Trump: o cabo eleitoral de Lula
Donald Trump tornou-se, ainda que involuntariamente, cabo eleitoral de setores progressistas no Brasil
A cientista política Marta Arretche, professora da USP, avalia que as sanções e tarifas impostas por Donald Trump ao Brasil tiveram efeito inverso ao desejado. Enfraqueceram o bolsonarismo e abriram espaço para Lula ampliar sua base política interna. Nesse contexto, a participação frustrada de Eduardo Bolsonaro, que fugiu para os Estados Unidos para conspirar contra o Brasil, revela a profundidade da traição da extrema-direita.
A ofensiva do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, contra o Brasil — com a imposição de um tarifaço de 50% sobre importações, sanções a autoridades e chantagem ao Judiciário brasileiro — transformou-se em peça inesperada no cenário político nacional.
A ingerência externa e seus efeitos internos
Segundo análise da cientista política Marta Arretche, publicada pelo jornal Valor Econômico, essa pressão externa produziu um efeito paradoxal. Isolou o bolsonarismo no Congresso e abriu espaço para que Lula apareça como defensor e arauto da soberania nacional.
O que poderia significar apenas mais uma crise para o governo brasileiro acabou convertendo-se em oportunidade política. A narrativa da resistência ao intervencionismo externo fortalece a coesão doméstica, algo que já se viu em outros países em contextos semelhantes.
Bandeira de unidade nacional
Foi assim em Cuba, que transformou o embargo norte-americano em bandeira de unidade nacional desde a Revolução de 1959; no Irã, onde as sanções impostas pelos Estados Unidos após 1979 foram usadas como instrumento de mobilização popular contra o 'inimigo externo'; na Rússia de Vladimir Putin, que a partir de 2014 — e sobretudo após a guerra da Ucrânia em 2022 — intensificou o discurso de soberania para consolidar apoio interno; e na Venezuela, onde tanto Hugo Chávez quanto Nicolás Maduro exploraram as tentativas de isolamento diplomático e econômico para reforçar sua base política.
Até mesmo na Argentina da Guerra das Malvinas, em 1982, houve um breve momento de união nacional contra a ofensiva britânica. Em todos esses casos, a pressão externa funcionou como combustível para fortalecer governos e regimes que, em situações normais, enfrentariam maiores dificuldades internas.
O isolamento do bolsonarismo
O campo bolsonarista encontra-se hoje sitiado por dois flancos. De um lado, enfrenta a ação da Justiça, com Jair Bolsonaro sendo julgado pelo Supremo Tribunal Federal por tentativa de golpe de Estado — um processo que pode levá-lo à prisão por longo tempo. De outro, sofre o impacto das medidas de Trump, que atingem em cheio a economia brasileira, e desgastam lideranças políticas e parlamentares associados ao ex-presidente Bolsonaro.
Esse duplo cerco resultou em um esvaziamento de forças no Parlamento, diminuindo a capacidade de mobilização da extrema-direita. Ainda que sua base eleitoral siga significativa, sua expressão política institucional encontra-se reduzida e fragmentada.
Eduardo Bolsonaro: o emissário do golpismo
Dentro desse quadro, a participação do deputado Eduardo Bolsonaro ganha contornos reveladores. Fugido do Brasil em abril, Eduardo se instalou nos Estados Unidos com a missão única de representar os interesses da extrema-direita e conspirar contra a soberania brasileira.
Em entrevistas e declarações públicas, o próprio deputado vangloriou-se de ter influenciado Donald Trump em decisões que resultaram em prejuízos diretos ao Brasil — como o tarifaço, as sanções e as chantagens contra autoridades nacionais, sobretudo ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
A atuação de Eduardo escancara a face mais sombria do bolsonarismo. O setor político disposto a sacrificar os interesses do país em nome da sobrevivência de seu projeto de poder pessoal e livrar Jair Bolsonaro dos crimes continuados que praticou contra a democracia e contra o Brasil. Trata-se de um ato de traição explícita, que revela até que ponto a extrema-direita brasileira está disposta a se alinhar a forças externas contra o país e o próprio povo brasileiro.
A janela de oportunidade para Lula
Para Marta Arretche, Lula tem diante de si uma oportunidade singular. A de transformar a crise internacional em fator de unidade interna.
A ofensiva norte-americana abre espaço para que o presidente Lula apresente-se como o estadista, que é, defensor do interesse nacional e da soberania brasileira. Esse papel pode atrair setores progressistas e nacionalistas, e até segmentos conservadores mais pragmáticos, que veem na ingerência externa uma ameaça comum.
No entanto, a cientista política alerta que a crise de governabilidade de Lula vai além do fator bolsonarismo. Ela decorre sobretudo de limitações institucionais impostas ao Executivo desde a Constituição de 1988, que reduziu os poderes presidenciais de negociação direta e ampliou a força do Congresso. Esse cenário exige reformas estruturais, sob risco de qualquer governo futuro esbarrar nas mesmas dificuldades.
Prisão de Bolsonaro e o pleito de 2026
Outro ponto abordado por Arretche é o impacto da eventual prisão de Jair Bolsonaro. Num primeiro momento, a detenção poderia reduzir sua capacidade de mobilização de massas. No entanto, não eliminaria sua força eleitoral.
O bolsonarismo poderia reorganizar-se em torno de novos nomes, mantendo-se como ator relevante no pleito de 2026. Além disso, a extrema-direita exploraria a narrativa de “martírio político”, buscando capitalizar a ideia de perseguição judicial.
Trump, o “cabo eleitoral” progressista
O efeito final da análise é irônico. Donald Trump tornou-se, ainda que involuntariamente, cabo eleitoral de setores progressistas no Brasil. Sua ofensiva contra o país acabou fornecendo a Lula a chance de reposicionar-se como líder da resistência, fortalecer sua imagem junto à sociedade e ampliar sua base no Congresso.
E no pano de fundo dessa trama, fica evidente que a extrema-direita brasileira, representada pela ação desesperada de Eduardo Bolsonaro no exterior, não hesita em agir contra os interesses nacionais. Em vez de fortalecer o país, aposta em sua fragilização — e, ao fazê-lo, contribui paradoxalmente para o fortalecimento de Lula e da democracia.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.