Trump e Lula na ONU: a retórica unilateralista contra o multilateralismo
Em contraste com Lula, presidente dos EUA ataca a ONU e defende visão imperialista
Por José Reinaldo Carvalho, de Pequim - No ano em que a ONU completa 80 anos, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, utilizou seu discurso na Assembleia Geral da última terça-feira (23), para desferir críticas severas à organização. Em tom autoproclamado de superestadista, Trump exaltou seu papel em mediações de conflitos e, mais uma vez, rejeitou consensos globais sobre temas como migração e mudanças climáticas. Excedeu-se na exaltação de sua arbitrária e unilateral guerra tarifária, sendo assim a voz dissonante em favor do unilateralismo no momento em que seria necessário saudar a instituição fundada com a vocação de fomentar e manter o multilateralismo como o método democrático por excelência de desenvolver as relações internacionais e construir pontes que levem à cooperação e à paz.
O ocupante da Casa Branca, que já havia retirado os EUA de órgãos como OMS, Conselho de Direitos Humanos e Unesco, enfraquecendo pilares do sistema multilateral, reforçou no discurso deste ano, a linha unilateralista e imperial, ignorando a lógica de cooperação entre nações. Um dos traços marcantes da sua última fala foi o desprezo à ONU como instância de mediação e de exaltação do próprio papel nas atuais negociações internacionais por cessar-fogos e acordos de paz, mesmo em casos em que seu papel foi secundário. Onde os Estados Unidos, sob sua direção, está desempenhando um papel proativo, é no sentido oposto à paz, no prolongamento do genocídio perpetrado por seu aliado Israel e na consumação de uma tragédia inaudita para o povo palestino.
Quanto a outros aspectos da crise do Oriente Médio, apontou o dedo acusador e ameaçador para o Irã, prenunciando novas etapas de um conflito regional que está longe de ser contido por sua presença ao lado de Israel na recente guerra dos 12 dias. Mas ao se referir às suas démarches diplomáticas na região, laborou em erro e expôs as próprias vulnerabilidades ao apostar fichas desvalorizadas nos chamados Acordos de Abraão.
A retórica agressiva contra a migração revelou aos olhos do mundo um líder de extrema direita, explicitou caráter reacionário do excepcionalismo estadunidense e revelou a disposição para, sob a liderança dos Estados Unidos, dar forma e organicidade a uma corrente política e ideológica neofascista sob a bandeira esfarrapada da defesa do Ocidente, que estaria supostamente sob a ameaça civilizatória. Destaca-se no discurso de Trump também a defesa do tarifaço como via para a recuperação da economia dos Estados Unidos, - que, segundo ele, já estaria vivendo uma “era de ouro" - Uma tese que não se sustenta. Ele ignora que tarifas elevadas tendem a encarecer produtos importados, pressionar a inflação e reduzir o poder de compra da população. Além disso, a medida costuma provocar retaliações de parceiros estratégicos, restringindo exportações e encarecendo cadeias de suprimento globais. Em vez de fortalecer a economia, esse tipo de política pode gerar distorções no mercado, aumentar custos para empresas e consumidores e comprometer a competitividade dos próprios Estados Unidos.
Um flagrante contraste
A visão de Trump é antagônica à de Lula e à de quase todo o resto do mundo.
Se Trump reafirmou a ideia de excepcionalismo americano, reforçando a ideia de que exerce superpoderes econômicos e militares, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva seguiu caminho oposto em sua fala. Lula defendeu a multipolaridade, a soberania das nações e a necessidade de fortalecimento das instituições multilaterais, especialmente diante do genocídio contra o povo palestnio e dos impasses na guerra da Ucdrânia.
Enquanto Trump tratou o multilateralismo como obstáculo, Lula o apresentou como saída: “Nossa soberania e nossa democracia são inegociáveis”, disse o presidente, cuja liderança se agigantou aos olhos do povo brasileiro e do mundo, em defesa de uma ordem internacional baseada no respeito mútuo, na cooperação entre países do Sul Global e no combate às desigualdades globais.
Não é uma diferença de tom, uma linguagem comunicacional distinta, um detalhe tático, mas uma sintomática visão diametralmente oposta. Lula se posiciona como construtor de pontes em um mundo dilacerado por crises e guerras e sedimentou uma visão de que a ONU, reformada e com seus mecanismos aperfeiçoados, tem legitimidade para promover diálogos, gerar consensos e realizar esforços pela paz. Neste contraste, fica óbvio que esse papel poderá ser desempenhado se a ONU não for instrumentalizada pelo imperialismo. A retórica de Trump não vai iludir ninguém. Em seu linguajar chulo, deixou claro que o menoscabo à instituição multilateral, o que tentou fazer foi transformá-la em palanque de autopromoção e em arena para reafirmar a doutrina unilateral do “América em primeiro lugar”.
Uma disputa de visões sobre o mundo
A Assembleia Geral de 2025 escancarou duas concepções opostas da política internacional. De um lado, Trump, presidente dos EUA, que insiste em minar o multilateralismo e se colocar como árbitro único de crises globais, ignorando consensos e atacando a legitimidade da ONU. De outro, Lula, que, ao lado de países emergentes e do Sul Global, aposta na multipolaridade e na cooperação como alternativas ao imperialismo e ao unilateralismo.
Num momento em que a ONU celebra oito décadas de existência, a fala de Trump representou um ataque direto aos esforços para fazer valer no mundo um Direito Internacional que seja efetivamente o apanágio da autodeterminação, da igualdade entre as nações, da cooperação e da construção da paz. Já o discurso de Lula evidenciou que, apesar das tensões, há um campo político empenhado em preservar e renovar os mecanismos multilaterais como caminho para a paz e a justiça.
O diálogo bilateral
A explicitação das visões opostas não exclui, contudo, que entre os dois presidentes haja espaço de diálogo e entendimento pontual, até porque defender a soberania nacional, como faz diuturnamente o governo brasileiro, é também conduzir pragmaticamente ações diplomáticas que salvaguardem os interesses do país na crise aberta pelas sanções tarifárias de Trump.
O presidente americano lançou mais uma vez o repto, como fazem todos os ocupantes da Casa Branca, a que as nações se alinhem em torno do seu poder. Mas o mundo mudou e os líderes responsáveis percebem para onde sopram os ventos. O tempo do falso multilateralismo exercido para impor o mundo baseado nas próprias regras do império, ou do unilateralismo furioso, como agora quer Trump, passou. As nações emergentes do Sul Global já vislumbram outras iniciativas de governança, desenvolvimento, cooperação e paz como alternativas de construção da nova ordem.
Lula tem experiência e sagacidade para escolher o caminho certo e vencer batalhas também neste terreno.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.