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“Quando um país transforma em presidente alguém que homenageia um torturador, ele se torna cúmplice da barbárie”

Em novo livro, Luís Eduardo Soares analisa a ascensão do bolsonarismo, denuncia cumplicidade social com o autoritarismo e alerta para ameaças à democracia

“Quando um país transforma em presidente alguém que homenageia um torturador, ele se torna cúmplice da barbárie” (Foto: ABR)

247 - Em entrevista à TV 247, conduzida por Regina Zappa e Mário Vitor, o antropólogo e cientista político Luís Eduardo Soares lançou um alerta contundente sobre as raízes históricas do bolsonarismo e os riscos da extrema direita no Brasil. A conversa ocorreu por ocasião do lançamento de seu novo livro, Escolha sua distopia ou pense pelo avesso, publicado pela editora Almedina.

O programa destacou o noticiário sobre os indiciamentos de Jair Bolsonaro e Eduardo Bolsonaro, ambos acusados de coação à Justiça, além da apreensão de passaporte e celular do pastor Silas Malafaia. O clima político, às vésperas do julgamento do ex-presidente marcado para setembro, foi descrito como de grande tensão, acentuado pela movimentação militar dos Estados Unidos sob o governo do atual presidente Donald Trump, que enviou destroyers à América Latina, reacendendo memórias das justificativas falsas que precederam a invasão do Iraque em 2003.

Nesse cenário, Luís Eduardo Soares apresentou as ideias centrais de seu livro, que reúne treze artigos e ensaios acompanhados de um depoimento. A obra mergulha nas raízes políticas, sociais e culturais que criaram as condições para a ascensão do bolsonarismo, enfatizando especialmente o papel do Rio de Janeiro. O autor recordou que a extrema direita não surgiu de forma repentina, mas encontra continuidade histórica no integralismo dos anos 1930, liderado por Plínio Salgado, considerado o maior movimento fascista fora da Alemanha. Durante a ditadura militar de 1964, expoentes do integralismo, como Filinto Müller, ocuparam posições centrais no regime, perpetuando essa herança autoritária.

Para Soares, o Rio de Janeiro se tornou o berço do bolsonarismo devido à degradação institucional, à expansão das milícias e à colonização da capital por práticas políticas forjadas na Baixada Fluminense, onde grupos armados e interesses econômicos locais moldaram uma cultura de violência e corrupção que, ao longo das décadas, contaminou o estado e se irradiou para o país. Ele relembrou ainda personagens como Tenório Cavalcanti, símbolo do mandonismo armado que se tornou parte do DNA político fluminense, abrindo espaço para a fusão entre poder econômico, aparato policial corrompido e milícias. Essa combinação, observou, criou o terreno fértil para que discursos autoritários e ultraconservadores se consolidassem.

Ao longo da entrevista, o antropólogo sublinhou que o bolsonarismo não apenas representou um projeto político, mas foi também a encarnação de uma “tempestade perfeita”: crise econômica, frustração das promessas democráticas, avanço do neopentecostalismo, legitimação da desigualdade pela teologia da prosperidade, além da ofensiva neoliberal encabeçada por Paulo Guedes e pelo capital financeiro. O neofascismo encontrou nesse contexto sua forma de se apresentar como solução, legitimando interesses que nunca conseguiram vencer pelo voto direto em períodos anteriores.

Soares fez críticas severas à naturalização de episódios simbólicos da degradação democrática. Ele citou o voto de Jair Bolsonaro no impeachment de Dilma Rousseff, quando exaltou o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, como um momento que deveria ter sido considerado inaceitável. “Quando um país transforma em presidente alguém capaz de homenagear um torturador, ele se torna cúmplice da barbárie”, afirmou. Para ele, a ascensão de Bolsonaro só foi possível porque parte da sociedade brasileira aceitou normalizar o inominável, tratando a exaltação da tortura como uma posição política legítima, quando na verdade representava uma ruptura ética com os princípios mais básicos da humanidade.

O autor também refletiu sobre as contradições que marcam a relação entre o discurso bolsonarista e a realidade das milícias. Ao mesmo tempo em que a extrema direita sustentava a máxima de que “bandido bom é bandido morto”, mantinha vínculos com grupos criminosos organizados. Essa contradição, segundo Soares, não é um acidente, mas uma expressão do cinismo histórico brasileiro, forjado desde a escravidão, quando a desigualdade se estruturava como divisão ontológica entre senhores e escravos, perpetuando até hoje um racismo estrutural indissociável da vida social.

Ao final da entrevista, Soares reforçou que não se trata apenas de polarização política, mas da necessidade de enfrentar o “inaceitável”, compreendendo o bolsonarismo como sintoma de uma sociedade que, em suas contradições, abriu espaço para a legitimação do autoritarismo.

“Não podemos tratar isso como mera disputa entre posições ideológicas. O que está em jogo é a própria sobrevivência da democracia”, concluiu. Assista: 

 

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