Um processo kafkiano – o processo contra Boaventura de Sousa Santos
Cancelado sem julgamento, Boaventura é alvo de linchamento midiático que expõe a decadência universitária e a máquina neoliberal
Sempre que leio um texto de Boaventura de Sousa Santos, fico extremamente incomodado e interiormente muito agitado, porque sinto a crueldade da situação que lhe foi criada: cancelado em toda a extensão da sua carreira académica e à escala planetária. Curiosamente, no caso português, isso acontece num momento em que a Universidade está a cair a pique, quer do ponto de vista científico, quer do ponto de vista moral, isto é, o desrespeito pelo espírito de missão da Universidade, o de criar a massa crítica de cidadãos e técnicos de primeira classe de que o país urgentemente precisa. Por contraponto, ou mesmo para abafar a crise em que a Universidade vive atolada, ei-la que, altaneira, julga na praça pública e assassina, consequentemente, um dos seus valores mais altos que nela trabalhava desde as últimas décadas. Mas penso que não se trata apenas de uma questão de ordem moral, no contexto acima, ou de ordem científica; trata-se de um problema de ordem política também, em que a mídia foi peça central.
Nesta pequena nota, prefiro apoiar-me num dos meus autores preferidos, Piero Sraffa, um autor que nada tem a ver com isto, é certo, mas que nos dá uma sugestão bem curiosa.
Parafraseando Sraffa, diremos:
Pode-se imaginar um homem vindo da Lua observando a sociedade, que enxerga todo o processo circular de produção e de troca como um todo, assim como todo o processo de criação e distribuição de rendimento, sem fazer parte dele ou ser influenciado pelas suas contingências internas.
Como assinalam Heinz D. Kurz e Neri Salvadori em On the “Photograph” Interpretation of Piero Sraffa’s Production Equations: A View from the Sraffa Archive (original aqui):
Primeiro, caracterizar a situação em consideração com referência ao homem da Lua remete a um evento ocorrido no Parlamento britânico por ocasião de um debate sobre a crise agrícola em 30 de maio de 1820. No decorrer desse debate, Ricardo teria dito que “porque consultava os interesses de toda a comunidade, ele opor-se-ia às leis sobre o trigo” (Ricardo, Obras V: 49). Henry Brougham, o parlamentar por Winchelsea, que apoiava a moção dos agricultores a favor de medidas protecionistas adicionais, qualificou o argumento de Ricardo como se viesse de um homem que “tivesse caído de outro planeta” e vivesse num “mundo utópico” (Ricardo, Obras V: 56). A referência ao “homem da Lua” pode, assim, ser vista como uma metáfora concebida para indicar a necessidade de adotar um ponto de vista distanciado, de ver as coisas como elas são, e não através dos vidros coloridos de algum grupo de interesse particular.
A citação de Sraffa neste contexto é intencional pelo que nos diz quanto ao caminho a seguir na nossa análise sobre o processo contra Boaventura de Sousa Santos e, sobretudo, pelo que simbolicamente tem de paralelo com a situação de Boaventura. Sraffa vivia exilado na Grã-Bretanha, era comunista, era judeu e, intelectualmente, uma referência de primeira importância. Boaventura vive exilado em Quintela, é uma figura sólida de esquerda; a sua obra, uma referência mundial na área da Sociologia, está a ser cancelada à escala mundial, enquanto a obra de Sraffa deveria ser queimada, na lógica dos neoliberais dominantes na época. Paralelamente, um e outro, Sraffa e Boaventura, estão relativamente isolados no meio académico, onde a obra científica de cada um deles é expressão condigna do que podemos considerar como Missão da Universidade. Os paralelos são evidentes.
A obra de Sraffa era tão importante como contribuição para a economia e contra os neoliberais, os economistas do pensamento único, que um seu colega de Universidade, economista inglês de primeira linha e um dos principais representantes ingleses nas negociações de Bretton Woods e muito próximo de Keynes, a quem Sraffa deu o privilégio de ler o texto ainda não impresso da sua obra Produção de Mercadorias Através de Mercadorias, lhe terá dito: esta obra deveria ser queimada! Suspeita-se que tenha sido Denis Robertson.
Sobre esta questão, soube-se pelo espólio deixado por Sraffa que o título da obra Produção de Mercadorias Através de Mercadorias esteve para ser Produção de Mercadorias Através de Mercadorias e do Trabalho, mas isto claramente remetia para Ricardo e Marx, o que na época era muito perigoso.
Um especialista em Sraffa, Giorgio Gattei, dá uma explicação para que não tenha sido este o título que veio a público e esta explicação remete-nos para o elevado clima de tensão política e social em que viveu Sraffa. Vejamo-la então:
“Contudo, não se pode culpá-lo por isso, uma vez que o tempo em que viveu tinha sido um tempo de tiranias (nazi-fascismo, estalinismo, Macarthismo – a não esquecer), o último dos quais produziu o escândalo na Grã-Bretanha em 1951 daqueles ‘espiões de Cambridge’ que, enquanto estudantes, tinham sido iniciados no marxismo na célula comunista universitária de Maurice Dobb, o camarada mais próximo de Sraffa, e que, depois, no meio da ‘guerra fria’, tinha fugido para a URSS para evitar ser preso como agente secreto do KGB). É óbvio que, nestas condições, para um judeu mais comunista mais expatriado, como era Sraffa, era mais do que apropriado proceder disfarçado, e mesmo na esfera académica, se mesmo em 1960 um dos seus colegas (talvez Dennis Robertson?) com a simples leitura do rascunho da Produção de Mercadorias através das Mercadorias avisou-o de que o livro deveria ser queimado porque era ‘imoral, neo-marxista e neo-comunista’“. Fim de citação.
Para termos uma ideia da importância de Sraffa contra a visão das harmonias universais em que assenta o neoliberalismo, repare-se que, na linha dos clássicos, de Adam Smith, de Ricardo e mesmo de Marx, Sraffa elimina as ferramentas fundamentais da teoria neoliberal em economia: as produtividades marginais do trabalho e do capital, com as quais os economistas do mainstream querem garantir que, em capitalismo, ninguém explora ninguém. Com efeito, diz-nos Sraffa:
“Qualquer pessoa acostumada a pensar em termos de equilíbrio de procura e oferta pode inclinar-se a supor, ao ler estas páginas, que a argumentação repousa sobre a suposição tácita de rendimentos constantes em todas as indústrias. Se se achar útil tal suposição, não há inconveniente algum em que o leitor a adote como uma hipótese temporária de trabalho. De fato, entretanto, não se faz tal suposição. Não se considera variação alguma no volume de produção, nem (ao menos nas Partes I e II) variação alguma nas proporções em que os diferentes meios de produção são utilizados por uma indústria, de modo que não surge problema algum sobre a variação ou constância dos rendimentos. A investigação ocupa-se exclusivamente daquelas propriedades de um sistema económico que não dependem de variações na escala de produção ou nas proporções dos ‘fatores’. Este ponto de vista, que é o dos antigos economistas clássicos, de Adam Smith a Ricardo, tem estado submerso e esquecido desde o advento do método ‘marginalista’. A razão é óbvia. O enfoque marginalista exige que a atenção se centralize na variação, porque sem variação, seja na escala da indústria, seja ‘nas proporções dos fatores de produção’, não pode haver produto marginal nem custo marginal. Num sistema no qual a produção continue invariável nesses aspetos, dia após dia, o produto marginal de um fator (ou, alternativamente, o custo marginal de um produto) não seria apenas difícil de encontrar, mas não se teria possibilidade de o encontrar.”
“É, entretanto, um traço particular do conjunto de proposições agora publicadas que, embora não entrem numa discussão da teoria marginalista do valor e da distribuição, têm sido destinadas para servir de base a uma crítica de tal teoria. Se as bases se sustentarem, a crítica poderá ser tentada mais tarde, seja pelo autor, seja por alguém mais jovem e melhor equipado para a tarefa.”
Sraffa abre o caminho a essa crítica ao ensino dominante, procurando tornar visível o que a teoria dominante pretende esconder, e o que estes pretendem esconder é:
- Que a remuneração dos fatores de produção — capital, trabalho, terra — é o resultado dos preços de equilíbrio do mercado determinados no confronto entre oferta e procura, produtores-consumidores.
- Que a remuneração dos fatores produtivos é, neste contexto, determinada pela sua produtividade marginal em valor. Neste mundo neoliberal ninguém explora ninguém!
Uma vez que não é a teoria económica que aqui nos interessa, diremos apenas que a obra de Sraffa é toda ela uma profunda construção teórica a visar exatamente o ensino dominante, o neoliberalismo. Partindo de uma qualquer configuração produtiva de uma sociedade capitalista, analiticamente reconstrói-a com o que se chama o seu sistema padrão, onde se mantêm todas as propriedades do sistema real, para chegar à chave central da Economia Política: os preços dependem da repartição e os níveis que pontualmente se assumem nesta representam os níveis de poder relativo das classes sociais em presença. Chega, pois, à relação linear r = R (1 − W), em que r minúsculo representa a taxa de lucro, R representa o produto acrescentado no seu sistema padrão por unidade de capital utilizado nesse mesmo sistema, e W representa a parte dos salários em rendimento padrão. Nesta relação linear, a um aumento dos salários corresponde uma diminuição dos lucros do mesmo montante e vice-versa. O conflito de classes é, pois, imediato.
Note-se que, na construção do sistema padrão de Sraffa, é utilizada a quantidade de trabalho do sistema real em vigor, a partir do qual ele matematicamente constrói o seu sistema padrão. Quanto à análise das determinantes de W, estas terão tanto a ver com a Economia como com a Sociologia enquanto ciências autónomas.
Como assinala Sraffa:
“Mas o sistema efetivo compõe-se das mesmas equações básicas que o sistema-padrão, apenas em diferentes proporções; de modo que, uma vez dado o salário, a taxa de lucro se determina em ambos os sistemas, independentemente das proporções das equações em cada um deles. Proporções particulares, tais como as proporções-padrão, podem dar transparência a um sistema e tornar visível o que está oculto, mas não podem alterar as suas propriedades matemáticas.” Fim de citação.
O que aqui me interessa sublinhar é que o que Sraffa pretende fazer com esta obra é tornar visível o que, no sistema capitalista e na análise dos economistas oficiais, está oculto. É, sobretudo, este o papel da Teoria Económica: explicar o que está por explicar, intencionalmente ou não; da mesma forma, poderemos dizer que o papel da Justiça será esclarecer o que juridicamente está por esclarecer e impedir assim julgamentos de rua, como este que está a ser feito contra Boaventura de Sousa Santos. Quer-se justiça e não julgamentos populares.
Posto isto, frise-se que não estamos aqui e agora para discutir economia, mas sim o processo movido contra Boaventura de Sousa Santos. Na linha do que nos diz Sraffa, impõe-se-nos, portanto, alguma frieza de análise, algum distanciamento, para não sermos engolidos pela voragem mediática de um mundo de santos e santas com um diabo do lado de fora: Boaventura de Sousa Santos.
Do ponto de vista da mídia, Boaventura de Sousa Santos foi acusado e, sem julgamento, é simplesmente culpado, porque tudo o resto é extrema santidade. Creio que, desse ponto de vista, vale a pena citar aqui extensamente um trabalho de Christopher Barclay sobre o caso Coldplay:
“É verdade que a cultura atual no X (antigo Twitter) e noutros aplicativos da mídia social talvez seja menos imediatamente destrutiva do que foi durante o auge do ‘woke’ (aproximadamente entre 2017 e 2021). Ainda assim, o potencial viral desse tipo de história é um sinal de alerta de que a nossa cultura está obcecada por vergonha, vigilância e controle. A obsessão com a vida privada dos outros é uma doença.
É claro que há algo na natureza humana que tende ao mexerico, à vergonha e ao ridículo (de forma irrefletida, automática). Mas as novas tecnologias permitem-nos dar vazão a essas tendências sórdidas de maneiras historicamente sem precedentes. Devemos levar a sério o efeito distorcedor que essas histórias — e nossa obsessão por elas — têm sobre nossas almas.
A aldeia global é como qualquer aldeia — repreensiva, punitiva, consumida por boatos, sem nada melhor para fazer. Embora transformar alguém em um meme possa parecer divertido, é profundamente indigno e descarta os costumes e salvaguardas de uma sociedade liberal para participar de um linchamento sádico.
Se essas tendências continuarem — se os algoritmos continuarem a funcionar como estão, e não consigo imaginar que não o farão — então cada vez mais vítimas serão arrancadas do anonimato para sacrifício mimético. E, como consequência, os tabus significativos sobre privacidade, vergonha e respeito desaparecem, e a vida e o comportamento de todos passam a tornar-se material para comentários e ridicularização.
Nós precisamos urgentemente de novos tabus — não contra adultério, imoralidade sexual ou engano interpessoal, porque claramente já temos muitos desses. Em vez disso, precisamos de tabus contra o fato de nos agregarmos em multidões idiotas e repugnantes, incapazes de pensar no que as vítimas de nosso ridículo e desses apedrejamentos digitais podem sofrer. Uma perspetiva mais sábia admitiria que todos nós, no momento errado, somos mentirosos, tolos, trapaceiros, charlatães, hipócritas. Que atire a primeira pedra quem nunca pecou — ou clique no botão ‘curtir’ ou ‘compartilhar’. Se a nossa resposta natural à vigilância mútua constante não for de nojo, então deveria sê-lo.” Fim de citação.
As acusações contra Boaventura de Sousa Santos são bem conhecidas, pelo que não vamos repeti-las, mas, sobre muitas delas, devo dizer que estas sinceramente me são ininteligíveis, por razões que, de forma sucinta, tentarei mais abaixo explicar.
Uma pequena nota sobre a FEUC
Vejamos alguns detalhes. Conheço o Boaventura de Sousa Santos desde 1975, quando eu estava brutalmente descontente com o que se passava no ISEG: disciplinas que não funcionavam, notas que eram atribuídas de mão no ar. A FEUC de então estava praticamente a partir do zero. Por espírito de missão de um punhado de pessoas, a FEUC foi-se fazendo e, nesse punhado de gente, estava necessariamente o Boaventura de Sousa Santos. Neste trajeto conjunto, de que pessoalmente muito me orgulho, não deixou de haver focos de tensão e a razão da sua existência era bem simples: a FEUC estava a partir do zero e ambos queríamos fazê-la à nossa imagem, à imagem de cada um de nós. O Boaventura quereria uma Faculdade de Sociologia, onde a Economia tivesse o papel de auxiliar, e eu desejava uma Faculdade de Economia onde a Sociologia fosse auxiliar da Economia, mas com um papel menor do que aquele que o Boaventura de Sousa Santos pretendia para a Economia. A razão era simples: como economista, e tendo a certeza de que a maioria dos nossos alunos seria destinada a trabalhar nas pequenas e médias empresas da região, do país, eu sabia que eles teriam de sair da FEUC com conhecimentos fundamentais em Gestão. Mas sempre armados de uma ferramenta fundamental, hoje completamente desaparecida no Ensino Superior, uma enorme capacidade de aprender a fazer, dada a estrutura de ensino levada a cabo na FEUC. Não havia espaço para lecionar de tudo e, na minha visão da FEUC, no curso de Economia a Sociologia teria menos peso do que teria a Economia no curso de Sociologia. Essas tensões foram desaparecendo e fez-se, para a época, o plano de curso de Economia mais equilibrado que se lecionava no país. Quem o disse e o escreveu foi um relator do ISEG, num relatório enviado à ministra de então.
Posteriormente, cria-se o CES, que mais tarde se torna um centro gigante por influência, quem diria, dos chineses, dos criadores do Índice de Xangai. Num momento em que as comunicações entre centros se tornavam cada vez mais fáceis, em vez de unidades científicas especializadas e financiadas adequadamente, estabeleceram-se centros gigantes, aglomeraram-se centros. Foi assim em Portugal, foi assim em todo o lado. Viva o Índice de Xangai, apetecia-me dizê-lo — sarcasticamente, claro.
Tudo isto para dizer que raramente eu ia ao CES. Não queria ser enrolado pela Sociologia. Tinha o meu trajeto próprio que, de resto, não me levou a lado nenhum, mas isto é toda uma outra história que não é para aqui chamada. Fui lá duas a três vezes assistir a conferências sobre temas de economia de gente com quem me identificava. Aí reparei no método de trabalho de Boaventura de Sousa Santos. Era o moderador. Acabada a palestra, o Boaventura iniciava o debate, solicitando a cada um dos presentes o seu comentário ao que se tinha dito. Isto, aparentemente, era coisa fácil, mas não era, assim, em resposta pronta, direta! Desagradou-me, mas o problema era — e é — meu. Custa-me falar em público, ainda hoje. Mas reconheço hoje, e até na altura o reconheci, que este é o método correto para “abrir” as pessoas ao discurso científico, ao debate mentalmente organizado, mas, para quem se inicia nestas andanças, isto gera alguma angústia.
Nota sobre assédio moral.
Neste campo centram-se algumas das críticas que lhe foram feitas, e comentemo-las de forma genérica, uma vez que desconheço a realidade concreta do CES, situando-nos a um nível do CES abstrato. O trabalho de investigador é, por definição, neste país, um trabalho precário para muita gente até ao meio da sua carreira temporal. Há trabalhos a fazer, há debates a organizar, há debates em que as pessoas se têm de preparar de corpo e alma e há, sobretudo, trabalhos de campo ou trabalhos teóricos a realizar. A escrever, a rever e rever, muitas vezes, até que se considere o trabalho perfeito. A concorrência para se manterem no lugar é, nestes grandes centros, cada vez maior, e a consequência, para se lutar contra a precariedade, é cair em situações de burnout que também nos conduzem à precariedade. Estou a falar de quando se fazem trabalhos a sério, de investigação criteriosa, não de publicações “a metro”, como agora se está a fazer em muitas das nossas faculdades, em que os autores dos trabalhos funcionam como extensão dos computadores que os redigem em bruto. Pessoalmente, questiono-me se muita da disputa em torno do Boaventura de Sousa Santos, em matéria de assédio moral, não terá como pano de fundo a situação que acabo de descrever, envolvida esta sob a acusação de assédio moral. Se assim é, o alvo está errado; é todo o sistema que deve ser julgado, e o Boaventura de Sousa Santos ele próprio está sujeito às mesmas condicionantes que os investigadores do CES, se se quiser manter o CES fora da linha de água. E o certo é que o manteve fora da linha de água.
A concluir esta curtíssima nota sobre assédio moral, refira-se que estamos perante um problema geral. O Estado cada vez se burocratiza mais, e tanto mais quanto maior é o disfuncionamento em que a sociedade se encontra. Acusar o Boaventura de Sousa Santos desta situação, diabolizando-o, é passar por cima da realidade portuguesa. Já imaginaram o que significa trabalhar num departamento do Estado em que os funcionários só saem quando o chefe sai? Já imaginaram o que significa receber uma ordem de serviço às 18h30 de uma sexta-feira, com trabalho a fazer em casa e para levar feito na segunda-feira de manhã? Já imaginaram o que significa, em EPEs, os funcionários públicos aí colocados serem sucessivamente assediados para passarem a empregados com contrato de trabalho individual? E isto desde os tempos do socialista António Costa, com tendência a agravar-se fortemente com a Administração Montenegro. Já imaginaram o que significa deslocar professores de áreas científicas onde se especializaram para disciplinas que nunca lecionaram? E podíamos continuar até quase ao infinito a falar de assédio moral, materializado agora numa só pessoa, Boaventura de Sousa Santos.
Nota sobre extrativismo
Boaventura de Sousa Santos é acusado de forçar os outros a trabalhar para ele. Não vi nenhuma prova disso no âmbito da acusação que lhe foi movida. Que me falassem disso nos anos 70 e 80, décadas em que andávamos todos a viver das nossas ideias e das ideias dos outros, ainda aceitaria isso, mas, para lá dos anos 90, com uma formação sólida já construída, não é uma acusação creditável.
A confirmar isso, aqui deixo 4 links para textos por ele escritos, no violento período de clausura a que tem estado submetido:
- https://aviagemdosargonautas.net/2025/05/16/primeira-escavacao-da-epoca-da-apostasia-por-boaventura-de-sousa-santos/
- https://aviagemdosargonautas.net/2025/06/10/a-necessidade-de-pensar-o-impensavel-por-boaventura-de-sousa-santos/
- https://aviagemdosargonautas.net/2025/06/23/os-brics-e-confucio-por-boaventura-de-sousa-santos/
- https://aviagemdosargonautas.net/2025/08/28/noticias-que-nao-sao-noticia-por-boaventura-de-sousa-santos/
E digam-me se é credível que o homem que escreve estes artigos numa situação de clausura imposta precisaria do trabalho de algum assistente para os escrever. A resposta é imediata: não precisaria.
Nota sobre assédio sexual
Aqui o problema é muito mais complexo e vou limitar-me a duas afirmações de Boaventura de Sousa Santos:
- a de que nasceu no início dos anos 40, foi um homem do seu tempo e terá tido, assim, atitudes hoje consideradas menos corretas.
- A minha derrota é a vitória do neoliberalismo.
Vejamos ponto por ponto:
1. A Quanto ao primeiro ponto, quando ouvi a história da mão no joelho, pensei no filme O Joelho de Claire, de Eric Rohmer, mas visto de forma diferente. Para muita gente, sobretudo da América Latina, o Boaventura de Sousa Santos é uma sumidade e natural é que jovens se sintam encantadas por estarem juntas com o Mestre. A mão no joelho, para mim — sou sincero no que estou a dizer e não sei ser de outra maneira —, significaria uma certa tensão despida de carga erótica, em que a mão no joelho representaria, do lado do Boaventura de Sousa Santos, um gesto habitual de apoio para com quem estava a falar, enquanto, pelo lado da mulher assim acariciada, seria uma espécie de confirmação emocionada do apoio do Boaventura de Sousa Santos ao trabalho que pensaria fazer. O certo é: o ato descrito é apenas a mão no joelho, e não estou a ver o Boaventura de Sousa Santos a viver o papel do personagem de Rohmer em Le Genou de Claire. Há o depois relatado pela estudante brasileira e este relato é arrasador para a figura de Boaventura de Sousa Santos, relatado 10 anos depois e em plena euforia do Movimento Me Too, quando o relato público por ela feito lhe poderia dar dividendos. Entre a verdade de um e a verdade da outra, dez anos depois relatada, eu opto pela verdade do Boaventura de Sousa Santos.
Falo da sedução intelectual do Boaventura de Sousa Santos por ter assistido a uma sessão de trabalho com um grupo de gente de Letras, já licenciada, realizada numa sala do primeiro andar no Palácio dos Limas, em que participava também a sua mulher, Irene Ramalho. Era impressionante a concentração de quem o ouvia, 10 a 15 pessoas; era impressionante o ar de espanto de toda aquela gente, maravilhada com o que ouvia. Naquela sessão de trabalho, onde terei participado por mero acaso, eu percebia bem por que é que o Boaventura de Sousa Santos enchia anfiteatros. Não admira, pois, que até a este nível intelectual ele seduzisse e fosse até invejado.
A este nível, contaram-me uma vez uma história curiosa. Num jantar festivo da Faculdade, falou-se de um livro que tinha acabado de sair. Eis que o Boaventura explicou, de forma desenvolvida, a temática do livro. De repente, a colega e amiga Maria dos Anjos pergunta-lhe: Boaventura, como é que tiveste tempo de ler o livro? “Não o li, li a contracapa e as badanas”, foi a resposta, e esta foi acompanhada de uma risada geral. E a explicação devia corresponder ao livro, senão a história ser-me-ia contada de uma outra forma, de crítica e não de admiração.
Mas a afirmação do Boaventura é demasiado séria para ser tratada de raspão. Nascido no início dos anos quarenta, fará a sua adolescência nos tempos duros do fascismo e a sua aprendizagem sexual — e esta é uma aprendizagem que é demasiado séria para se estar a brincar com ela — terá sido feita aos zigue-zagues, com altos e baixos, com quedas e levantamentos. Uma trajetória aos zigue-zagues é, por definição, uma aprendizagem feita pelos erros, pela aprendizagem com eles, pela procura das suas correções, e isso significa também, o que é muito importante, um enorme respeito por aquelas com quem percorreu essa trajetória. O contrário dessa aprendizagem pelos erros seria uma aprendizagem de santo, e os santos, que eu saiba, não têm sexo; logo, não precisam de aprendizagem sexual. Creio ser isso que ele queria dizer, foi assim que o entendi, contra muita gente que ironizou em torno dessa afirmação. Um amigo do Boaventura criticou-o severamente por essa afirmação, que ele considerava uma inoportuna mea-culpa. Por contraponto a essa séria afirmação, no entanto, perguntaria eu: qual a ideia que se tem HOJE da educação sexual da nossa juventude? Basta ver o que se passa numa qualquer Queima das Fitas, por exemplo a de Faro, onde a mulher acaba por ser vista não como mulher, mas sobretudo como objeto sexual, bem mais próxima da ideia que a maioria dos rapazes dos anos 50 tinha sobre as raparigas, sobre as gajas. Para além do que acabo de dizer, a violência no namoro é bem prova de que talvez estejamos, nesta matéria, a ficar aquém do que era a sexualidade nos anos 50!
1B. Há um outro relato de uma estudante, segundo a qual, numa sessão pública num curso de verão na Curia, Boaventura de Sousa Santos lhe teria colocado a mão na virilha. Diz Boaventura de Sousa Santos que, durante a projeção de um documentário sobre direitos humanos, com a estudante sentada a seu lado, ele lhe tocou no joelho para lhe chamar a atenção para determinado episódio. Muito mais tarde, em entrevista já do “coletivo de vítimas”, a estudante afirmou que Boaventura de Sousa Santos lhe pusera a mão na virilha e ela, de tão perturbada, sentiu-se incapaz de acompanhar os trabalhos a partir daí, o que é negado pelos registos do curso e pelos demais participantes. Vemo-la nas fotos esfuziante de alegria, tal como os outros participantes. Aliás, pensemos bem: tem isto algum sentido? Para mim, não tem nenhum. Para utilizar uma expressão parecida com a de Sraffa, com que iniciei este texto, direi que nasci e cresci até aos 11 anos numa aldeia quase no fim do mundo ou, antes, que terei lá caído vindo do lado escuro da Lua.
Fui para a cidade com onze-doze anos e aprendi por conta própria a sobreviver, observando o que via nos outros e racionalizando sobre o que via. Como qualquer adolescente, também chegou a minha vez em que a fúria das pulsões se sobrepunha a tudo o que fossem reflexões. Nesta fase de bruto, alguma vez seria capaz de uma atitude destas, de abordar uma rapariga desta forma, fosse em que situação fosse? Depois, cresci e atravessei os diversos estratos sociais e culturais da sociedade portuguesa e, até à libertação de abril, não deixo de assinalar uma marca daquele tempo de cristandade, em geral falsa: para que houvesse jogos eróticos, eram necessárias duas condições: o rapaz só poderia avançar se jurasse e jurasse (fingindo) que a rapariga em presença era a sua amada e a rapariga, para consentir esses avanços (desejados), diria a pés juntos que acreditava na verdade do seu amado. Se desse para o torto, o rapaz passava para outra e a rapariga confortava-se dizendo que não era culpa dela, tinha sido enganada, até que se repetia a história com um outro com quem simpatizasse. Tratava-se de uma dupla mentira essa que gerava, muitas vezes à primeira, à segunda ou à terceira oportunidade, uma verdade, a verdade de que acabavam por se amar e casar.
Pode parecer patético o que acabo de dizer sobre as primeiras relações entre homens e mulheres naqueles tempos dos anos 50 a meados de 60, mas será isto muito diferente da ideia cristã expressa por Paul Claudel de que “Finge acreditar e acabarás por acreditar”? A ideia é semelhante! Para uma visão recente deste tipo de relações, veja-se o livro de Pio Abreu, A Queda dos Machos.
Isto é bem menos primário do que o que é relatado por uma mulher no que se terá passado na Curia, entre uma mulher adulta e um cientista social de renome e à frente de toda a gente. Primário demais para se poder acreditar! Lamento dizê-lo de forma tão direta. Mas há ainda uma outra razão para dizer “não acredito”. Para além deste primarismo absurdo, poderei acrescentar um outro argumento. Boaventura de Sousa Santos passava cerca de metade do seu tempo fora, no estrangeiro. Por que razão é que só se fala destes comportamentos em Portugal? Ora, a dar crédito ao primarismo da Curia — a mão na virilha e em público —, ele teria um comportamento compulsivo, mas, para ter um comportamento compulsivo, este seria independente do espaço onde estivesse, e, pelos vistos, não é isso que se passa. Conclusão, logicamente — é esse o plano que me interessa —, isto não tem nenhum sentido.
2. A minha derrota é a vitória do neoliberalismo
Transcrevo o que escrevi em tempos sobre o enquadramento político do cancelamento de Boaventura de Sousa Santos.
Recebi na caixa de e-mail notícias de Thomas Palley, um importante pós-keynesiano americano, pertencente, pois, à corrente de pensamento económico mais progressista e fora da corrente marxista, nas quais ele nos informa que foi sancionado e cancelado pela Sociedade dos Economistas Pós-Keynesianos por ter escrito um texto contra a posição ocidental assumida no quadro da guerra. Não se pode pensar fora do quadro estabelecido pelos nossos políticos guerreiros e vêm-nos falar no respeito pela liberdade de pensamento! Quer isto dizer que há liberdade de pensamento desde que este esteja conforme ao pensamento das autoridades, ou seja, é o caminho do fascismo. Diríamos mesmo que 1984, de Orwell, começa a ser uma realidade no quadro da suposta democracia: é-se acusado de antidemocrata se o contestarmos.
Chegados aqui, tenho ou não tenho o direito de pensar que o cancelamento a que Boaventura de Sousa Santos foi sujeito se insere no mesmo pano de fundo? Se olharmos para o caso de Assange, preso porque teve relações sexuais consentidas com uma ativista nórdica, mas em que a camisinha de contracetivo se rasgou e em que ela o acusa de a ter rasgado intencionalmente, é pensável que um homem seja destruído por isto? E nessa destruição tenham estado envolvidos vários Estados: Inglaterra, Austrália, EUA, Equador? Ou não será isto uma falsa questão “fabricada” para limpeza moral dos nossos falsos democratas? Uma coisa é certa: foi evidente que Assange terá contribuído para a não eleição de Hillary Clinton, e isso tinha de ser pago a um preço muito alto. E pagou-o! Nessa altura falei com o saudoso Mário Ruivo, em que lhe manifestei o meu espanto por Obama apoiar Hillary Clinton, e a resposta foi imediata: há dívidas a pagar e Obama está a pagar a sua. Dito de outra maneira: Trump sobe ao poder não por culpa de Assange, mas por culpa dos democratas que não souberam ou não quiseram escolher outro candidato. Relembro aqui Obama ao dizer: Bernie Sanders, esse, nunca! E Hillary perdeu. E Trump ganhou! E a tragédia reconfirmou-se em novembro de 2024 quando o candidato que o Partido Democrata lançou contra Trump era nada mais nada menos que o doente Biden, reconhecidamente doente desde o início do seu mandato de 2020-2024. Neste seu mandato de 2020 a 2024, assinala o jornal The Atlantic na sua edição de 16 de maio de 2025, “o governo americano era constituído por cinco pessoas [que] estavam a dirigir o país”, disse um informador político aos autores do novo livro Original Sin. “E Joe Biden era, na melhor das hipóteses, um membro mais do conselho de administração.” E, mais uma vez, é o Partido Democrata que oferece a vitória a Trump, que ganha, não por mérito próprio, mas por falta de mérito do seu opositor. O remendo que foi Kamala Harris foi um remendo que nada remendou.
Quanto a Thomas Palley, um crítico acérrimo da política externa americana, tal como Assange, o ataque é direto, mas, tão grave quanto o seu cancelamento, é o facto de que este cancelamento vem do grupo de gente que seria pensável estar próximo de Palley, gente de esquerda e da primeira água. Logo, não deveria ser encarado como um cancelamento político. Mas o argumento é puramente formal: não ter respeitado as regras da Sociedade dos Economistas Pós-Keynesianos quanto à divulgação dos seus artigos, nomeadamente o artigo “A Guerra da Ucrânia e o aprofundamento da marcha de loucura da Europa” (publicado na Viagem dos Argonautas, ver aqui). Contudo, no plano formal, vem da mesma linha política (mesma linha de pensamento económico), da mesma forma que o cancelamento de Assange não era político, era devido a assédio sexual.
Quanto a Boaventura de Sousa Santos, o elemento político comum enquadra-se na mesma tipologia: um crítico de nível internacional quanto à política externa seguida pelas diferentes administrações americanas e, tal como aconteceu a Palley ou a Assange, a sua queda seria conveniente. E, publicamente, não é um cancelamento por razões de ordem política, mas de ordem sexual! E, assim, entre muitos sinais de cancelamento, refira-se que a FNAC e a Bertrand se recusaram a distribuir os seus livros, e as Edições 70 têm dois manuscritos parados porque temem que não sejam vendáveis. Pelo meio, cerca de 10 programados doutoramentos honoris causa foram cancelados. Como me assinala o próprio, trata-se de uma “morte civil pura e dura”.
A terminar este texto, pedi a Boaventura de Sousa Santos que me disponibilizasse alguma das diversas trocas de e-mails com uma ou outra das mulheres que o acusam de ser o Diabo em pessoa. Fiquei demasiado impressionado com o que li, e de tal modo fiquei que me concentrei apenas na troca de e-mails de uma só pessoa. Espantou-me a fragilidade académica de alguém perante a pressão de teses a realizar, de provas a apresentar, de textos a discutir. Impressionado com os zigue-zagues profissionais, não fui capaz de continuar a ler este tipo de e-mails. Deixo-vos aqui alguns excertos:
“Agradeço, antes de mais, ao Professor Doutor Boaventura de Sousa Santos, meu orientador, pela oportunidade de aprender com o seu trabalho e as suas ideias, tão influentes nesta dissertação, e com o seu rigor científico. Nunca esquecerei a oportunidade que me deu de fazer parte de um projeto de investigação que me permitiu crescer pessoal e profissionalmente e conhecer por dentro um país pelo qual me apaixonei para sempre.”
“Agradeço ao Professor Doutor Boaventura de Sousa Santos a Escola que criou e os desafios que permanentemente lança e abrem espaço a caminhos livres de monotonia. Foi sempre um privilégio fazer parte das suas equipas e ter a oportunidade de aprender e crescer nesse contexto. Agradeço a confiança e as tantas partilhas que fazem parte do que sou.”
“eu vim-vos dizer do coração, é verdade, só uma pequena observação sobre este livro que se chama O fim do império cognitivo”.
“Sendo assim, gostaria muito que o Prof. Boaventura pudesse ser meu orientador, aceitando o Dr. XXXX como coorientador. No início, esta não me pareceu a melhor opção, uma vez que o Professor só pode aceitar dois orientandos/as.”
“Neste momento, parece-me certo que terei que entrar nessa corrida, porque gostava mesmo que o Prof. aceitasse orientar o meu trabalho.”
“o CES tem sido sempre a minha instituição e nunca pus a hipótese de, por minha vontade, me desligar dela, sendo que gostaria de poder ficar ligada às duas instituições.”
“Se o Professor aceitar este pedido, passarei a enviar-lhe todas as coisas que for fazendo e a discuti-las sempre que o Professor assim o entender. Aguardo com ansiedade uma resposta tua.”
Tabela de excertos adicionais
Em março de 2018 escreve:
“Como quase todxs saberão, este ano, o CES (e curiosamente varixs de nós) faz 40 anos. Em novembro, será realizado um colóquio comemorativo da data, que é simultaneamente uma homenagem ao Professor Boaventura. Na minha opinião, o projeto Alice fez parte do melhor do CES nos últimos 40 anos e nós fomos todxs parte disso juntamente com o Professor.”
Em 2020 pede apoio a Boaventura de Sousa Santos para que este apoie um amigo seu em estado de depressão e escreveu:
“Olá, Professor, espero que esteja bem. Falei ontem com o (nome da pessoa) e fiquei preocupada. Não sei se lhe vou dar uma novidade ou não, mas achei que devia dar-lhe conta do que pareceu. Acho que ele está com uma depressão e numa crise de insegurança com a tese. Tentei motivá-lo, mas sei que o Professor costuma ser excelente a ajudar os seus alunos a saírem daquele lugar. Se puder dar-lhe uma palavra, acho que pode ajudá-lo.”
No dia 31.12.2020 escreve:
“Bom dia, Professor. Não fico surpreendida, mas muito feliz por saber que a conversa com o (nome da pessoa) correu bem. Além da amizade por ele, vejo uma sensibilidade crítica e um coração que faz falta nas EdS. Eu sei que o Professor está a gerir muita coisa, vou sempre acompanhando, e que os tempos que vivemos nos obrigaram a alterar prioridades. Estou tranquila. Desejo-lhe um 2021 criativo e feliz.”
Estes dois últimos excertos são relevantes e por duas razões:
- O amigo da denunciante está em preparação de tese e está em depressão. Uma situação muito comum em situação de tese. Conheço pessoas que nunca mais recuperaram da situação de burnout em que entraram na situação de preparação final de tese.
- Mostra as francas relações de amizade existentes entre as pessoas, neste caso particular entre a denunciante e Boaventura de Sousa Santos. Pede-se a Boaventura de Sousa Santos que socorra um amigo seu em depressão, dada a capacidade por ela reconhecida da competência de Boaventura em apoiar casos como este. Isto significa o quê? Só tem uma leitura possível: reconhece a capacidade afetiva e efetiva de Boaventura de Sousa Santos em apoiar as pessoas que com ele trabalhavam e que se encontravam nesta situação.
E fico-me por aqui neste mar de transcrições inacreditáveis face ao que ela declarou depois. Se à teoria económica cabe explicar o que está oculto, na linha do que nos disse Sraffa, à Justiça caberá esclarecer o que, no plano jurídico, está por entender.
Desisti de ler mais e-mails e o que li confirma-me que estamos perante uma verdadeira monstruosidade no plano da lei, ou da ausência dela. Direi que nisto há muito de estranho no plano político, dada a dimensão coletiva que o processo tomou, e fico com uma dúvida adicional: não será que a monstruosidade do que li face ao que se disse de Boaventura não é ela o resultado dos insucessos da vida académica, com uma tese de mestrado que nunca mais terminava — quatro anos e não chegou para concluí-la —, com um salto para o doutoramento que também tardou em concluir? Não haverá por aqui um mecanismo psicológico clássico de sobrevivência, em que a culpa dos nossos insucessos, das nossas incapacidades, é sempre dos outros, em que, perante estes insucessos e perante as próprias denunciantes, os culpados são sempre os outros? “L’enfer, c’est les autres”, terá dito uma personagem de Sartre na peça Huis Clos. Será por estes insucessos, nos e-mails bem sentidos por quem os possa ler, que se quer fazer de Boaventura o responsável-mor do Inferno?
Temos então estes tempos longos de conclusão de trabalhos, com o sistema a pressionar por tempos ainda mais curtos. É aqui que entra a precarização crescente no sistema; é aqui que entram em ação os mecanismos de insegurança e as distorções nos comportamentos psicológicos que dessa insegurança resultam, mas isto não é o resultado de uma pessoa outra, o orientador; é o resultado das fragilidades da própria pessoa, das suas características pessoais, da sua formação de base. E é também o resultado de um sistema que é urgente mudar, mas não se muda, isso garanto eu, com comportamentos erráticos nas suas trajetórias, com irresponsabilidades nos comportamentos, como os e-mails acima reproduzidos nos mostram.
A partir daqui, o aproveitamento político da situação terá sido fácil a quem o desencadeou, é o que tudo isto me leva a pensar.
Assim, nada mais tenho a acrescentar sobre este cancelamento.
Em jeito de conclusão
Uma curtíssima nota em dois pontos.
- Os excertos de e-mails reproduzidos foram por mim conhecidos já com o texto completamente elaborado, daí ficarem em caixa no final. Eles vêm confirmar a análise quanto à minha recusa em aceitar as acusações contra Boaventura de Sousa Santos, pois torna-se impossível compreender, no campo da lógica — e este é o único campo que me interessa —, o que foi dito face ao que foi escrito nos e-mails acima reproduzidos.
- O problema das acusações é um problema local que virou um problema internacional, com mecanismos de pressão até hoje quase desconhecidos e próprios de um novo macarthismo conduzido à escala mundial. Penso mesmo que as acusantes não terão pensado em efeitos tão drásticos quanto aos que assistimos, mas terão depois bem cavalgado no cancelamento que por outros foi instituído. Se o meu texto é coerente, e penso que o é, não me parece que as acusantes tenham pernas para cavalgar esse cavalo, a menos que disponham de fortes seguranças que os senhores do mundo lhes ofereçam, e é isso que pode estar já a acontecer.
Não terão sido, creio eu, os senhores do mundo a desencadear as acusações feitas; também não terão sido eles a desencadear o cancelamento. Este terá sido independente das pessoas envolvidas nas acusações, independente das tomadas de decisão dos senhores donos do mundo. Não; mais grave que qualquer destas duas hipóteses, o cancelamento é devido aos servos que anseiam por servir os senhores do mundo, quer pelas benesses que possam ter de imediato, quer para se posicionarem em lugares de relevo junto dos senhores do mundo para usufruírem também do prestígio do poder ou até para depois os substituírem — e aqui falo da ganância do poder. Veja-se também Vance e Trump nos EUA, Montenegro e Passos Coelho em Portugal, Jeremy Corbyn e Keir Starmer no Reino Unido. E podíamos continuar…
Dois exemplos:
- O cancelamento de Thomas Palley por se opor à guerra conduzida pela OTAN não foi imposto pelos senhores do mundo; foi imposto pelos seus colegas, a linha de economistas pós-keynesianos que, fora do mundo marxista, é considerada a mais importante linha de pensamento económico progressista no Ocidente.
- Desde 2011, a Universidade de Coimbra tem tido à frente dos seus destinos reitores de direita pura e dura, João Gabriel Silva e Amílcar Falcão. Do meu ponto de vista, ambos foram representantes do Governo junto das Faculdades e não representantes das Faculdades junto do Governo. Os tempos de coragem com Teixeira Ribeiro já se foram. Que fizeram os diretores das Faculdades, sejam eles Álvaro Garrido, José Manuel Mendes ou outros diretores? Venha o Diabo e escolha. Cito estes dois especificamente porque eles não podem ser considerados de direita, mas, no fundo, fizeram o mesmo que os outros: serviram o poder. Serviram os reitores, serviram o Governo, e assim o ensino está como está. O desejo de saber o que o poder deseja para o poderem servir esteve sempre na ordem do dia e a respeitar, com o máximo de rigor. E os docentes, o que fizeram? Instalada a precariedade e o medo que esta arrasta consigo, calaram-se. Cabe-me apenas, e por agora, respeitar o seu silêncio. Penso ser correto dizer que o desejo de servir os senhores do mundo imperou e o agradar ao poder dominante foi sempre a nota política que se ouviu tocar. Aqui, se dúvidas há, veja-se a reforma dos planos de curso da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e veja-se também a dança atual dos professores nas suas distribuições de serviço.
É neste quadro de servilismo geral em que se vive — e não só à escala de Portugal, mas do mundo — que se compreende bem o brutal cancelamento a que Boaventura de Sousa Santos foi sujeito e, se assim é, isto é muito grave e significa que nuvens negras, muito negras, pairam sobre os céus da democracia em todo o lado. Veja-se, por exemplo, o que se está agora a passar em Portugal com a Administração de Luís Montenegro e os meios silêncios do PS.
A este nível, vale a pena recordar aqui o conto de Franz Kafka, “O Homem do Leme”. Fui a uma livraria e tirei uma fotografia do conto. Sugeri à empregada que o lesse. Leu-o, depois olhou para mim com espanto e diz: parece que foi escrito hoje.
O conto:
O Homem do Leme
«Não sou eu o homem do leme?», gritei. «Tu?», perguntou um homem escuro e alto e passou a mão sobre os olhos como quem afugenta um sonho. Estive ao leme na noite escura, a lanterna de luz fraca sobre a minha cabeça, quando chegou este homem e me quis afastar. E como eu não me afastei, colocou o pé em cima do meu peito e pisou-me lentamente, enquanto eu estava ainda agarrado ao cubo da roda do leme e, ao cair ao chão, mudei bruscamente a direção. Mas aí o homem segurou-a, colocou-a na posição certa, mas a mim repeliu-me. Contudo, recompus-me depressa, corri para a escotilha, que conduzia para a sala da tripulação, e gritei: «Tripulação! Camaradas! Venham depressa! Um indivíduo estranho escorraçou-me do leme!» Eles vinham devagar, subiam pela escada da embarcação, figuras vacilantes, cansadas, pesadas. «Eu sou o homem do leme?», perguntei. Fizeram que sim com a cabeça, mas só tinham olhos para o indivíduo estranho, rodearam-no em semicírculo e, quando ele disse num tom autoritário: «Não me perturbem», juntaram-se todos, acenaram-me com a cabeça e desceram de novo pela escada da embarcação. Que povo é este? Será que têm a cabeça para pensar ou deixam-se arrastar sobre a face da terra como loucos?»
Parece que foi escrito hoje, é o que me diz a empregada da livraria, e tem razão.
NOTA
- Refiro-me aos professores ainda empenhados naquilo que são, naquilo que fazem, professores condignos, professores empenhados, que Westbrook define como um grupo que ele compara a Dom Quixote, de Cervantes, que deseja ser um cavaleiro galante já depois de passada a era da Cavalaria. (Citado por Wessie du Toit em Qual é o objetivo da Universidade?)
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.