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'Toda literatura é uma busca pelo sentido da vida', diz Andrei Gelassimov

Literatura e ciência se encontram no prêmio “História do Futuro”, criado pela Rosatom

Andrei Gelassimov (Foto: Ascom)

247 - O protagonista desta entrevista é um autor cuja obra ultrapassa os limites do presente e mergulha nas inquietações do amanhã. Ao longo da conversa, Andrei Gelassimov, um dos escritores russos contemporâneos mais premiados e também um dos mais lidos no Ocidente, revela-se muito além de um mestre da prosa psicológica.

A entrevista aconteceu às vésperas da reunião do júri do Prêmio Literário Internacional de Ficção Científica “História do Futuro”, criado pela corporação estatal russa de energia atômica, a Rosatom. Há um simbolismo evidente: a empresa responsável por projetar o futuro tecnológico da Rússia convoca escritores de diferentes países para refletir sobre esse mesmo futuro.

O prêmio funciona como uma ponte entre ciência e arte, entre a lógica da engenharia e a sensibilidade humanística. Seu valor não se restringe à literatura: ele impulsiona também a ciência e a tecnologia, já que a imaginação e a ousadia dos escritores muitas vezes orientam o rumo de descobertas futuras.

Gelassimov demonstra com brilhantismo que a literatura é uma das formas mais consistentes de falar sobre o que está por vir. Em suas obras, personagens habitam cenários que já se insinuam em nosso tempo, e suas escolhas, dilemas éticos e incertezas refletem as discussões essenciais sobre o futuro.

Esta entrevista é, portanto, uma oportunidade rara de compreender, pela voz do próprio autor, como nasce a história do amanhã.

Você é presidente do júri do Prêmio Literário Internacional de Ficção Científica – “História do Futuro”. Por que, na sua opinião, neste momento é tão importante destacar esse gênero?

É importante destacar todos os gêneros. Eu mesmo participei várias vezes como candidato e membro do júri em diversos prêmios literários russos e internacionais, mas a maioria deles se concentra na parte do processo editorial que não interessa muito ao grande público. A ficção científica, por sua vez, é popular entre os mais amplos círculos de leitores, o que significa que é capaz de atingir um número de mentes e corações que os representantes de outros gêneros nem sequer sonhariam. Ao mesmo tempo, em termos de capacidade de formular significados profundos e valores vitais, ela não fica atrás da literatura psicológica ou intelectual, por mais que os autores dos chamados livros “sérios” considerem isso sua prerrogativa. Há inúmeros exemplos disso ao longo do último século e meio.

Tendo em vista os desafios globais da atualidade, você acha que a ficção científica pode se tornar uma plataforma para o diálogo entre futurólogos, cientistas e escritores de diferentes países do mundo sobre o futuro que queremos construir?

Sem dúvida alguma. Isso é uma das prioridades do nosso prêmio. E o conceito-chave aqui é “o futuro que queremos”. Não “tememos”, não “advertimos”, não “tentamos evitar a todo custo”, mas, pelo contrário, desejamos que nossos netos e bisnetos vivam neste mundo proposto. Nosso prêmio está fundamentalmente voltado para a busca de autores e obras que se empenham em criar universos viáveis em um futuro distante. Focamos principalmente nos valores humanísticos e seu reflexo no progresso científico e tecnológico.

E que futuro você pessoalmente gostaria de construir? Como você gostaria que ele fosse?

Acredito que todos nós esperamos por uma sociedade em que as pessoas passem a ter uma consciência totalmente baseada em acordos, e todos os conflitos sejam resolvidos exclusivamente por advogados e diplomatas, e a força de acordos, incluindo os verbais, se torne inquebrantável. Sonho com o tempo em que as pessoas poderão confiar uns nos outros sem medo, quando a responsabilidade mútua se tornará não apenas um fator obrigatório, mas uma necessidade básica. No entanto, trata-se mais do desenvolvimento da humanidade no campo da autoconsciência do que na área da tecnologia.

Por favor, conte-me mais sobre o prêmio “História do Futuro”. Quais são as principais tarefas e critérios que você, como presidente do júri, estabelece para si mesmo?

Os principais critérios na avaliação dos trabalhos enviados para o concurso serão, para mim, antes de tudo, o talento, a capacidade de realizá-lo de forma convincente na forma literária escolhida, bem como a força e a originalidade das ideias de ficção científica propostas pelo autor. Um trabalho convincente com a composição e os personagens também será bastante pertinente. A capacidade de criar um conflito dramático marcante também será bem-vinda. E se os personagens se depararem com uma escolha insolúvel, isso garantirá um grande ponto positivo da minha parte.

Hoje a ficção científica pode inspirar e desenvolver o pensamento científico?

Provavelmente, vale a pena perguntar isso aos cientistas, pois eles são o ponto final do processo em questão. No entanto, a experiência do passado permite manter uma certa dose se otimismo a esse respeito. O precedente com Júlio Verne e suas dicas geniais para futuros engenheiros pode muito bem ser extrapolado. Afinal, um precedente é um precedente porque contém em si mesmo o germe de suas próprias repetições.

Como você avalia a ficção científica russa contemporânea no cenário mundial? Ela tem uma voz única?

Não conheço em detalhes o sucesso dos escritores de ficção científica russos contemporâneos no âmbito internacional, mas não tenho dúvidas quanto à singularidade de sua voz. A arte russa é, por natureza, vanguardista, portanto, se no momento os pilares da nossa ficção científica, representados por, digamos, Serguei Lukianenko, talvez estejam atrás em vendas dos autores populares estrangeiros, em termos de qualidade do texto e frescor das ideias, eles superam muitos de seus colegas da América e da Europa.

Como você vê o future do livro como formato? E como, na sua opinião a literatura deve mudar para continuar relevante para uma geração que cresceu no mundo do pensamento acelerado e das redes sociais?

A literatura, como se costuma dizer, não deve nada a ninguém. Ela tem como objetivo explorar o ser humano e o enigma de sua existência – como ele vive, por que, o que o motiva, por que sofre, com o que se alegra. E cada nova geração de leitores e escritores simplesmente corrige as formas literárias, ajustando-as a uma interface conveniente para si, cuja mudança não altera, em caso algum, a essência das questões acima mencionadas. Elas permanecem sempre inalteradas, pois, em grande parte, não existe resposta para elas. O livro, nesse processo, atua apenas como um recipiente, por isso não importa a forma que ele assumirá em cada século subsequente – áudio, vídeo, holograma ou um pedaço de nano-adesivo que você cola no antebraço durante a prática de esportes. Hamlet sempre perguntará a mesma coisa.

Em uma entrevista, você disse que “escrever é uma forma de existência”. Como é essa forma hoje, em 2025? O que ela lhe proporciona pessoalmente?

A forma continua a mesma. Observo atentamente tudo o que acontece ao meu redor, ouço outras pessoas, analiso suas histórias, tento entender pelo menos alguma coisa. Às vezes, tenho a sensação de que estou perto, que apenas uma camada fina e já quase transparente me separa da descoberta de como tudo funciona, mas passa um ou dois minutos e toda essa luz da revelação se apaga novamente. Então, sento-me para trabalhar, e o texto às vezes permite refletir esse lampejo, pelo menos em linhas gerais.

Em que projeto você está trabalhando agora? Ou talvez esteja preparando algo novo para ser lançado? Você pode nos dar uma prévia?

No momento, estou trabalhando principalmente na indústria cinematográfica. Estou terminando um grande projeto de roteiro, mas, devido aos termos do contrato com o produtor, só posso falar sobre ele em linhas gerais. A série será dedicada a uma das etapas mais importantes do desenvolvimento econômico do nosso país (nota de autor: refere-se à Rússia). O feito trabalhista realizado na época pela geração do meu pai determina em grande parte o nosso bem-estar geral hoje. Após o lançamento da série, pretendo começar a trabalhar em um livro baseado nesse roteiro.

Se você tivesse a oportunidade de enviar um de seus romances para um futuro distante, qual livro escolheria como seu cartão de visita para os descendentes e por quê?

Enviaria para o futuro meu romance “Deuses das Estepes”. No entanto, espero que ele chegue lá por conta própria. Acho que consegui captar o som complexo da alma russa neste livro. Normalmente, a arte da música consegue fazer isso melhor, mas aqui também consegui algo.

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