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Reynaldo José Aragon Gonçalves

Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global. Editor do site codigoaberto.net

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Treinamento militar estrangeiro no Brasil expõe ofensiva híbrida dos EUA

Think tanks, fundações e agências estatais ocidentais operam em conjunto para desestabilizar a América Latina e fragilizar a soberania brasileira

Militares do Exército Brasil (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

O recente escândalo envolvendo o treinamento de forças brasileiras por mercenários estrangeiros não é um episódio isolado, mas parte de uma engrenagem estratégica que combina think tanks, fundações e agências governamentais dos Estados Unidos e da OTAN. Por trás da retórica de “cooperação” e “segurança regional”, avança uma ofensiva híbrida que transforma a América Latina em laboratório de guerra cultural, política e militar, mirando diretamente a autonomia do Brasil.

Introdução

O recente escândalo envolvendo o treinamento de militares brasileiros por instrutores estrangeiros não pode ser tratado como um episódio isolado, nem reduzido a uma questão de “cooperação técnica”. Ao contrário, ele precisa ser lido no contexto mais amplo da guerra híbrida travada contra a América Latina — e, em especial, contra o Brasil — desde meados dos anos 2000. Por trás da narrativa de “intercâmbio” e “modernização”, há um movimento internacional coordenado por think tanks, fundações e agências de Estado que utilizam a formação militar como instrumento de influência estratégica, reconfiguração doutrinária e, no limite, de desestabilização política.

Não se trata de paranoia ou de “teoria da conspiração”, mas de fatos documentados. Relatórios da RAND Corporation e do Atlantic Council, por exemplo, têm insistido nos últimos anos sobre a “necessidade” de alinhar as forças armadas latino-americanas aos padrões da OTAN, sempre sob o argumento da “defesa coletiva” e do “combate a ameaças híbridas”. Do outro lado, análises publicadas pela Strategic Culture Foundation (SCF) apontam que esses programas de treinamento não são apenas técnicos, mas verdadeiras operações de inserção ideológica que visam fragmentar a soberania nacional e enfraquecer qualquer projeto autônomo de defesa regional.

O tabuleiro geopolítico deixa claro que o Brasil não é apenas um ator passivo nesse jogo: é o alvo central. Assim, a polêmica atual revela mais do que a presença de estrangeiros em território nacional; revela um método consolidado de intervenção indireta, no qual a cultura militar, a formação estratégica e a própria percepção das ameaças são moldadas de fora para dentro.

O papel das agências de Estado

Para compreender a profundidade da atual ofensiva contra o Brasil e a América Latina, é indispensável analisar o papel das agências de Estado envolvidas nesse processo. Não estamos diante apenas de think tanks privados ou de fundações acadêmicas — cuja função é criar a camada ideológica e narrativa da guerra híbrida. O motor real dessas operações são estruturas estatais como o Departamento de Defesa dos Estados Unidos (DoD), a CIA, o Departamento de Estado e, em alguns casos, a própria USAID, que atua como frente “humanitária” para infiltrar agendas políticas.

A lógica é simples: os think tanks produzem diagnósticos e narrativas, as agências de governo transformam essas recomendações em políticas públicas e programas de “cooperação”. Esse ciclo é particularmente visível no caso da RAND Corporation, que historicamente serve como braço intelectual do Pentágono, e do Atlantic Council, que funciona como um eixo de articulação da OTAN com elites locais. A formação de militares estrangeiros em academias ocidentais, sob a justificativa de “padronização” e “interoperabilidade”, nada mais é do que a execução prática de recomendações previamente elaboradas em Washington e Bruxelas.

Segundo análises recentes da Strategic Culture Foundation (SCF), essas agências desempenham um papel duplo: de um lado, vendem a ideia de integração militar como avanço técnico inevitável; de outro, utilizam esse processo para plantar doutrinas que reorientam a percepção das forças armadas locais. O inimigo deixa de ser o colonialismo histórico ou a ingerência externa e passa a ser o “terrorismo interno”, a “corrupção sistêmica” ou mesmo movimentos sociais, todos categorias definidas sob ótica estrangeira.

O Brasil está no centro desse tabuleiro não apenas por seu tamanho e importância econômica, mas porque é o único país da região capaz de articular uma política de defesa autônoma em escala continental. Por isso, a disputa pela formação militar brasileira não é periférica, mas sim estratégica: trata-se de moldar as futuras gerações de oficiais segundo os parâmetros da OTAN, abrindo brechas para que, em momentos de crise política, setores das forças armadas funcionem como vetores de instabilidade e não de soberania.

O papel dos think tanks e fundações

Os think tanks e fundações funcionam como a linha de frente invisível da guerra híbrida. Diferente das agências estatais, que executam políticas de forma direta, eles constroem os arcabouços narrativos, ideológicos e intelectuais que justificam e legitimam cada passo da ofensiva ocidental. São eles que definem quais países devem ser classificados como “ameaças”, quais elites locais devem ser cooptadas, e quais agendas serão vendidas como inevitáveis — democracia liberal, livre mercado, combate à corrupção, combate ao extremismo — todos slogans que escondem um projeto de dominação.

A RAND Corporation, por exemplo, se especializou em desenhar cenários de guerra psicológica e militar desde a Guerra Fria. Recentemente, ela vem propondo estratégias explícitas de contenção ao Brasil e à América Latina, sobretudo no campo energético e militar, sempre disfarçadas sob o jargão da “estabilidade regional”. O Atlantic Council, por sua vez, cumpre um papel de coordenação política e midiática, articulando vozes em Washington, Bruxelas e think tanks regionais que funcionam como satélites, produzindo relatórios aparentemente “locais”, mas totalmente alinhados aos interesses da OTAN.

A Strategic Culture Foundation (SCF) tem denunciado sistematicamente como esses institutos produzem “relatórios técnicos” que são imediatamente traduzidos em ações de campo. O ciclo é claro: primeiro surge um paper identificando o Brasil ou outro país latino como “vulnerável à corrupção” ou “instável politicamente”; em seguida, agências ocidentais lançam programas de “cooperação” ou “combate à desinformação”; finalmente, jornalistas e influenciadores ligados a fundações privadas repetem os diagnósticos, naturalizando a intervenção como se fosse demanda interna.

No caso brasileiro, há ainda a infiltração via fundos de filantropia corporativa, como Open Society Foundations ou National Endowment for Democracy (NED), que financiam projetos acadêmicos, ONGs e até veículos de imprensa. O discurso é sempre o mesmo: “fortalecer a sociedade civil”. Mas o objetivo real é criar uma elite intelectual paralela, educada nos parâmetros de Washington, que repete e normaliza a agenda estratégica do Atlântico Norte.

Essa máquina de produção de consenso não é neutra nem científica: é instrumento de guerra cultural. Ao impor seus relatórios como se fossem estudos objetivos, os think tanks moldam a opinião pública, influenciam diretamente políticas de defesa e criam as condições narrativas para justificar sanções, bloqueios, intervenções econômicas e até militares.

Treinamento militar estrangeiro no Brasil: infiltração estratégica

O caso da AMAN não é um simples “curso civil de fim de semana”. Fotos e relatos públicos mostram instrutores ligados à Phantom Black Company, unidade associada à Legião Internacional da Diretoria de Inteligência da Defesa da Ucrânia (GUR/HUR-MO), ministrando instrução de Tática de Pequenas Unidades ao GTCAN dentro da academia. A Strategic Culture Foundation (SCF) publicou, em 18 de agosto de 2025, reportagem detalhando a conexão da Phantom com a GUR e apontando o risco de doutrinação e coleta de informações sensíveis em solo brasileiro.

A Revista Sociedade Militar, em 13 de agosto de 2025, rastreou a origem pública dessas imagens ao perfil Raptor Concepts no Instagram — empresa aberta em março de 2025 — e registrou que solicitou esclarecimentos ao Exército sobre autorização, conteúdo e pagamentos do treinamento. Até o momento, a resposta oficial não foi divulgada. O post de Raptor agradece por ter instruído o GTCAN “na maior academia militar da América Latina”. Em termos práticos, há material aberto suficiente para afirmar que houve instrução externa dentro da AMAN, e que a cadeia de autorização permanece nebulosa.

Quem é a Phantom? O próprio site oficial se apresenta como 5ª Esquadra da Legião Internacional da GUR, com tarefas de inteligência, missões táticas em zonas de alto risco e apoio direto às forças ucranianas — uma estrutura paramilitar alinhada a um serviço de inteligência estrangeiro. Esse pedigree torna qualquer interação com forças de formação brasileiras estrategicamente sensível por definição.

Por que isso importa? Porque treinamento é vetor de agenda: além de técnicas, transfere doutrina, procedimentos de comando e controle, percepção de ameaça e rede de contatos. Num momento em que Washington eleva o tom e desloca meios navais e aéreos no Caribe sob o pretexto de “combate ao narcotráfico” e “pressão a Maduro”, a penetração de atores ligados à GUR em escolas de formação brasileiras alinha mentalidades e abre portas para cooperação assimétrica fora do escrutínio político.

Em síntese: há quatro elementos centrais. Primeiro, a evidência factual do curso na AMAN. Segundo, o vínculo declarado dos instrutores com uma estrutura de inteligência estrangeira. Terceiro, o silêncio institucional sobre a autorização. Quarto, o ambiente regional de escalada militar e informacional. Para fins de soberania, isso não é intercâmbio: é infiltração estratégica por meio de formação — exatamente o tipo de operação que think tanks e agências ocidentais teorizam e operacionalizam em teatros periféricos.

O Brasil e a América Latina como laboratórios de guerra híbrida

A ofensiva que hoje se observa no Brasil não é isolada: ela se insere em um padrão mais amplo de utilização da América Latina como campo de testes da guerra híbrida. Desde os anos 2000, a região vem sendo alvo de operações que combinam lawfare, desinformação, cooptação de elites, ingerência econômica e presença militar indireta. O objetivo não é apenas mudar governos, mas reprogramar mentalidades institucionais, em especial dentro das forças armadas, para que deixem de ser guardiãs da soberania e passem a operar como braços locais de agendas externas.

Nesse contexto, a Venezuela se tornou o exemplo mais explícito de pressão direta. Neste momento — 19 de agosto de 2025 — o governo Trump ameaça publicamente Nicolás Maduro, prometendo “usar toda a força contra Caracas”. Ao mesmo tempo, destroyers da Marinha dos EUA se deslocam para o Caribe, e forças da OTAN acompanham a escalada sob o discurso de “combate ao narcotráfico” e “garantia da democracia”. A Venezuela é, portanto, o laboratório imediato de coerção militar e psicológica na região, e o Brasil, por seu peso geopolítico, é o próximo alvo de infiltrações mais sutis.

O tabuleiro mostra que não há coincidência: enquanto os Estados Unidos apertam o cerco contra Caracas de forma aberta, estimulam a infiltração “suave” no Brasil — via treinamento militar, think tanks e fundações — para criar dependência doutrinária e preparar terreno para desestabilizações futuras. Assim, a América Latina aparece não apenas como periferia estratégica, mas como espaço de experimentação de novas formas de dominação híbrida.

Conclusão

O episódio do treinamento de militares brasileiros por instrutores estrangeiros ligados à Legião Internacional da Ucrânia não pode ser tratado como detalhe ou simples equívoco burocrático. Ele é a face visível de uma ofensiva híbrida muito mais ampla, que articula think tanks, fundações privadas e agências estatais ocidentais em uma engrenagem de longo prazo para reconfigurar a América Latina.

Enquanto a Venezuela é ameaçada de forma aberta por Donald Trump e pela máquina militar dos Estados Unidos, o Brasil sofre ataques sutis, através da infiltração doutrinária em suas instituições de defesa, da pressão diplomática e da guerra cultural patrocinada por estruturas como RAND Corporation, Atlantic Council, NED e USAID. A diferença está apenas no método: onde Caracas recebe a espada, Brasília recebe a máscara — mas ambas fazem parte da mesma lógica de subordinação estratégica.

A Strategic Culture Foundation tem insistido que a América Latina se tornou o laboratório perfeito da guerra híbrida: aqui se testam narrativas, tecnologias de dominação e métodos de cooptação. O objetivo não é apenas influenciar governos, mas moldar mentalidades e corroer soberanias de dentro para fora.

A mensagem é clara: o Brasil não pode se iludir. Cada curso, cada programa de “cooperação”, cada relatório produzido por think tanks ocidentais carrega em si um projeto de dominação. Defender a soberania hoje significa expor essas engrenagens, reforçar a vigilância institucional e compreender que não existe neutralidade possível diante de uma ofensiva tão articulada. A guerra híbrida está em curso, e a América Latina é o seu campo de batalha silencioso.

Artigo publicado originalmente em <Código Aberto>

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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