“Se Marx estivesse vivo, ele seria feminista”, diz Marcia Tiburi
Filósofa relaciona crise da esquerda, feminicídio e mercado do ódio. Assista à entrevista na TV 247
247 - A filósofa e escritora Marcia Tiburi afirmou, em entrevista ao programa Casa das Manas, da TV 247, que, “se Karl Marx hoje estivesse vivo, ele seria feminista”. A partir dessa provocação, ela defendeu que a esquerda só consegue responder ao avanço do fascismo e da violência contra as mulheres quando incorpora o feminismo como centro da análise social e da organização política.
Tiburi conectou a explosão recente de casos de feminicídio no Brasil à crise da esquerda tradicional e ao que chama de mercado do ódio. Para ela, o feminismo não é um apêndice da luta de classes, mas o terreno atual em que se decide o futuro da democracia, das instituições e da própria ideia de emancipação social.
“Se Marx hoje estivesse vivo, Marx seria feminista”
Ao falar sobre a relação entre marxismo e feminismo, Tiburi sustentou que a própria trajetória da esquerda levou à necessidade de incorporar a luta das mulheres como elemento estruturante da crítica ao capitalismo e ao patriarcado.
Ela resumiu essa inflexão ao dizer: “Se Marx estivesse vivo, ele seria feminista”. Segundo Tiburi, isso não significaria abandonar a crítica da exploração econômica, mas ampliar o foco a partir de elementos que o próprio Marx antecipou e que, mais tarde, foram aprofundados por teóricos e teóricas influenciados por sua obra.
A filósofa citou nomes como Leon Trotsky e Vladimir Lênin, lembrando que “não existe luta comunista sem a luta das mulheres, luta socialista sem a luta das mulheres”. Nessa leitura, o feminismo aparece como continuação e atualização de uma tradição crítica que precisa se confrontar com a forma contemporânea da dominação, em que gênero, raça e classe operam de maneira articulada.
Esquerda em crise e a figura do “esquerdomacho”
Na entrevista, Tiburi afirmou que passou por um processo de revisão de suas próprias avaliações sobre o campo progressista. Durante muito tempo, repetiu a ideia de que “a esquerda morreu” e que o feminismo emergia como algo posterior a esse esgotamento. Hoje, ela formula de outro modo: a esquerda não desapareceu, mas “a esquerda evoluiu e virou feminista”.
Essa mudança, argumenta, expõe uma crise específica: a dos homens que se identificam com a esquerda, mas rejeitam a centralidade da agenda das mulheres. Ela os chama de “esquerdomachos”, figuras que se dizem progressistas, mas reproduzem padrões de machismo na vida cotidiana, na política e nos debates públicos.
Segundo Tiburi, esses homens experimentam uma espécie de desestabilização subjetiva com o avanço do feminismo dentro da própria esquerda. Ao mesmo tempo em que se beneficiam de uma identidade “de esquerda”, resistem a revisar os próprios privilégios de gênero. Ela observa que, em espaços de mídia e militância, muitos deles se tornam motivo de constrangimento: homens que se dizem aliados, mas não aceitam que a luta das mulheres reconfigure prioridades, práticas e discursos.
Mulheres como classe social e interseccionalidade
Ao explicar por que considera inevitável um deslocamento feminista da esquerda, Tiburi retomou debates de autoras que articulam marxismo e feminismo. Ela afirmou: “as mulheres são uma classe social, as mulheres são trabalhadoras, elas são classe social. Como gênero, elas também são classe”.
A filósofa aproximou essa formulação da tese de Silvia Federici, em Calibã e a bruxa, segundo a qual o trabalho das mulheres, remunerado e não remunerado, é central na reprodução do sistema. Na entrevista, Tiburi lembrou que feministas negras, desde as décadas de 1950 e 1960, mostraram a necessidade de cruzar raça, classe e gênero de forma interseccional, pois as opressões funcionam em conjunto.
Ela destacou que uma mulher negra e pobre acumula pelo menos três camadas de vulnerabilidade – de classe, de raça e de gênero – e, por isso, está mais exposta à violência, inclusive ao feminicídio. No entanto, insistiu que a lógica de matança e controle atinge todas as mulheres, em diferentes camadas sociais e contextos, o que justifica tratá-las como uma classe política específica, atravessada por outras desigualdades.
Ginecropolítica e patriarcado como programação da morte
O eixo feminista da reflexão de Tiburi aparece também no conceito que ela desenvolve em seu novo livro, Ninfa morta, resultado de cerca de vinte anos de pesquisa e escrita. Na obra, ela propõe a categoria de “ginecropolítica” para descrever a programação da matança das mulheres ao longo da história política do mundo.
Na entrevista, a filósofa explicou que não se trata apenas da necropolítica voltada a trabalhadores ou pessoas negras, mas de uma lógica específica que organiza a morte das mulheres. Ela afirmou que “existe uma programação da matança das mulheres desde os primórdios da história política do mundo”, e que o patriarcado está na origem dessa engrenagem.
Segundo Tiburi, o capitalismo deriva do patriarcado, e o racismo deriva de um patriarcado capitalista que hierarquiza vidas e corpos. Ao falar sobre as estatísticas de feminicídio, lembrou que as mulheres negras são mais assassinadas porque concentram múltiplas formas de opressão. Ainda assim, insistiu que a ginecropolítica atinge mulheres de todas as classes, etnias e raças, o que reforça a tese de que o feminismo precisa ser entendido como chave de leitura da própria organização social.
Machismo, fascismo e o mercado do ódio
A filósofa também ligou o avanço da violência contra as mulheres ao crescimento de forças fascistas. Ela afirmou que, em seus livros e no ensaio que enviou recentemente para publicação na França, vem defendendo a tese da “continuidade entre o avanço do fascismo e o avanço do machismo”.
Na sua avaliação, o fascismo é um projeto construído majoritariamente por homens. Algumas mulheres se engajam nesse movimento, mas, segundo Tiburi, atuam de modo subordinado, buscando poder a partir de códigos feministas sequestrados e colocados a serviço de lideranças masculinas.
Essa relação entre fascismo e machismo se expressa, de forma direta, em um mercado do ódio operado por influenciadores, políticos e produtores de conteúdo que lucram com a misoginia. Tiburi mencionou casos de figuras que ficaram ricas oferecendo cursos e conteúdos voltados a homens que se organizam para odiar mulheres – grupos como incels, red pills e outros.
Ela descreveu esse fenômeno como “a monetização, a capitalização desse mercado de ódio contra as mulheres”, em que o prazer de odiar se converte em lucro financeiro e em compensação emocional para esses homens. Nesse cenário, o feminismo, para Tiburi, precisa enfrentar não só uma cultura violenta, mas um modelo de negócio baseado na violência de gênero.
Feminismo como guerrilha das ideias
Ao tratar do papel político do feminismo, Tiburi recorreu a uma metáfora que atravessa sua obra: a ideia de guerrilha conceitual. Em outro livro, O mundo em disputa, ela já havia falado em “guerrilha conceitual” para se referir à disputa de sentidos no campo das ideias.
Na entrevista, ligou esse conceito à tradição revolucionária, evocando Che Guevara: “o que é uma guerrilha? Uma guerrilha é uma autodefesa. Então, é disso que a gente está falando. [...] O feminismo é uma guerrilha. [...] O feminismo é uma guerrilha das ideias, gente. É só isso, é uma guerrilha conceitual, não é uma guerrilha armada”.
Com essa imagem, Tiburi procura marcar que o feminismo não é apenas uma pauta específica, mas uma forma de autodefesa coletiva diante de um sistema que naturaliza a violência contra as mulheres. A guerrilha, nesse caso, não envolve armas, mas conceitos, narrativas, disputas simbólicas e práticas políticas capazes de desestabilizar a ordem patriarcal.
Misoginia, leis e disputa institucional
Embora o foco central de sua análise seja a transformação da esquerda pela via feminista, Tiburi também abordou caminhos institucionais para enfrentar o ódio às mulheres. Ela defendeu a criminalização da misoginia, lembrando que a proposta de lei que trata do tema já passou pelo Senado e está parada na Câmara dos Deputados.
Segundo ela, hoje as mulheres cis não têm como se defender juridicamente da misoginia. Uma mulher negra pode acionar a lei contra o racismo, e uma mulher trans pode recorrer à legislação que tipifica a transfobia, mas a violência motivada especificamente pelo ódio às mulheres não encontra tipificação direta. “A misoginia é monetizada, é mercadoria que está aí no mercado do ódio, que é o patriarcado do ódio, e a gente não pode fazer nada”, resumiu.
Tiburi afirmou que o endurecimento de penas para crimes de misoginia e feminicídio pode ser um instrumento de dissuasão. Ela chegou a aventar uma hipótese polêmica, comparando com a Itália: “Vou lançar uma tese bem polêmica aqui, tá? Acho que o Brasil vai ter que fazer que nem na Itália, de lançar uma prisão perpétua. A gente vai ter que rever a nossa Constituição. Lançar uma prisão perpétua. Quem sabe os caras param de achar que eles podem matar as mulheres”.
Um novo Congresso e um governo de mulheres feministas
Na avaliação de Tiburi, a disputa institucional não se limita à legislação penal. Ela defende uma reconfiguração profunda da representação política: “em dois mil e vinte e seis está aí, a gente tem um congresso que legisla contra as mulheres, é evidente isso. Então a gente precisa trocar esse congresso da desgraça, esse congresso dos estupradores, dos feminicidas diretos ou indiretos”.
Daí surge a campanha que ela lançou recentemente, chamada “Um outro Congresso é possível”, cuja ideia central é ampliar a presença de mulheres feministas e de pessoas comprometidas com a defesa da vida das mulheres nas instituições. Tiburi ressalta que não basta eleger mais mulheres; é preciso eleger mulheres com agenda feminista e progressista.
Ela citou a liderança de Manuela D’Ávila, que deve disputar uma vaga ao Senado pelo Rio Grande do Sul, e mencionou iniciativas como o encontro Mulheres em Luta, em Porto Alegre. Para Tiburi, é necessário construir, no longo prazo, um governo das mulheres no Brasil, formado por mulheres feministas e progressistas.
“As mulheres feministas têm que voltar”, afirmou, referindo-se a políticas e lideranças que foram expulsas ou desestimuladas pela violência política de gênero. Nessa visão, a guinada feminista da esquerda passa tanto pela disputa conceitual quanto pela reorganização concreta do poder de Estado.
Um livro para “quem quer pensar”
Ao final da entrevista, Tiburi falou sobre Ninfa morta, publicado pela editora Planeta. O livro, segundo ela, foi pensado, repensado, pesquisado, escrito e reescrito ao longo de duas décadas. Tem cerca de trezentas páginas e uma bibliografia extensa, com a intenção de articular rigor teórico e linguagem acessível.
Ela contou que uma jovem pesquisadora descreveu a obra como um livro “que não é para quem quer o mais do mesmo, é um livro para quem quer pensar”, comentário que a deixou satisfeita. Tiburi explicou que procura “colocar a complexidade e ao mesmo tempo ir traduzindo para que as pessoas entendam”, sem abrir mão da dureza conceitual necessária para nomear processos históricos de violência.
Ao cunhar o termo ginecropolítica e relacioná-lo à ideia de que “as mulheres são uma classe social”, Tiburi reforça sua tese de que a esquerda, se quiser continuar a ser uma força transformadora, precisa reconhecer o feminismo como eixo da crítica ao patriarcado capitalista. Nesse quadro, a frase que deu título à entrevista e a esta matéria resume o deslocamento que ela propõe: “Se Marx hoje estivesse vivo, Marx seria feminista”. Assista:



