Oradora negra afirma que deixou o IAB por criticar o genocídio contra a Faixa de Gaza
Soraia Mendes apontou falta de registro administrativo para a destituição. O IAB rebateu e afirmou que a jurista alegou outros compromissos profissionais
247 - Primeira oradora negra em mais de 182 anos de existência do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), Soraia Mendes foi destituída e acusou a instituição de exonerá-la por causa de suas críticas ao genocídio cometido por Israel na Faixa de Gaza, onde, segundo o Ministério da Saúde local, mais de 68 mil palestinos morreram desde outubro de 2023.
De acordo com a jurista, as críticas a Israel marcaram o início de seu "apagamento institucional". "Meus discursos e imagens desapareceram do site e das redes do IAB. Fui cortada das divulgações e percebi que não havia mais espaço para uma voz crítica, especialmente de uma mulher negra", afirmou. O relato foi publicado nesta sexta-feira (31) pela coluna de Mônica Bergamo.
Doutora em direito pela Universidade de Brasília (UNB) e pós-doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirmou que a decisão do IAB foi anunciada de forma unilateral, sem registro administrativo e sem que tivesse apresentado renúncia de forma oficial. Em áudio de 14 minutos enviado à presidente do IAB, Rita Cortez, Soraia Mendes expressou o desconforto com o ambiente interno e disse que "não se sente à vontade para continuar como oradora do IAB".
"Eu não quero ser o rosto nem a voz de algo que me faça silenciar diante de atrocidades. Não me sinto confortável em permanecer numa diretoria que, pelo silêncio, é conivente com o genocídio", afirmou a advogada, acrescentando que a mensagem não configura um pedido formal de renúncia. "Foi um desabafo, não um ato administrativo. No mesmo dia, protocolei documento reafirmando meu compromisso com as funções do cargo", disse.
A presidente do IAB, Rita Cortez, disse que Soraia anunciou a própria renúncia, "recebida e publicizada" internamente, e que o cargo foi oferecido ao advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira. O regimento interno do IAB, disponível no site da instituição, não mencionou o procedimento para renúncia ou destituição.
"A dra. Soraya [sic] foi por mim convidada para ser oradora, e nas duas únicas manifestações como tal foi apresentada, com destaque, como uma mulher negra. Em sua concepção, o posicionamento sobre o conflito em Gaza confrontava com pensamento político/jurídico do IAB, apesar de não haver qualquer posicionamento formal e específico da instituição (e não da presidência) sobre a dramática situação", escreveu Cortez.
"A reconsideração da renúncia feita posteriormente não foi recebida, diante da incompatibilidade declarada e porque o dr. Mariz já havia sido convidado. A diretoria do IAB concordou com a posição adotada pela presidência por unanimidade".
Confira a íntegra da nota emitida pelo IAB:
O cargo de orador do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), além de sua relevância histórica, tem sido tradicionalmente ocupado por membros de reconhecida trajetória institucional. Em alinhamento com a política de inclusão social adotada por esta gestão, foi feito o convite a uma mulher que se autodeclara negra, rompendo-se com a tradição da antiguidade no exercício da função.
Após duas participações oficiais como oradora, a convidada comunicou, por meio eletrônico, SUA RENÚNCIA AO CARGO, em seguida divulgando-a publicamente. A decisão foi motivada, segundo a própria, pelo acúmulo de compromissos similares, por desconfortos políticos no âmbito do IAB, pela percepção de desvalorização intelectual e pela alegada falta de visibilidade interna.
A RENÚNCIA foi formalmente acolhida pela Presidência e referendada pela Diretoria Plena, em reunião convocada especificamente para este fim.
Posteriormente, diante da substituição por um jurista de reconhecida trajetória e antigo confrade da instituição, foi encaminhada uma nova comunicação de REVISÃO DA RENÚNCIA, fundamentada numa fictícia alegação de ausência de solenidade formal no ato. Desde então, tem sido divulgada, de forma inverídica e lamentável, a narrativa de destituição do cargo da oradora por parte da Presidência.
O IAB, entidade com 182 anos de existência, amplamente reconhecida por sua atuação na promoção de debates jurídicos de vanguarda e de interesse público, mantém firme compromisso com a defesa das liberdades democráticas, dos direitos humanos e da igualdade social. Ao longo de sua história, tem integrado em sua estrutura diversos profissionais negros, reafirmando seu compromisso com a inclusão e a diversidade.
Diante das informações veiculadas, inclusive na imprensa, que buscam desqualificar o trabalho institucional coletivo que vem sendo realizado, os abaixo relacionados, membros de órgãos gestores do IAB, consideram necessário esclarecer os fatos e reafirmar sua posição.
Por fim, a ex-oradora manifestou publicamente sua intenção de concorrer à vaga de ministra do Supremo Tribunal Federal, com base na representatividade de mulheres negras. Embora respeitemos as aspirações individuais, lamentamos o uso de pautas identitárias como instrumento de promoção pessoal, conduta que se distancia dos valores institucionais que norteiam o IAB e que pode comprometer o avanço das agendas antirracistas e de equidade de gênero, com as quais esta Casa se mantém comprometida.
Estatísticas
O governo de Israel descumpriu o acordo de cessar-fogo firmado na segunda-feira (13), resultando em um novo ciclo de violência que deixou quase 100 mortos e aproximadamente 230 feridos, segundo dados divulgados pelo Gaza Media Office e citados pela rede Al Jazeera.
Informações do Ministério da Saúde da Faixa de Gaza indicam que, desde outubro de 2023, mais de 68 mil palestinos perderam a vida em consequência das ofensivas israelenses. O mesmo órgão relatou que os ataques provocaram o deslocamento de mais de 1,9 milhão de pessoas — o equivalente a cerca de 90% da população local.
Em 22 de agosto, a Organização das Nações Unidas (ONU) alertou que mais de meio milhão de habitantes de Gaza enfrentam fome severa, conforme a Classificação Integrada de Segurança Alimentar. Foi a primeira vez que a ONU reconheceu oficialmente a ocorrência de fome no Oriente Médio, e as projeções indicam agravamento da crise.
Na ocasião, a organização comentou: “O relatório de segurança alimentar, apoiado pela ONU, descreve um cenário de inanição generalizada, sofrimento extremo e mortes evitáveis”, destacando ainda que o quadro representa “uma falha da própria humanidade”.
O acordo de cessar-fogo
O cessar-fogo firmado no dia 13 deste mês contou com a participação do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, além de representantes do Egito, Catar e Turquia. Autoridades israelenses informaram que, no mesmo dia, foram libertados 250 palestinos que cumpriam longas penas ou prisão perpétua, além de 1.700 detidos sem acusação formal. Desses, 154 foram enviados ao Egito, segundo a Sociedade de Prisioneiros Palestinos.
O documento prevê a retirada parcial das tropas israelenses da Faixa de Gaza. Em troca, o Hamas deverá libertar todos os israelenses mantidos em cativeiro desde outubro de 2023, enquanto Israel se comprometeu a soltar cerca de 2 mil palestinos, incluindo mulheres, crianças e detentos há décadas.
Também está prevista a abertura de corredores humanitários para o envio de alimentos, medicamentos e combustível. A implementação das medidas será acompanhada por uma coalizão internacional composta por Estados Unidos, Egito, Catar, Turquia e pela ONU.
Denúncias na Justiça Internacional
Em dezembro de 2023, a África do Sul entrou com uma ação na Corte Internacional de Justiça (CIJ) acusando Israel de violar a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. O pedido incluía medidas urgentes contra autoridades israelenses. Em resposta, Israel afirmou que suas ações tinham caráter defensivo e rejeitou as acusações. O Brasil manifestou apoio à iniciativa sul-africana.
No mês seguinte, em janeiro de 2024, a CIJ ordenou que Israel adotasse medidas para prevenir atos de genocídio, punisse indivíduos que incitassem à destruição do povo palestino e garantisse o acesso de ajuda humanitária a Gaza. O tribunal, contudo, não aprovou a solicitação da África do Sul para suspender as operações militares. Diversos países, entre eles o Brasil, expressaram apoio ao processo.
Em novembro de 2024, a Corte emitiu mandados de prisão contra o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, o então ministro da Defesa Yoav Gallant e líderes do Hamas, sob acusações de crimes de guerra. Tanto autoridades israelenses quanto representantes do Hamas rejeitaram as acusações.
