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Mário Maurici

Jornalista, ex-vereador e ex-prefeito de Franco da Rocha, ex-vice-presidente da EBC e ex-presidente da Ceagesp. Atualmente, deputado estadual e primeiro secretário da Assembleia Legislativa de São Paulo.

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Uma viagem para desconstruir narrativas

Apesar de tantas dificuldades, a Coreia do Norte, aparentemente, está indo bem

Bandeira da Coreia do Norte, na embaixada em Pequim, na China (Foto: REUTERS/Kim Kyung-Hoon)

Acabo de voltar de uma das viagens mais interessantes que já fiz. O que encontrei foi diferente de tudo o que imaginava. Conheci uma cidade moderna, com prédios novos e imponentes, ruas largas, arborizadas e extremamente limpas. Poucos carros nas ruas e uma rede de transporte público bem distribuída, com linhas de metrô e ônibus elétricos. Não há pessoas em situação de rua, nem crianças fora da escola. A criminalidade é zero, assim como o desemprego. 

A essa altura, você deve estar curioso para saber onde é esse lugar, quase utópico. Prepare-se, porque a resposta pode ser surpreendente. Eu estou falando da Coreia do Norte. Sim, passei três dias na capital Pyongyang, participando das comemorações do 80º aniversário do Partido do Trabalho da Coreia. Pouco tempo, é verdade, mas, acredite, os dias foram de programação intensa e ofereceram uma perspectiva de como eles se organizam política e socialmente.

A Coreia do Norte é um país socialista e tem sua economia totalmente planejada pelo governo. Isso significa que é o governo que decide o que produzir e quando produzir. As pessoas são livres para escolherem suas carreiras, mas é o governo quem acomoda cada qual em seu trabalho. Cada cidadão tem uma missão a cumprir, e o faz com disciplina. O governo também garante moradia às pessoas, preferencialmente perto do local de trabalho para reduzir os deslocamentos.

Menores de 16 anos não podem trabalhar, devem se dedicar aos estudos. Homens se aposentam aos 60 anos e mulheres aos 55 anos. A taxa de analfabetismo é zero. O transporte público é barato. Há estímulo à cultura e ao lazer. Não há pessoas muito ricas, assim como não também não há quem seja muito pobre. É provável que a distribuição equilibrada das riquezas contribua para o controle da violência, mas é só um palpite. 

Não há favelas. Conforme se avança do centro para as periferias da cidade, não se vê a degradação das moradias. Elas seguem um mesmo padrão, sem contrastes gritantes e, de repente, sem aviso prévio, cedem lugar a campos de agricultura a perder de vista. Eu conheci de perto uma dessas fazendas, o Complexo de Estufas de Kangdong, com 100 alqueires de produção hidropônica de hortifruti.  

Não serei inocente em dizer que não há problemas na Coreia do Norte. Eles existem, como em qualquer lugar. E, provavelmente, muitos passaram despercebidos a essa minha breve viagem. Os aspectos desta organização político-social, positivos ou negativos, seguem uma lógica própria, difícil de compreendermos plenamente com a nossa visão ocidental, e são reflexos da complexa trajetória histórica do país. 

A Coreia do Norte enfrentou décadas de ocupação colonial, teve seu território dividido e, até hoje, sofre com a ameaça constante de super potências estrangeiras, em especial dos Estados Unidos. São feridas difíceis de cicatrizar, que deixam marcas profundas em qualquer sociedade e forjam valores.

Chamou-me a atenção positivamente a filosofia juche, a busca constante pela não dependência e a defesa incondicional da soberania. Assim como gera estranhamento o songbun, que determina a posição que cada norte-coreano ocupa na sociedade com base na lealdade histórica de suas famílias durante a resistência à ocupação japonesa. É algo que para eles faz sentido. Para mim, nem tanto.

Mas é injusto julgar esse modo de vida sem antes conhecer a história da Coreia do Norte. Quando ainda havia uma só Coreia, o país viveu décadas sob o domínio japonês. Uma ocupação asfixiante, com apoderamento de terras, indústrias e riquezas naturais, que terminou com a derrota do Japão na 2ª Grande Guerra Mundial, em 1945.  

O que parecia ser a libertação coreana, logo se converteu em um novo pesadelo. Após lançarem as bombas atômicas que devastaram as cidades de Hiroshima e Nagasaki, no Japão, os Estados Unidos invadiram o Sul da Coreia, um território estratégico pela proximidade com a China e a então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, que polarizariam a Guerra Fria com os norte-americanos. 

Mais uma vez, os coreanos sofreram sob o domínio de uma nação estrangeira, com a prisão em massa daqueles que organizavam a independência do país com o fim da ocupação japonesa. As tensões se elevaram e culminaram na Guerra da Coreia. Para defender o território recém-ocupado, os Estados Unidos dizimaram cerca de 20% da população do país.

Após três anos de conflitos, os coreanos venceram novamente. Em 1953, os Estados Unidos assinaram um armistício. O documento, no entanto, nunca evoluiu para um tratado de paz, mantendo um clima de tensão permanente. 

O fim da URSS no início dos anos 1990 representou mais um duro golpe para a Coreia do Norte, com a intensificação da pressão dos Estados Unidos sobre o país, que até hoje sofre com a imposição de sanções econômicas que restringem seus parceiros comerciais. 

Apesar de tantas dificuldades, a Coreia do Norte, aparentemente, está indo bem. Em 2024, o país cresceu 3,7%, segundo projeção do Banco Central da Coreia do Sul (os norte-coreanos não divulgam seus dados econômicos). E com as ameaças que o país enfrenta, como questionar os investimentos militares e o seu arsenal bélico?

A verdade é que fomos bombardeados durante décadas com um só lado da história. Com a máquina de propaganda estadunidense, aliada ao isolacionismo norte-coreano, acabamos privados de um contexto histórico mais amplo, honesto e ponderado. 

Temos a tendência de simplificar conflitos reais a histórias de heróis e vilões, ignorando as inúmeras camadas que envolvem trajetórias com o nível de complexidade da Coreia do Norte, assim como as ações e reações de cada lado. São barreiras que, eu mesmo, só superei quando coloquei meus pés naquele país e pude ver tudo o que há por trás do que já nos contaram. 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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