Do AI-5 ao golpe continuado, uma ameaça persistente à democracia brasileira
Extrema direita ameaça corroer a democracia brasileira usando as próprias regras do sistema para impor agenda autoritária
O Brasil já conheceu, e pagou caro, pelo autoritarismo. Em 13 de dezembro de 1968, quatro anos após o golpe militar de 1964, o regime decretou o Ato Institucional nº 5 (AI-5), o mais violento e autoritário de todos os instrumentos da ditadura. Foi o golpe dentro do golpe. Fechamento do Congresso Nacional, cassação de mandatos, suspensão de direitos, censura total à imprensa e à cultura, e institucionalização da tortura, dos assassinatos e dos "desaparecimentos" dos corpos dos torturados mortos sob tortura. Sob o AI-5, a repressão atingiu níveis brutais, silenciando a oposição e submetendo o país a um regime de medo e opressão por duas décadas até a redemocratização em 1985.
Mais de meio século depois, o Brasil não vive uma ditadura formal, mas enfrenta uma ameaça que carrega o mesmo DNA: a tentativa de golpe continuado. Uma série de ações, discursos e manobras articuladas para corroer a confiança nas instituições, desestabilizar o funcionamento dos Poderes e pavimentar o caminho para a impunidade e a agenda autoritária. O golpe continuado não acontece com tanques nas ruas ou decretos explícitos. Ele se infiltra nos discursos, nos projetos de lei, na mobilização de massas radicalizadas pela extrema direita e na chantagem política aberta.
O ataque às urnas eletrônicas, ao TSE e ao STF
Essa ofensiva começou a ganhar corpo em 2022, quando, meses antes das eleições, lideranças da extrema direita passaram a atacar as urnas eletrônicas, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e até ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), espalhando teorias conspiratórias e acusações falsas de fraude. Em 30 de outubro de 2022, com a derrota de Jair Bolsonaro para Luiz Inácio Lula da Silva, a narrativa golpista se intensificou. Protestos pedindo “intervenção militar” tomaram rodovias e se instalaram diante de quartéis, transformando-se em bases permanentes de agitação política contra o resultado das urnas.
O ápice dessa escalada ocorreu em 8 de janeiro de 2023, quando militantes radicais invadiram e vandalizaram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal. Foi uma ação coordenada para provocar o caos institucional e criar as condições para um rompimento da ordem democrática. O que se viu foi a versão brasileira de ataques recentes às sedes do poder, como no Capitólio dos Estados Unidos em 2021. Um assalto físico e simbólico à democracia.
O golpe que não terminou
Mesmo após o fracasso dessa tentativa, o golpe não terminou. Durante 2023 e 2024, projetos de anistia para os criminosos de 8 de janeiro foram apresentados no Parlamento, enquanto seus apoiadores tentavam reescrever a narrativa, transformando vândalos e conspiradores em supostos “presos políticos”. As redes sociais, muito bem utilizadas pela extrema direita, permaneceram como campo de batalha, disseminando mentiras e mantendo viva a chama da radicalização.
A nova investida veio em 5 de agosto de 2025. Parlamentares e militantes da extrema direita, articulados dentro e fora do Congresso, paralisaram as duas Casas Legislativas, condicionando a retomada dos trabalhos à votação de uma anistia ampla para Jair Bolsonaro, para os condenados pelos atos de 8 de janeiro e para os militares envolvidos na tentativa de golpe. E, ainda, à abertura de um processo de impeachment contra o ministro do STF Alexandre de Moraes, relator do processo judicial que julga, por tentativa de golpe contra o Estado Democrático de Direito, o ex-presidente Jair Bolsonaro e vários militares que aderiram ao golpe. O 5 de agosto entrou para a história como o “sequestro” político do Parlamento, uma chantagem institucional escancarada contra a democracia.
AI-5 em 1968, corroendo a democracia por dentro em 2025
A comparação com o AI-5 não é apenas retórica. Em 1968, o regime militar calou o Congresso com um ato formal, amparado na força bruta e na suspensão aberta das garantias democráticas. Em 2025, parlamentares da extrema direita tentam enfraquecer o mesmo Congresso usando as próprias regras democráticas como arma, distorcendo o funcionamento das instituições para forçar decisões ilegítimas. Se no AI-5 o autoritarismo se impôs de forma abrupta e explícita, no golpe continuado ele avança por infiltração e desgaste, corroendo a democracia por dentro.
Os sinais de alerta estão dados na forma de ataques persistentes à legitimidade do processo eleitoral; nas tentativas de intimidar e desmoralizar o Judiciário; no bloqueio deliberado do funcionamento de instituições como forma de chantagem; no culto a líderes políticos acusados de crimes; na mobilização permanente de bases radicalizadas; e no uso sistemático de desinformação para manipular a opinião pública. Esses elementos, somados, configuram uma ameaça concreta, mesmo sem tanques ou fardas no comando.
A história ensina que a democracia pode ruir de duas maneiras: de forma abrupta, como em 1964 e com o AI-5, ou lentamente, como na erosão contínua que vivemos desde 2022. Em ambos os casos, a consequência é a mesma: a perda de direitos, a censura, a perseguição a opositores e a corrosão das liberdades públicas. Por isso, reconhecer o golpe continuado e reagir a cada um de seus movimentos não é apenas um dever político, é uma questão de sobrevivência democrática.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.