontem”.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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